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O que é uma franquia infantil? O que qualifica determinado conjunto de obras como um produto marcadamente infantil? E o que significa quando esse produto decide assumir uma forma completamente avessa a (quase) tudo que era até então? Dessa vez, vamos tentar pensar nessas questões à luz de uma obra pouco conhecida de uma das franquias mais famosas no Brasil e no mundo: Digimon: The X-Evolution.

Lançado na mesma época que o jogo Digimon World 4, a animação em CG se passa num Mundo Digital em que os Digimons estão à beira da extinção devido ao Program X, um programa criado por Yggdrasil para “limpar” a maior parte da vida existente no Mundo Digital, assim criando um novo mundo apenas com os “escolhidos”. Porém, certos Digimons começam a apresentar o Anticorpo X, o que os torna imunes ao Program X.

Usando os poucos Cavaleiros Reais, os mais poderosos Digimons existentes, Yggdrasil começa a eliminar todos os Digimons e inicia uma campanha de extermínio contra os Digimons infectados pelo Anticorpo X. Vivendo nesse mundo, Dorumon, um estranho Digimon sem lembranças, possuidor do Anticorpo X, se vê forçado a enfrentar a solidão, enquanto sua própria existência é questionada por aqueles que governam o Mundo Digital. Em sua luta para sobreviver e descobrir quem ele é, Dorumon terá de enfrentar os Cavaleiros Reais e o próprio Yggdrasil.

Gostaria que vocês parassem e lessem toda essa sinopse novamente, substituindo apenas os termos “Digimon”, “Mundo Digital”, “Programa X” e “Anticorpo X”, respectivamente, por “Humano”, “Terra”, “Vírus” e “Anticorpo”. O resultado é uma premissa de ficção científica distópica e sombria que não fica atrás de obras como Texhonlyze (coincidentemente, o roteirista de Texhonlyze também escreveu uma das temporadas de Digimon).

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Algo que de modo algum se poderia esperar de uma franquia conhecida por apresentar um mundo de aventuras. Algo similar a esse filme são os especiais de Pokémon Mystery Dungeon, que também apresentam um mundo sem humanos e tentam divulgar um jogo. É tentador usar isso como explicação para a anomalia que é X-Evolution, porém todas as similaridades acabam aí.

Enquanto Mystery Dungeon ignora as questões que sua existência levanta, X-Evolution fica atrás apenas de uma única outra entrada na franquia no tocante a se perguntar sobre si mesmo. A todo o momento vemos não só um tratamento sério e pesado para o enredo apresentado como também dúvidas sendo levantadas sobre tudo que é dito.

E não para por aí. Com apenas algumas poucas exceções, em todas as obras da franquia, os Digimons mortos podem retornar facilmente à vida. E mesmo quando essas exceções são apresentadas, a morte de um Digimon ainda é apresentada de maneira visualmente leve. Não é o caso aqui. Vemos Digimons serem mortos e os corpos permanecem na tela.

Cada morte tem um peso que poucas vezes a franquia ousou dar e há muitas delas de todos os lados. Em determinada cena, centenas de Digimons são massacrados sem hesitação, algo que, fosse mostrado com humanos, provavelmente seria considerado um dos momentos mais pesados da história de toda a animação. Mas toda essa aparente obsessão com a morte é apenas natural numa obra que, essencialmente, fala sobre vida.

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Se a vida é a morte são decididas por uma entidade superior, o momento em que tal entidade decide matar é o fim. Seja na forma do Program X, seja na forma dos Cavaleiros Reais, Yggdrasil possui controle absoluto sobre toda a vida no Mundo Digital. Ele é o Deus que governa o mundo e é a crença absoluta nisso que permite que o Mundo Digital seja como é. A obediência cega de Omegamon a esse sistema é então posta diante dos Digimons que possuem o Anticorpo-X.

Eles não morreram quando foi definido que deveriam morrer e quando desafiados, lutam. É frente a essa resolução que Omegamon começa a se questionar. Isso  é ilustrado numa das melhores cenas de todo o filme quando Omegamon, um dos Digimons mais poderosos que existem, está diante de Dorumon e Tokomon, pronto para matá-los. Não é uma luta, não há a menor chance de que os dois sobrevivam. Ainda assim, eles tentam lutar. É uma resistência fútil. Tudo que seria necessário era um ataque para que os dois fossem mortos. E, ainda assim, eles tentam lutar.

Pela primeira vez, vemos Omegamon se questionar pesadamente. A imagem dos dois pequenos Digimons se atirando contra um inimigo que não têm como vencer é poderosa (algo similar já havia sido mostrado antes numa série da franquia). E conforme mais e mais acontecimentos se sucedem, vemos as questões crescerem até culminarem numa batalha entre Dukemon e Omegamon, dois Cavaleiros Reais. Nesse ponto, Omegamon não consegue mais controlar suas perguntas e o confronto com Yggdrasil se torna inevitável.

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Tudo isso dentro de um filme de Digimon feito para divulgar um jogo normalmente rotulado como infantil. Vida, morte, destino, tantos temas complexos apresentados por trás da máscara de uma obra infantil, enquanto obras “adultas” se resumem a aventuras excitantes em um mundo virtual. Mas isso não responde à pergunta. Por que, ou melhor, para quem Digimon: The X Evolution foi feito? É realmente correto chamá-lo de “infantil”?

O que torna uma “obra infantil”? Esse será o tema dos próximos textos dessa coluna.

Por agora, aconselho todos a tentarem assistir The X Evolution, seja pensando nesse texto ou simplesmente para apreciar uma das melhores obras baseadas em Digimon.

Nos vemos em duas semanas.