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Ó, maravilha! Quantas amáveis criaturas há aqui! Quão bela é a humanidade! Ó, admirável mundo novo em que vivem tais pessoas!” — A Tempestade, William Shakespeare

A fala no topo dessa página é dita por Miranda, uma Bruxa que viveu toda sua vida em uma ilha, enquanto ela vê em sua ilha vários homens, dentre os quais os responsáveis pela traição e exílio de seu pai.

No ano de 1932, Aldous Huxley publicou um livro que se tornou uma das mais importantes obras do século XX, talvez de toda a história humana: Admirável Mundo Novo. Considerada por muitos a gênese do romance distópico, a obra de Huxley questionava os valores da Inglaterra de seu tempo, mostrando uma humanidade decadente e dominada.

Nos anos futuros, outros escritores iriam usar a distopia como meio para falar de suas sociedades. Orwell com seus 1984 e Animal Farm, William Gibson e seu Neuromancer e Suzanne Collins e sua popular trilogia Hunger Games. No Japão também houve a produção desse tipo de romance, como o seminal Battle Royale e a fonte de nosso assunto de hoje, Shin Sekai Yori.

Passado num Japão de mil anos no futuro, a adaptação do premiado romance de Yusuke Kishi acompanha Saki Watanabe, uma garota nascida no 66º distrito de Kamisu, uma vila aparentemente pacífica. Nesse tempo, todos os humanos são dotados de poderes telecinéticos e servidos por topeiras inteligentes, os bakenezumis. Porém toda a visão de mundo de Saki irá mudar quando ela começa a descobrir a verdade por trás da aparente utopia em que vive.

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Certa vez um amigo me disse que se pode reconhecer o valor de uma obra pelos seus primeiros cinco minutos. Se há qualquer verdade nisso, devo dizer que poucos animes conseguiram estabelecer-se tão bem quanto Shin Sekai Yori.

Na primeira cena do anime, vemos crianças usarem telecínese para matar de forma extremamente violenta diversas pessoas num cidade moderna. Sobreposta a essas imagens está tranquilidade do segundo movimento da Sinfonia do Novo Mundo de Antonín Dvorak. Estabelece-se o tom de Shin Sekai Yori — um conto sobre desespero, medo, incerteza e arrogância, um retrato cínico de uma sociedade obcecada por regras.

Esse mesmo trecho da Sinfonia do Novo Mundo irá repetir-se por toda a série, pontuando momentos extremamente distintos, sempre mudando e se transformando. Ela é a primeira música que ouvimos e também a última. Que tal música tenha sido escolhida como tema de Shin Sekai Yori (título que pode ser traduzido como “Do Mundo Novo”) é sintomático de seu pedigree intelectual.

Na mesma temporada em que Shin Sekai Yori estreou, começou a ser exibido outro anime que trabalhava a ideia de uma sociedade futura cujas regras são impostas a todo preço. Que Psycho-Pass, escrita pelo aclamado Gen Urobuchi, tem similaridades com Shin Sekai Yori é inegável. Porém, uma diferença fundamental está no modo como as questões são levantadas em ambas as séries.

Se Psycho-Pass excita-se ao mostrar sua inteligência, citando filósofos e escritores e enchendo-se de diálogos filosóficos, enquanto teme questionar aquilo que mostra além das perguntas mais óbvias, Shin Sekai Yori internaliza na estrutura suas — muitas — referências ao mesmo tempo em que questiona tudo que demonstra.

Shin Sekai Yori não tenta ensinar, ela espera que seu espectador tenha certa bagagem cultural antes de partir na aventura. Porém, quando tal bagagem cultural vai desde música barroca, à literatura distópica e budismo, é difícil não questionar quem exatamente se esperava que fosse tal espectador.

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Não bastasse sua complexidade, Shin Sekai Yori é também uma obra ousada. Seja no amplo uso de simbolismo, nas cenas surrealistas, nas questões sobre ética e direito ou nas demonstrações explícitas de relações homossexuais (beijos entre dois garotos são mostrados em detalhes), não há um momento em que a série não tente tirar seu público do lugar comum.

E o que não dizer de suas personagens? Os conflitos que se desenvolvem entre eles, internos ao grupo, conflitos com o mundo ou com o próprio Eu são trazidos à tona em contínua escalada, construindo uma narrativa que jamais permite um momento de paz. E quando o conflito final se forma e o grande antagonista da série se revela, sua identidade, seu plano e seus motivos põem em xeque as mais fundamentais crenças éticas.

E, enfim, no último episódio o segredo final se abre e tudo que foi colocado até então se modifica. Não há status quo em Shin Sekai Yori. Cada momento é uma nova revolução na espiral da causalidade.

O que se vê construir é um questionamento do que significa para o ser humano viver em sociedade, o que é o direito, o que é o, de fato, “ser humano”.

Se tivesse de resumir uma das questões centrais de Shin Sekai Yori, acabaria usando o clássico exemplo do trem bomba. Digamos que há um trem viajando entre duas cidades. Nesse trem, pode haver uma bomba que explodirá quando o trem parar. Se a bomba explodir com o trem na cidade, milhões de pessoas morrerão. Porém, existe uma chance de não haver bomba alguma. O que se deveria fazer nessa situação?

A pergunta aqui parece ser “vale a pena sacrificar uma minoria para evitar uma chance de que se perca uma maioria?”. Essa é também uma pergunta que parece haver em Shin Sekai Yori. Porém, após oferecer a pergunta, a série oferece para ela duas respostas diferentes e contrastantes. E é nesses paradoxos morais que reside a alma de Shin Sekai Yori.

Com tantas dificuldades e minúcias, tantos detalhes e questões, não é de se surpreender que o resultado seja uma série difícil e pouco atrativa ao público geral. Muitos abandonaram Shin Sekai Yori em diversos momentos, notavelmente quando as primeiras demonstrações de homossexualidade começaram a aflorar (algo que é por si só uma questão sobre a qual se pensar).

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O resultado foram baixas vendas de DVDs e Blu-rays, algo que se refletiu na qualidade da produção. Visuais menos polidos e abuso de 3D mal acabado ficam mais e mais comuns conforme a série avança, algo que começa a se tornar incômodo na segunda metade da mesma, embora seja notável mesmo no começo.

No fim, o próprio fato de existir uma série como Shin Sekai Yori é um tanto enigmático. Produzido por estúdio A1 Pictures, conhecido pelos populares AnoHana e Sword Art Online, num tempo de público ávido por aventuras escapistas e garotas submissas, Shin Sekai Yori demonstra a dificuldade de se fazer séries tão profundamente excêntricas.

Talvez o mundo ainda não estivesse pronto para essa obra. Talvez nunca esteja. No fim, tudo que me resta é repetir as palavras de Miranda: Ó, admirável mundo novo em que vivem tais pessoas.