No final de 2009, fiz um guia explicando para os leitores como funcionava o processo de adaptação de uma mangá para nossa língua. Na época simplifiquei muita coisa apenas para deixar as coisas mais fáceis de entender.

Ultimamente, vejo-me comentando certos aspectos de um mangá que esse guia nunca abordou ou que abordou muito simplificadamente.

Embora acredite que meus leitores consigam ter uma ideia vaga de como funciona e entendam o que estou criticando nas minhas resenhas, não vejo por que não explicar esses aspectos em específico de forma mais clara e detalhada para aqueles interessados.

Neste guia vou falar sobre a parte da “edição”, ou seja, o processo de se pegar uma imagem japonesa e transformar numa em português. Caso você já esteja confuso desde este momento, leia o “Especial: Adaptando Mangás Para o Mercado Brasileiro“, por favor.

Todas as edições, traduções e imagens foram feitas por mim para fins educacionais. Tentei fazer a coisa bem bonitinha, mas por ser um “scan” de internet a qualidade não está lá essas coisas. Mantenham em mente que é apenas exemplos e representações, não levem tão a sério a qualidade da minha adaptação.

Pois bem, você, um visionário do mercado de mangás, abriu uma editorinha no fundo da sua casa e vai trabalhar com o mangá “Crazy for You” (de Karuko Shiina, autora de Kimi ni Todoke).

Depois de todo processo de compra e tal, você recebeu os volumes e digitalizou página por página, além de ter achado um tradutor por aí nos confins da liberdade.

Agora você tem toda a tradução e todas as páginas digitalizadas. Hora de começar o processo de edição! Esta aqui é a página que vamos trabalhar:

Crazy for You 030

A diferença entre essa imagem e a de uma empresa “de verdade” é que a minha tem qualidade bem baixa e por isso o degradê e as texturas ficam menos nítidos. Uma empresa tem acesso ou digitaliza as páginas em tamanhos absurdos, mas vamos ignorar isso aqui, tá? Todas as imagens (ou quase) que eu colocar aqui tem versões maiores, clique nelas para ver.

Para “tratar” a imagem, “apagar” e “reconstruir” as coisas se usa programas de edição. No caso, o Adobe Photoshop é o mais utilizado para este fim. Aí abaixo é uma versão um pouco antiga de 2010, mas todos eles tem mais ou menos a mesma cara e fazem praticamente a mesma coisa.

ps

Ok, hora de trabalhar. A primeira coisa que se faz é tratar a imagem. Às vezes já tá tudo certinho e tal, mas se foi você mesmo, na sua empresinha, que digitalizou, esse processo vai ter que ser feito. Basicamente você vai ajeitar os tons da imagem, deixar mais escuro ou mais claro, brilho, contraste e tudo mais.

Este processo aqui é ainda mais importante quando a empresa pega uma página colorida e transforma em preto e branco. Às vezes o autor usou cores muito escuras e quando se converte fica uma coisa horrível de tão pesado, com o Photoshop você pode clarear e deixar mais agradável e fácil de se ver a imagem.

Depois de alguns pequenos processos aqui está a minha imagem tratada. Pessoas não acostumadas não enxergam muito bem a diferença, mas basicamente o que fiz foi garantir que os traços feitos de nanquim estão realmente pretos e o fundo da página e dos balões estejam realmente branco.

Crazy for You 030_0

O próximo passo é “apagar” as falas japonesesas, na verdade o que se faz é pintar de branco por cima. Existem várias variações de como se fazer isso ou com que ferramenta que não vem ao caso, o importante é ficar assim:

Crazy for You 030_1

Neste processo ocorre (ou ajuda a causar) quatro tipos básicos de erros de edição: 1. apagar mais do que devia, não por a tradução e sumir com o troço; 2. apagar as coisas com outro tom que não branco, 3. apagar um pedaço da imagem por deslize e 4. não apagar o que devia.

No primeiro caso, temos como exemplo a editora Savana, que já não está entre nós, e sua obra Aflame Inferno que teve várias “falinhas” e “onomatopeias” apagadas sem a tradução no lugar. A forma de se lidar com isso e garantir que não ocorra é ter um revisor ou letrista com acesso ao original e que irá checar se o tradutor/letrista esqueceu de algo.

No segundo caso, temos a editora Nova Sampa, com o Marcelo Del Graco, e Hitman. Nesta obra toda a “apagação” foi feita com um tom cinza claro, que o editor não percebeu. Quando saiu do monitor dele e foi parar nas páginas amareladas deu para perceber direitinho. Pura falta de atenção e cuidado.

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 Exemplo de apagar as coisas com outro tom que não branco da Nova Sampa, obra Hitman #1.

No terceiro caso, não me lembro de nenhum mangá em que isso tenha acontecido, mas imagine que sem querer alguém tenha passado uma linha de branco no meio da blusa do personagem. Também é falta de atenção.

No quarto e último caso aconteceu várias vezes na NewPOP, muitas falinhas e textos deixados no original com a tradução por cima deixando uma poluição absurda. Savana também fazia isso. Na maioria das vezes é uma escolha da editora, mas às vezes ocorre deslizes. Um exemplo brasileiro de deslize é a L&PM em sua obra “Aventuras de Menino” onde foi deixado uma pontuação japonesa (o travessão prolongado) e apagado o resto.

 Exemplo de pedaço não apagado do texto da L&PM, obra Aventuras de Menino.

Não é só no Brasil que acontece não, lembro de um americano no volume 1 de Code Geass: Suzaku of the Counterattack da editora Bandai, logo nas primeira páginas uma das narrações foi totalmente esquecida e aparece o texto por cima.

Agora está tudo apagadinho de branco, uma beleza. Como pode ver, mal começamos o processo, mas várias editoras no Brasil param aqui mesmo. São elas a JBC, a L&PM, a Conrad e a Nova Sampa. Muito antigamente a Panini fez isso, assim como a NewPOP no começo.

Atualmente não tenho visto isso acontecer nas duas anteriores e por falta de atividade de algumas outras pequenas editoras (tipo Abril, Zarabatana, Lumus, HQM) fica difícil dizer algo. Não quero dizer que elas sempre param aqui, em uma ou outra página ou situação eles continuam o processo, mas em várias páginas tudo que fica são esses “apagadinhos”.

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 Exemplo de trabalho pela metade da JBC, obra Rurouni Kenshin #1.

De volta ao tópico, você, dono da empresa, é um cara correto e que pretende fazer um produto de boa qualidade. Então continuará o processo. A partir de agora é a “reconstrução”, reconstruir significa redesenhar, repintar, refazer a imagem original. É um processo bem manual e que exige capacidade de desenho, criatividade e lógica do funcionário. Não é à toa que a Mythos e a Elza contratam várias pessoas conhecidas por seus trabalhos com desenho.

O primeiro passo é refazer os contornos, basicamente olhe para a imagem como um todo e analise o que tinha por trás das letras, olhe as linhas ao redor e na sua mente você começa a encaixar as peças. Depois de fazer em zoom e reconstruir, volte ao tamanho menor e veja se sobrou pontas soltas etc.

Ajuda muito ter alguma base também, não é incomum os autores repetirem certas imagens e cenas, além de servir de base para saber (por exemplo) o que tinha numa blusa. Um bom exemplo de “genialidade” em usar outras páginas e imagens foi o editor do Battle Royale #12, da Conrad, que percebeu que a mesma imagem aparecia duas vezes no mesmo volume e a copiou na primeira, onde havia reconstrução.

Além de imagens no mesmo volume, você sempre pode contar com ilustrações do autor. Por exemplo: Na edição 1 de Kenshin, da JBC, a primeira abertura de capítulo é também a capa do volume e uma ilustração com várias versões (ridiculamente fáceis de achar pela internet), mas este caso aqui a pessoa não soube se aproveitar do fato e a versão “reconstruída” apresentou vários erros de continuidade e edição.

Mas, voltemos para a nossa página, depois de algumas linhas e contornos aqui e ali refizemos a banca de revistas e linhas de fio do poste, dê uma olhada:

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Os erros aqui podem ser muitos, mas os piores são quando o editor não reconstrói, mas tapa o buraco da forma como puder. Reconstruir significa refazer como no original, não tapar buraco. Editoras que apenas tapam buraco são a L&PM e a JBC.

 Exemplo de tapa buraco da L&PM, obra Aventuras de Menino.

Segunda etapa da reconstrução é pintar e refazer texturas e degradês, basicamente vamos por o recheio! Usa-se várias técnica para cada situação, como a ferramente de degradê e o clone. Às vezes, se era apenas uma cor, simplesmente se pinta daquela cor e pronto.

No nosso caso temos dois degradês, um normal e o outro granulado, o melhor é simplesmente usarmos os pedaços do degradê que não tem texto por cima para refazer. Assim, olha:

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Os problemas que acontecem aqui são muitos, desde falta de “recheio” até coisas que fogem do padrão original, degradês mal feitos, texturas que “saltam” aos olhos ao invés de parecer contínuo.

As editoras que tem problemas em reconstrução em trabalhos recentes: Nova Sampa, JBC e Conrad. Ao ponto de beirar o impossível de se achar uma reconstrução dessas empresas que possa ser chamado de “trabalho exemplar”, não é como se elas fizessem muitas também.

Quanto à Panini, são quase todas muito bem feitas e os erros contidos geralmente só são possíveis de ver se se comparado minuciosamente com o original. Quanto à NewPOP, nenhum de seus títulos recentes apresentaram problemas, mas a empresa os cometia alguns anos atrás.

Terminado a reconstrução sua página está “limpa” e pronta para o próximo processo. A partir de agora vamos montar nosso livretinho, para o fazer usamos programas como o Adobe InDesign. Existe todo um processo de paginação, decisão de formato, etc que não vou entrar aqui.

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A critério de exemplificação, vou mostrar uma folha fictícia 2-3 com a imagem que fizemos de um lado e a original de outra. Perceba aqui as linhas da folha, as margens e nossa imagem.

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Como pode ver aqui, o formato que escolhemos ficou pequeno de mais e está cortando coisas importantes. Para corrigir isso iremos redimensionar nossa imagem.

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Mesmo redimensionando você pode ver que há um corte que de um lado é puro branco e do outro um pequeno pedaço de fundo. No nosso caso aqui o corte é trivial, mas isso vai depender, e muito, de obra para obra.

Vale a pena comentar que o Japão usa “inch” (polegada) então para adaptarmos para formatos na medida brasileira geralmente ocorre um pequeno corte. Algumas empresas fazem bordas brancas para evitar isso (a Panini fez isso às vezes e a JBC também no passado), outras cortam mesmo por não perder nada de importante, outras exageram e muito.

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 Exemplo de corte da JBC, obra Rurouni Kenshin #1.

 Exemplo de corte da L&PM, obra Aventuras de Menino.

Lembra das margens que estavam em rosa? Num livro normal aquele é o espaço em que se coloca o texto, num mangá podemos usá-la como margem de segurança para garantir que no processo de impressão um erro não venha a cortar as falas.

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Suponhamos que a gráfica que contratamos tem essa margem de erro, de todos nossos balões na esquerda, apenas um no topo do canto esquerdo está correndo perigo. Do lado direito temos 3, bem mais. Na hora de colocarmos os texto teremos que dar um jeitinho e ter certeza que não cortará.

Comecemos, então, a colocar as falas. Aqui o profissional atenta às fonts, centralizações, falas e margens usando o original como base. Após todo o processo, ele ainda teve que dar uma descentralizada na fala “É o amor!” por causa da margem de segurança que estipulamos.

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Os erros relacionados a este processo são muitos, desde troca de falas, falta de colocação de certas traduções, arranjamento que esconda parte importante do desenho, texto fora de lugar, fala repetida, má centralização, “comida” de borda de balão, erro de hifenização, etc.

De todos eles, os mais comuns são falta de tradução, descentralização e “comida” de borda de balão. Empresas como a L&PM e a antiga Savana são campeãs nisso aqui. Mas, a JBC tem problemas ocasionais de falta de tradução e a Panini volta e meia hifeniza errado a sílaba (tsu).

 Exemplo de fala deslocada, “comida” de borda de balão e descentralização da editora L&PM, obra Solanin #1.

Mais exemplos de descentralização e má colocação da editora L&PM, obra Solanin #1.

Perceba que o rapaz que tratou a imagem, o que apagou e refez, o que fez a paginação e o letrista podem não ser a mesma pessoa. É claro que quanto menor a empresa, menos pessoas estarão envolvidas. Mas, quem sabe um dia viramos uma multinacional? =D

Com isso acabamos nossa página, através de diversos processos. E nossa página vai sair assim quando impresso:

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Mas, como dito anteriormente, existem variações. Por exemplo, empresas que não reconstroem podem nem tocar no Photoshop. No InDesign você pode fazer os famosos “quadros brancos” da cor que quiser, com a borda que quiser. Pode até mesmo usá-los para apagar falas. Olha aqui a página da direita com quadros brancos:

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No Brasil, praticalmente todas as editoras já usaram quadros brancos no passado e, no mundo de comics, gibis e quadrinhos em geral este aqui é o jeito mais comum de se trabalhar os títulos.

Dos lançamentos recentes, ainda usam as editoras Conrad, L&PM e Online. Quadros brancos feitos desta maneira são definitivamente a forma mais porca de se trabalhar um título.

Exemplo de “quadro branco” (na verdade preto de borda branca) da editora Conrad, obra Battle Royale #12. Circulado os fragmentos de kanjis.

Exemplo de “quadro branco” (com borda preta) da editora Online, obra Vidia e o Sumiço da Coroa.

 Exemplo de “quadro branco” da editora L&PM, obra Aventuras de Menino.

Além de tudo isso, só ficou faltando comentar que não é incomum que empresas possam “comprar” o mangá já “limpo” (tenha ele sido limpo por japoneses ou outras editoras no mundo). Exemplo de quem já trabalhou dessa forma: L&PM  e NewPOP.

Espero que este extenso guia deixe mais claro as questões que envolvem edição e similares em geral. E, muito mais que isso, que tenha ficado claro o quanto cada empresa investe e trabalha em seus títulos. Que tenha ficado óbvio onde as empresas estão “cortando” gastos e compremetendo a qualidade do seu mangá.

Informação e conscientização é a maior arma para o estímulo de mudanças. Ainda sonho no dia que este guia for ultrapassado, uma amarga lembrança de quando as empresas não tinham o menor respeito pela qualidade, pelo original e seus leitores.