O papel da mulher na ficção sempre foi um alvo de grande discussão mesmo entre círculos acadêmicos. Todos os anos são publicadas inúmeras teses e artigos tratando do assunto por diversos ângulos e mídias, da literatura ao cinema. No anime, tal discussão raramente é levantada, especialmente no Brasil.

Porém, assim como qualquer outra mídia, o anime possui sim uma longa e conturbada história com o gênero feminino. Portanto, nas próximas semanas, tentarei tratar do assunto à luz de algumas obras que acredito terem representado importantes pontos de mudança no tratamento da mulher desde a virada do milênio, em ordem cronológica.

E vamos começar por um clássico cult.

Em 2001, o estúdio Bee Train lança Noir, primeiro anime do que viria a se tornar a “trilogia das garotas com armas”. Sucesso de público e crítica, a série rapidamente ganhou seguidores e ajudou a popularizar as protagonistas femininas em séries de ação.

Criação original do estúdio, a história gira em torno de Mireille Bouquet e Kirika Yomura, duas jovens assassinas que passam a trabalhar juntas para resolverem mistérios de seus passados enquanto elas se envolvem numa conspiração ancestral que cerca a lendária figura de “Noir”.

A primeira coisa que deve ser dita sobre Noir é que, num quesito técnico, a série é muito falha. Feita com um baixo orçamento, a animação é fraca mesmo para os padrões do seu tempo, utilizando-se de muitos quadros parados e outros truques para diminuir os custos. Tal falta de verba se reflete muitas vezes também no traço que apesar de manter certa regularidade e beleza, em vários momentos sofre uma queda drástica de qualidade (para ilustrar, prestem atenção ao cabelo de Mireille).

Outro problema da série é seu ritmo, especialmente nos episódios iniciais. Seguindo em sua primeira metade uma estrutura episódica, o anime tem altos e baixos, porém o enredo geral avança muito vagarosamente chegando até a se tornar cansativo. Como dito, a baixa qualidade da animação agrava ainda mais a situação. A partir do seu segundo ato, porém, Noir se encontra e passa a se encaminhar mais rapidamente, deixado de lado os casos contidos em um único episódio e avançando apenas o arco central.

A trilha sonora de Yuki Kajiura merece destaque especial. Num de seus melhores trabalhos até hoje, Kajiura cria temas que guiam perfeitamente a série. Da melancolia lenta de “Snow” ao mistério e sacralidade de “Les Soldats”. Mas o ponto alto da OST são, sem dúvidas, seus temas de batalha, os icônicos “Salva Nos” e “Canta per Me”, clássicos indiscutíveis das trilhas sonoras de animes, lembrados até hoje por muitos fãs.

Mas agora chega de falar dos aspectos técnicos de Noir e vamos ao que realmente interessa aqui.

Sempre existiu um preconceito muito forte em todo o mundo quanto à presença de mulheres em papéis centrais de obras cujo foco é a ação. E de fato, isso ainda existe. Parece sempre ter havido certa recusa do público em aceitar que mulheres podem lutar. Isso pode ser visto desde os primórdios da ficção, nos épicos de Homero ou ainda mais longe, nos mitos sumério-babilônicos. A situação só começou a mudar com a literatura do século XX, mas ainda assim a mulher sempre ocupou um papel secundário.

Apenas durante os anos 1940, durante a segunda guerra mundial, é que mulheres começam a se tornar um público alvo em potencial da indústria do entretenimento. É nesse período que surge a Mulher-Maravilha (embora em sua fase inicial ela seja uma personagem extremamente misógina e criticada por alguns grupos feministas). Tal postura em relação ao gênero feminino se mantém até hoje. E é por isso que Noir é tão representativo de uma mudança de postura.

Dirty Pair, uma das primeiras séries do gênero “Garotas com Armas” era uma comédia acima de tudo, seguindo os moldes dos seriados dos anos 1970 e 1980, como As Panteras. O próximo anime relevante dessa linha a surgir seria Agent Aika, de 1997, embora esse tenha seu foco no fanservice.

E enfim, em 2001, ao trazer um enredo totalmente guiado por mulheres tratadas de maneira séria e um forte subtexto homossexual explorado também de maneira séria, Noir se destaca do resto dos animes lançados em sua época e de tudo que havia sido feito até então. Rapidamente cresceu em popularidade, redefinindo o gênero “Garotas com Armas” e abrindo caminho para que outras produções seguissem em seu encalço. Desse modo, pode-se dizer que hoje apenas é possível tratar de maneira séria uma protagonista feminina num anime de ação graças a Noir.

A série ainda geraria mais duas similares, feitas por quase toda a mesma equipe técnica, Madlax, lançada em 2004, e El Cazador de la Bruja, lançada em 2007. As três exploram um mesmo conceito e temas comuns como a perda de memória e a influência de poderoso grupos na vida de suas protagonistas. Pode-se ainda citar Gunslinger Girl, Black Lagoon e CANAAN como diretamente influenciados por Noir.

A popularidade do anime se estendeu para fora do Japão, tornando-se especialmente querida na Europa e nos Estados Unidos, onde existem planos para a produção de um Live Action baseada no mesmo.

Todavia, apesar da influência exercida por essa série, a grande maioria dos animes ainda mantinham a relação de secundarização para com as mulheres. Exceto por mais alguns poucos, grande parte dos quais voltados ao público feminino, as mulheres não voltariam a ocupar lugar de destaque em séries de ação, especialmente no chamado “mainstream”.

Não obstante, nesse período começa a crescer exponencialmente um movimento da cultura japonesa que moldaria toda a indústria da animação do país até o presente, alterando a própria estrutura social do país: o moe.