Já faz um tempo que não tem sido comum publicarmos resenhas de obras completas. Numa tentativa de criar esse hábito – e manter regularidade –tentaremos, a partir de agora, postar mais análises que contemplem toda a duração de um mangá, e não só algo que comente o primeiro volume, como sempre ocorreu aqui. Um detalhe a ser salientado é que, nos textos desse tipo (em que falaremos sobre um título do primeiro ao último número) daremos mais atenção a aspectos interiores à obra, mas sem deixar, é claro, de mencionar os detalhes mais importantes do material gráfico e do trabalho editorial.

O escolhido para esse novo horizonte que se abre (parece poesia!) é Steins;Gate: um dos nossos favoritos do gênero sci-fi. Assim como chama atenção de pessoas de diversos lugares do mundo, uma boa ficção-científica costuma cativar mais facilmente os leitores brasileiros do que os demais gêneros. E se envolver viagem no tempo, então é mais que um prato cheio.

No entanto, quando a história já é conhecida pelo público numa outra forma de reprodução artística e esta é considerada boa (ou muito boa, ou mais que isso; ou não), há sempre aquele receio acerca das expectativas que se criarão a partir desse conhecimento prévio. E é justamente essa a dificuldade que Kyouma e seus companheiros do Mirai Gadget tiveram (e ainda terão) que enfrentar por aqui.

Enfim, chega de papo e vamos ao que interessa!

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Sobre o mangá

Primeiras informações

O mangá, de autoria do desconhecido Yomi Sarachi, é uma adaptação da visual novel homônima das produtoras 5pb. e Nitroplus, lançada para o XBox 360. Ambos saíram no ano de 2009, mas foi em 2011 que a franquia teve seu grande salto de popularidade, quando ganhou um anime de 26 episódios pelo estúdio White Fox.

Tivemos também, em 2013, um filme animado intitulado Steins;Gate: Fuka Ryōiki no Déjà vu, que rendeu à série ainda mais prestígio. E, recentemente, para a alegria dos fãs, houve o anúncio de que teremos uma continuação para a novel e o anime, que se chamará Steins;Gate Zero.

A história

A história se passa em Akihabara – a materialização do paraíso otaku – onde vive o nosso querido Rintaro Okabe, que agora se autodenomina “Hououin Kyouma, o Mad Scientist Maluco“. Kyouma é o fundador do laboratório Mirai Gadget cuja proposta é criar a primeira máquina do tempo da história da humanidade (oh-my-fucking-god-this-is-awesome-holy-shit). O cientista, que possui apenas 18 anos, convoca seus amigos Mayuri Shiina, a Mayushi, e o super hacka Itaru Hashida, o Daru, para participarem dessa equipe de desenvolvimento.

Certo dia, enquanto estava em uma conferência sobre viagem no tempo, realizada por um cientista famoso, Kyouma encontra morta, no chão do prédio em que acontecia a conferência, uma garota de jaleco – Kurisu Makise, uma cientista prodígio que se formou, aos 17 anos, numa grande universidade americana.

Okabe fica em estado de choque e sua primeira reação ao se deparar com tal cena é enviar um d-mail para Daru, relatando o que acabara de ver. Como num momento de extrema peculiaridade, nosso protagonista sente algo estranho que ele mais tarde descobrirá se tratar de uma habilidade que lhe permite alterar o presente enviando mensagens ao passado – através dos d-mails.

Os d-mails são semelhantes aos sms, mas com um número limitado de caracteres por mensagem; e então Kyouma consegue, com essa mensagem enviada a Daru (cujo conteúdo era “Parece que a Kurisu Makise foi esfaqueada por um homem”) alterar o andamento das coisas e evitar a morte de Cristina, como ele particularmente chama Kurisu.

A mensagem foi enviada para o Daru de uma outra linha do mundo para qual Okabe se transferiu acidentalmente após enviar o d-mail. O que teria possibilitado o envio desse d-mail para o passado, e consequentemente alterado o presente, fora a curiosa relação entre o telefone do Mad Scientist e seu próprio micro-ondas – o que posteriormente será explicado.

Como a descoberta de uma espécie de máquina do tempo pode acarretar inúmeros feitos (e efeitos), é óbvio que os membros do Mirai Gadget deveriam estar preparados para enfrentar uma perigosa busca feita pela SERN, uma organização global que estaria disposta a utilizar a máquina do tempo para dominar o mundo.

Como os nossos personagens lidarão com essa poderosa instituição científica, que possui recursos inestimáveis e detém conhecimento de tudo o que acontece em Akihabara?

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Desenvolvimento

Essa breve sinopse, que parece ser uma história bastante desenvolvida (ou não), é apenas o que se passa durante as primeiras cenas de Steins;Gate, que tem muito a nos proporcionar durante o seu desenvolvimento (ou não).

De fato, temos um plot muitíssimo interessante, e essas primeiras páginas já empolgam (+ 1 “ou não”). O enredo possui um potencial muito forte e que pode render diversos desdobramentos interessantes. Como essas possibilidades de desenvolvimento constituem, ao lado dos personagens, a parte que mais chama atenção (em relação ao mangá), falaremos disso mais adiante.

Os personagens são, com certeza, os principais elementos de toda a franquia. Pode-se dizer seguramente que Kyouma é um dos melhores protagonistas dos últimos tempos, assim como Kurisu é uma “deuteragonista” das melhores (aqui temos por “deuteragonista” aquele que desempenha um papel importante ao lado do protagonista, mas sem roubar o protagonismo). Os diálogos estabelecidos pelos dois são sempre muito relevantes para o desenrolar das ações e frequentemente apresentam toques de humor que auxiliam no andamento do texto e tornam a leitura mais leve.

Daru, o super hacka, também é responsável por carregar parte do teor cômico do mangá e age de forma que seu caráter (provindo de um ou mais estereótipos) seja sempre consolidado à medida que a história avança. Seu relacionamento com o protagonista é estabelecido, de certa forma, de maneira clichê: numa relação de confiança mútua em que Daru, que possui conhecimento diferenciado em softwares e programação em geral, serve de braço direito a Okabe, e este usufrui dessa capacidade assim como usufrui da capacidade dos demais membros do laboratório, para então tentar atingir o ideal comum entre eles.

Mayushi é de um outro tipo de personagem clichê: aquela que demonstra muito afeto pelo protagonista, fala de um jeito peculiar para acentuar sua “fofura” (vide como ela fala de si mesma sempre em 3ª pessoa) entre outras coisas. Personagens assim muitas vezes apresentam um comportamento tão forte que chega a irritar, mas nela temos algo bem dosado, que não ultrapassa os limites e o resultado foi uma coadjuvante agradável.

Os demais personagens secundários também possuem suas características específicas e todos contribuem para o desenvolvimento da história, sendo alguns deles mais importantes e os outros menos. Por se tratar de uma história passada num curto intervalo de tempo, não vamos usar necessariamente a palavra “evolução” para se referir ao movimento progressivo de cada personagem em direção ao sucesso ou ao insucesso, mas eles de fato vão afunilando e participam, seja direta ou indiretamente, e contribuem para o desfecho.

Já foi mencionado aqui que Steins;Gate é bastante conhecido e fez bastante sucesso, inclusive no Brasil. E também dissemos que esse sucesso se deu graças ao anime, que foi, pra maioria dos atuais fãs da franquia, a verdadeira porta de entrada da série. Então, tendo o mangá como 2ª forma de contato com a franquia, muitas são as expectativas criadas em relação ao funcionamento e ao desdobramento do enredo nesse veículo distinto.

No anime, há uma perplexidade e tensão que estão a todo tempo perturbando o equilíbrio psicológico de Kyouma. As cenas isoladas, os episódios e o todo estão carregados desse estado de abalo mental do protagonista, que funciona também como um espelho daquilo que o rodeia; Okabe reflete, acima de qualquer coisa, a perplexidade a qual se submete inconscientemente ao tentar realizar uma grande invenção (de importância global) que coloca em jogo, não só a sua, mas, principalmente, a integridade dos seus companheiros.

No mangá, pouco disso foi trazido com a intensidade e a qualidade que deveria. O ritmo é absolutamente mal conduzido, tudo acontece numa correria às pressas que acaba por retirar muito do efeito que os acontecimentos poderiam causar, diferenciando-se completamente da animação cujo ritmo é excelente. Esse problema já é algo que se prevê logo de cara ao descobrirmos o número de capítulos em que se estende a história: são apenas 23 capítulos compilados em 3 volumes. O anime, em contrapartida, tem 24 episódios, o que seria equivalente, na prática, a pelo menos 6 volumes de duração(tendo como base que cada episódio, geralmente, equivale a 3 ou 4 capítulos de um mangá.

No tocante ao tratamento que o mangaká dá ao enredo, ainda cabe colocar que essa “pressa” também implica num menor aproveitamento dos personagens. Todos têm um enorme potencial, ou, pelo menos, o suficiente para propiciar a realização de um bom trabalho (o que evidentemente não ocorre), mas todos são pouquíssimo explorados – incluindo o próprio protagonista.

É importante observar também que o próprio Yomi Sarachi “reconhece” esse defeito da sua adaptação. Logo na primeira edição, temos um freetalk (o único de todo o mangá) em que o autor assume que correrá com a história (talvez ele também fora perseguido por uma perigosa organização), mas espera que o leitor tenha, no mínimo, diversão durante a leitura.

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Além disso, um outro problema que temos no mangá é a arte que vai regredindo ao longo dos capítulos. O primeiro volume parece um pouco mais caprichado, mas os demais estão abaixo da média (excetuando a arte das capas, que estão todas muito bonitas). A limitação do traço pode ser conferida em pontos específicos do corpo dos personagens, como nas mãos (o que, curiosamente, é uma dificuldade bastante comum entre desenhistas amadores) e fica ainda mais evidente nas cenas de ação.

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Há também outro detalhe interessante: a proporção. As cenas em que Kyouma aparece perplexo, refletindo sobre quais decisões irá tomar, possui uma inteligente relação de harmonia com um traço propositalmente desproporcional, o que pode ser notado nas duas adaptações (mangá e anime). Contudo, isso parece ser melhor reproduzido no anime, que utiliza do jaleco de cientista como elemento visual para causar o efeito, pois no mangá temos alguns resultados bons e outros nem tanto.

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Por último, podemos citar que as expressões dos personagens (de acordo com as diversas situações) dizem muito a respeito do que está acontecendo. Infelizmente, nos referimos novamente ao anime, que é muito mais eficiente também nesse quesito.

A edição nacional

Steins;Gate chegou ao Brasil no mês de abril, pela Editora JBC. Com cerca de 180 páginas em papel bright 52g (ou papel jornal), a edição possui capas internas e 4 páginas coloridas, chegou às bancas com periodicidade mensal e distribuição nacional, pelo preço de R$ 13,90.

As capas estão muito bonitas e as cores bastante agradáveis. Como tem sido mais comum nos últimos anos, elas não são espelhadas (ou seja, não temos a mesma ilustração nos dois lados). Ao contrário da dianteira, no entanto, as capas traseiras dos 3 encadernados não são muito chamativas, pois têm uma quantidade um pouco excessiva de informações: em todas há uma sinopse (uma diferente da outra, nos 3 volumes), o habitual código de barras (junto com o preço), uma versão maior do logo da série e a indiscreta frase “completo em 3 volumes” na parte superior.

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As capas internas são todas iguais, com exceção do 1ª volume, que conta com um freetalk do autor. E as páginas coloridas estão todas muito bonitas, com uma boa qualidade de impressão, coloração e gramatura. O índice, porém, que está entre essas páginas coloridas, possui uma pequena irregularidade: no volume 1, cada capítulo é denominado “Seção”, já nos demais volumes temos o nome “capítulo” mesmo, o que é um fato curioso (podemos tentar enviar um d-mail para os editores no passado para evitar que isso aconteça).

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A qualidade da impressão e do papel mantém o mesmo nível do começo ao fim e não há aquela transparência chata que vem afetando os mangás recentes por aqui. A diagramação e os demais trabalhos de editoração não possuem problemas aparentes.

Podemos dizer que a tradução da JBC está muito adequada. Foram mantidos alguns termos importantes que contribuem para a construção do sentido e a fluidez do texto do ponto de vista narrativo, como é o caso do Mirai Gadget (que, numa tradução livre, poderia ser adaptado como “Laboratório de gadgets do futuro”). Outro termo interessante é o epíteto (ou adjetivo) “super hacka”, que foi atribuído ao Daru do mesmo modo que fizeram as traduções não-oficiais do anime cujo público está bastante acostumado.

Algumas adaptações que chamam atenção é a expressão “Mad scientist maluco” e, talvez, o nome “Cristina”, que Okabe atribuiu à Kurisu. Na primeira, pode-se observar que houvera a tentativa de manter um efeito cômico através da redundância e da mistura entre o português e o inglês – o que foi muito bem realizado pelo tradutor, que obteve sucesso. Sobre “Cristina”, os mais puristas podem estar sentindo uma falta tremenda da letra “h” entre o “C” e o “r”, mas tendo em vista a grafia no português do Brasil e, sobretudo, a sonoridade (que, aliás, é a mesma), podemos considerar esta como outra decisão acertada.

Em suma, o trabalho de tradução e adaptação estão muito de acordo. Porém, na revisão, além daquele problema do índice, temos uma frase que chama atenção e merece ser vista com calma: no capítulo 10, em um dos balões, encontramos um pequeno erro de conjugação verbal na oração “Mas sempre foi você que ia lá embaixo acalmar a fera”. Note que as flexões do verbo “ir”, “foi” e “ia“, estão em desacordo com a norma padrão, visto que a primeira está no pretérito perfeito do indicativo e a segunda no pretérito imperfeito. O mais adequado seria uma reformulação da frase para “mas era você que ia lá embaixo acalmar a fera”, porque, embora o erro não torne a frase indecifrável, há ainda uma estranheza sonora.

Considerações finais

Pra terminar, fica claro que a adaptação em mangá de Steins;Gate não satisfaz. Primeiro porque não explora todo o potencial da obra e de seus personagens. Segundo pois o ritmo não é bem conduzido e a arte não é tão agradável, sobretudo nas cenas de ação e nas expressões.

O anime, de fato, funciona muito melhor em todos os aspectos. A perplexidade de Kyouma, a importância dos demais personagens e os acontecimentos sendo colocados gradativamente em direção ao desfecho são muito bem expressados na série animada, mas nos quadrinhos fica devendo.

Deve-se considerar também que os elementos audiovisuais enriquecem a narrativa de Steins;Gate. Por isso, seria natural que o anime levasse uma determinada vantagem sobre o mangá, pois muitos são esses elementos enriquecedores e eles fazem certa diferença (as vozes dos personagens, por exemplo, contribuem para que o espectador aprecie-os ainda mais). É curioso que o mangaká faz pouco uso das onomatopeias, que poderiam contribuir numa tentativa de fortalecer o texto e gerar um efeito audiovisual. Entretanto, temos uma dissonância absurda entre as duas reproduções.

Relembre-se de que o mangá foi lançado antes do anime, o que pode ter servido para que este tenha corrigido os erros daquele (que são muitos). É óbvio que você pode gostar da história em 3 volumes, mas podemos afirmar que o mangá é a pior forma para se conhecer uma obra tão bela e cheia de complexidades no que diz respeito ao tratamento temático.

Enfim, se você é fã de Steins;Gate, não espere que terá em mãos uma adaptação ao nível da animação. O mangá pode, no máximo, despertar um sentimento nostálgico e fazê-lo ir correndo atrás do anime para um segunda assistida. A edição nacional é relativamente boa, tendo em vista o material oferecido, mas possui um preço não tão convidativo.

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Steins;Gate

3 volumes
de Yomi Sarachi
Formato: 13,5 x 20,5 cm, 180 páginas
Papel: pisa bright 52g
Periodicidade: mensal
Preço: R$ 13,90

Narrativa e desenvolvimento: ★★✰✰✰ (2/5)

Nota da edição nacional: ★★★✰✰ (3/5)