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Há um mês postei um texto sobre Digimon X-Evolution e através dele pretendi começar uma discussão sobre o que é, de fato, uma “obra infantil”. Dentre os comentários, algumas pessoas mencionaram Digimon Tamers e outras disseram que não existe, de fato, algo como uma “obra infantil” ou que Digimon não é infantil.

Esses são pontos interessantes e que me fizeram questionar várias coisas por mais tempo do que esperava. E dessa vez, saindo um pouco do formato normal, vamos voltar falar de Digimon e, ao mesmo tempo, tentar arranhar um pouco mais algumas outras coisas.

Digimon chegou ao Brasil no que pode ser considerado o Segundo Boom do anime no país, ocorrido no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Sendo adquirido pela Rede Globo como resposta a Pokémon, a primeira temporada causou impacto desde a sua estreia (mesmo que parte desse impacto tenha sido as clássicas acusações de apologias satânicas…) e rapidamente houve uma polarização entre aqueles que gostavam de Digimon e aqueles que gostavam de Pokémon (e, no meio, um grupo de crianças confusas).

Esse foi, talvez, um dos momentos mais importantes para a definição da subcultura Otaku Brasileira, além de um caso emblemático de algo que viria a ocorrer na cena na década seguinte.

digimon

Toda a polarização poderia ser (mal e parcamente) resumida numa discussão sobre o que é superior: uma série mais adulta ou uma mais infantil? Tal questão voltou à tona quando Digimon Tamers estreou na televisão aberta brasileira. Mais séria, sombria e lenta, a terceira animação da franquia foi, por inúmeras razões, um divisor de opiniões. Havia os que a odiavam por tentar ser adulta demais enquanto outros a amavam pelo mesmo motivo.

Tal discussão (não exclusiva ao Brasil) poderia ser generalizada para todos os animes produzidos e eventualmente culminou na dissidência da cena Otaku em dois grupos os chamados “Otacos” ou “Otaquinhos” e os “Otakus” (e aqui abro um parêntese para deixar claro que esses termos são apresentados aqui apenas para fins didáticos, então não me crucifiquem).

Enquanto ao primeiro pertenceriam os fãs de obras mais leves e simples, membros ativos da comunidade e fervorosos seguidores da “filosofia animística”, no segundo se encontrariam os membros mais “underground” ou “cultos”, apreciadores também de obras de outras nações. Como pode ter ficado claro, a divisão foi desenvolvida por aqueles que se designam “Otakus” (ou simplesmente como “pessoas que gostam de animação japonesa”) e deixa transparecer certo “elitismo cultural”.

Porém, ainda assim, parece que a questão central  se mantém. A visão de um dos lados do grupo como “infantil” enquanto o outro seria “adulto” ainda está presente. Essa parece ser uma distinção essencial para a identidade do Otaku Brasileiro. Mas o que se esconde por trás disso?

Uma das afirmações feitas nos comentários foi que “Não existe obra infantil”. Será  mesmo assim?

Existe atualmente um estigma muito grande com o que se costuma chamar de “rótulos”. Muitas pessoas os vêm em uma luz negativa devido à sua tendência de generalizar e despersonalizar coisas. A atribuição de um rótulo a um indivíduo, entidade ou produto seria, portanto, uma tentativa de simplificá-lo e, assim sendo, poderia ser considerado um desrespeito à obra. Surge então o comentário de que “não existe obra infantil”, carregando em si uma conotação negativa do que significa “infantil”, mas deixemos isso de lado por enquanto.

Essa afirmação deixa passar algo muito importante: animes são produtos e todo produto possui um público alvo. A criação de um rótulo não é somente uma jogada de descaracterização, mas também uma tentativa de apelo a determinado público. Quando algo é divulgado como “um filme de ação” pretende-se com isso atrair para esse filme o público que gosta de “filmes de ação”. Mas ao mesmo tempo em que atrai determinado grupo de pessoas, rótulos também afastam outros grupos.

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Quando se escolhe atribuir a um anime o rótulo de “Seinen” espera-se atrair pessoas que gostem de  histórias “pesadas” ao mesmo tempo em que se repele indivíduos que buscam uma diversão mais “leve”. Porém, o rótulo “infantil” carrega uma conotação muito diferente, pois o público alvo, as crianças, em geral ignoram tais classificações enquanto muitos são repelidos por obras assim classificadas. O resultado disso é um produto que apela não para o indivíduo em si, mas para os pais e para as lojas, em suma, para o mercado. E esse é um ponto central.

Por não haver um grande mercado dedicado aos produtos da cultura pop moderna japonesa no Brasil, parece ser um costume terrivelmente comum esquecer que todo anime é criado com um propósito comercial e quando se pretende vender um produto, colocar nele o rótulo correto pode definir seu sucesso ou fracasso. Negar que empresas colocam marcadores em produtos para tentar atrair um público para eles é tentar negar a própria realidade comercial. O que se pode — e deve — questionar é o que significam tais marcadores.

O marcador “infantil” pode ser ainda mais complexo e, porque não dizer, pessoal para o público Otaku Brasileiro por um fato simples: existe um estigma social de que animes e mangás são não só obras inferiores, mas também inerentemente infantis. Isso faz com que a sociedade pense toda a subcultura Otaku como uma cena inundada de velhos afligidos pela tão infame Síndrome de Peter Pan. Nesse contexto, o surgimento de um grupo que tenta se afastar de todo o estereótipo Otaku (que, interessantemente, é razoavelmente real) e passa a se identificar de modo diferente, ou a reclassificar o outro grupo.

Toda a questão da infantilidade, porém, parece sofrer de uma terrível síndrome de preto-e-branco, quando o que existe na verdade são, com o perdão do termo, muitos tons de cinza.  E nisso Digimon é novamente exemplar. Mesmo a série original trabalhava com temas que normalmente não seriam considerados infantis de um modo sério e Tamers trata de assuntos como a barreira turva entre realidade e ficção e mesmo fé.

De certo modo, Digimon Tamers é uma espécie de Alice no País das Maravilhas (Chiaki J. Konaka, o roteirista principal da temporada, é fã assumido da obra do Professor Dodgson) em que assuntos complexos são explorados sob um manto de fantasia. Mas a falta de uma tradição fantástica no Brasil — infelizmente preso há séculos num realismo que nada mais é que um zumbi centenário — apenas torna toda a questão mais difícil de lidar.

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É extremamente comum ver qualquer obra com elementos fantásticos ser tratada como “lixo inferior e infantil” pelos intelectuais e pseudo-intelectuais brasileiros, independente do seu valor estético ou filosófico ou mesmo de sua relevância para a cultura moderna. O que se torna ainda mais grave quando tais obras possuem uma estética tão diferente quanto à estética “animeística” (me lembrem de criar um termo melhor para isso). É assustador ver a dedicação dada a obras que discutem os valores de uma elite social do século XIX enquanto outras que tratam do lugar do indivíduo num mundo dominado pela conectividade são ignoradas simplesmente por pertencerem a uma tradição artístico-cultural diferente.

Nesse contexto, talvez seja possível que a questão do “infantil X maduro” seja convertida numa questão mais comum e típica: o conflito entre o velho e o novo e a negação de toda subcultura emergente. Sim, o que temos no Brasil é a alvorada de um movimento cultural influenciado pela estética pop japonesa, devorada e adicionada à cultura urbana brasileira.

Talvez em nenhuma outra nação no mundo (excetuando-se o Japão) as questões ligadas ao Otaku sejam tão fortes, algo, talvez, devido à própria natureza sincrética do Brasil. E se for esse o caso, toda a discussão que estamos presenciando pode ser o começo da formação da identidade cultural desse novo grupo. O processo de divisão interna e redefinição, comum a toda subcultura, está ocorrendo ao mesmo tempo em que temos tentativas de produção artística. E em tal cenário, a discussão de rótulos e de seu significado é não apenas natural, mas essencial para a evolução da subcultura.

Vou terminar este anômalo texto por aqui, sem oferecer nenhuma resposta e deixando diversas perguntas. Como última mensagem, gostaria de agradecer a todos que acompanharam a coluna e comentaram até aqui. São seus comentários (ou falta de) que me ajudam a tentar — e apenas tentar — entender essa estranha entidade que é o Otaku Brasileiro.