O texto a seguir é desenvolvido com uso da opinião pessoal do seu autor. Não há intenção de impor uma verdade absoluta, mas sim fomentar uma discussão. Estejam abertos ao debate!

Você já sabe que Os Cavaleiros do Zodíaco foram uma febre sem precedentes no Brasil em meados dos anos 1990. Uma fama que colocou a grife como uma das poucas representantes japonesas, quando se trata de marcas realmente relevantes comercialmente na cultura pop por aqui. Grande parte do público da série está no saudosista, que cresceu com ela e a carrega consigo com carinho. Esse mesmo público também aprendeu a criticar aquilo que tanto ama, em muitos pontos com razão, mas essa “porrada nos Cavaleiros” chegou à uma chacota eterna afrontando o principal responsável por tudo isso, um senhorzinho chamado Masami Kurumada.

O criador dos Cavaleiros desenha mal. Dificilmente você verá uma afirmação diferente, isso é quase um consenso. Dirão que há problemas de anatomia, que a arte é feia – o que pode até estar certo. Mas eu te responderei que não, ele não desenha mal. Digamos que ele apenas desenhe “diferente” daquilo que é comummente agradável para você e isso, meu amigo, não é exatamente desenhar mal. Soa quase absurdo que a maior empresa do segmento de mangás, a Shueisha, pagasse semanalmente para um cara que desenha mal em uma revista de enorme apelo comercial (a Shonen Jump, casa não só dos Cavaleiros como de Dragon Ball, Rurouni Kenshin, Naruto, Yu Yu Hakusho e outros tantos hits) e mais absurdo ainda que tantos outros desenhistas de mangás apontem o mesmo senhor como inspiração. Tem algo errado e injusto nisso aí.

Estava martelando essa ideia desde o caso do pôster oficial da última Comic Con Experience. Os organizadores do evento tiveram a honra de conseguir um desenho de nada menos que Frank Miller, uma das maiores lendas-vivas dos quadrinhos a nível mundial, responsável por clássicos e reviravoltas no segmento, reinventando o Batman e salvando o Demolidor. E o público caiu em cima na arte (uma representação da Mulher Maravilha) com adjetivos que vão do nível de “bosta” para baixo. E veja bem, você tem todo direito de ver a arte e não gostar, mas daí a dizer que o trabalho de alguém que está há décadas no mercado, contribuindo para o enriquecimento dessa cultura é uma bosta só porque não te agrada? Pera lá… Parece que o público se acostumou a venerar como boa arte aquela que segue um padrão estético, de curvas harmoniosas, ou que imite o realismo. Frank Miller tem uma estética única, você bate a cara e sabe que aquela é uma obra dele e isso tudo porque, com certeza, ele trabalhou bastante para se desvencilhar do comum. É uma arte por vezes exagerada (os excessos agressivos no corpo da Mulher Maravilha no pôster não nasceram ali, está enraizado na arte do cara há anos) e que pode ser feia pra quem associa o belo a um determinado padrão estético, mas longe de ser ruim.

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E onde isso chega no Kurumada? O público que aprendeu a amar seus Cavaleiros no Brasil o aprendeu por conta da versão animada. O design dos personagens do anime foi responsabilidade do falecido artista Shingo Araki, que redefiniu a estética para o que a TV dos anos 1980 no Japão pedia – muito próximo do visual do “glam rock” da época. São desenhos mais suaves, totalmente contrários às linhas grossas e movimentos “duros” da arte dos quadrinhos originais. Os fãs brasileiros da série foram conhecer essa versão muito depois (o anime estreou na extinta Rede Manchete em 1994, enquanto o mangá foi publicado pela primeira vez no Brasil em 2000), o que pode ter sido um choque no primeiro momento: “é sério que essa coisa feia aqui?”

Mas dizer que Kurumada desenha mal é praticamente concordar que grande parte dos artistas dos anos 1960/1970 no Japão também eram profissionais ruins. O grande “problema” (bem entre aspas mesmo) nos desenhos do criador dos Cavaleiros está no fato que eles moram na época errada. Pegue um mangá de Go Nagai, ou de Takao Saito, ou mesmo Gen, Pés Descalços, obra da vida de Keiji Nakazawa, se for algo mais acessível. O jeito de desenhar mangá era assim mesmo, com movimentos mais duros (que pode se confundir com anatomia esquisita), traços grossos, muito diferente do que vemos hoje. Esses desenhistas criaram o conceito de mangá de toda uma época e influenciaram gerações, fonte que o Kurumada bebe.

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Diferente de artistas que se permitem atualizar o traço ao longo das diferentes épocas, o pai do Seiya preferiu continuar se situando no padrão antiquado, que acabou tornando sua marca. Você pode dizer que suas obras tem muitos personagens idênticos entre si (o protagonista é sempre o Seiya), sem muita variação, mas esse é o jeito dele e ter uma característica própria nessa selva de autores de mangá é mérito de um mestre sim! Pense que por anos esse cara teve que desenhar semanalmente uma história com esquemas de armaduras que foram ficando mais complexas ao longo dos capítulos, uma rotina extremamente cansativa que só pode ser assumida por um profissional que, primeiramente saiba desenhar e que não surte no meio desse ritmo.

Com seu próprio estilo, Masami Kurumada criou uma marca que lhe permite o luxo de que hoje, aos 62 anos, desenhe se lhe der vontade – ou beba uma ou outra garrafinha de saquê. Ele pode não ter os roteiros mais fantásticos do mundo, sua arte pode não ser agradável pra muita gente, mas ele é sim um mestre mangaká e não, ele não desenha mal.