O estúdio Trigger comumente lança animações que dependem um pouco da boa vontade do telespectador para que sejam qualificadas como boas ou ruins, ou mesmo vistas com um pouco mais de profundidade do que o esperável. Pro bem e pro mal, certas produções suas carregam a mão em determinados clichês, agindo quase como paródias, para ilustrar leituras de fatos cotidianos bem propícios a discussões quando levantados.

Kill la Kill (Hiroyuki Imaishi, 2013-2014), a melhor de todas, abusa de signos ecchi em tela para inverter o jogo e falar sobre autoaceitação feminina. Kiznaiver (Hiroshi Kobayashi, 2016) apresenta 8 adolescentes de personalidades clichês colocados numa experiência de conexão mental para debater sobre empatia. Little Witch Academia (Yoh Yoshinari, 2017) joga uma menininha atrapalhada e sem muitos talentos mágicos numa escola de bruxas para mostrar que ninguém precisa ser “especial” para alcançar seus objetivos. Essas são interpretações que variam de acordo com a experiência de cada um que assiste, necessitando, como já dito, de uma pitada de disposição para que sejam entendidas não só como mais um ecchi, ou mais um drama adolescente, ou mais um desenho infantil qualquer.

E é mais ou menos nessa linha aí que vai DARLING in the FRANXX (Atsushi Nishigori), também fruto do estúdio, aqui em parceria com a CloverWorks/A-1 Pictures. Um dos grandes animes “ame ou odeie” do ano passado. Este que vos escreve, no caso, ficou no primeiro grupo.

A trama se passa num futuro distópico, onde, por uma série de motivos envolvendo a exploração de energia através da extração de magma no subsolo, a humanidade se viu obrigada a habitar domos móveis, necessitando se proteger de criaturas organotecnológicas nomeadas de “urrossauros”. Para isso, equipes com casais de adolescentes artificialmente criados, “parasitas”, pilotando mechas, franxxs”, são montadas para combater tais monstros. Os robôs gigantes, no entanto, só funcionam corretamente quando essas duplas conseguem estabelecer uma conexão mental de confiança mútua, dependendo dos sentimentos dos envolvidos nesse processo.

Como em outras das séries do Trigger, todo o plot serve como uma desculpa para ampliar banalidades espelhadas da nossa realidade e alegorizar através de diferentes segmentos, acontecimentos e personagens. Dessa vez, as relações sociais durante aquele período sombrio onde a criança começa a sair de sua caverna platônica e transitar para a vida adulta, enfrentando todos os revezes causados nesse meio tempo.

Várias das passagens características são exemplificadas ao longo dos episódios: a fragilidade da masculinidade é destacada quando um dos protagonistas não consegue “se conectar” com a parceira no teste para pilotar um franxx, sendo ele imediatamente rejeitado por ela e motivo de chacota entre os colegas; a fragilidade da feminilidade é destacada quando a outra protagonista chega no grupo, sendo bem mais ousada que as demais garotas ali presentes, atraindo nisso todo tipo de atenção negativa; a quebra de expectativas equivocadas é destacada quando uma das meninas, tida como a boazinha da equipe, escolhe ficar com um outro garoto (um bad boy) em vez do amiguinho legalzão que jurava que ela era dele, apenas por ser bem tratado (uma piada ótima com a friendzone, por sinal).

Os arquétipos encarnados pelas pessoas em tais momentos também são bem representados através dos personagens. Tem o já citado casal principal, com o cara sendo mais “feminino” e a garota mais “masculina” em determinadas questões, com ambos sofrendo pressão social por conta disso. Tem a menina “líder”, mais talentosa, inteligente e que se sente ligeiramente superior, a ponto de ficar incrédula quando é desdenhada pelo protagonista e usar sua influência para separá-lo da amada.

Tem a também já citada “boazinha” do time, vista por todos dessa forma mais passiva, mas que opta pelo carinha misterioso e malvadinho em vez do bonzinho que parecia ser sua opção mais viável. E esse malvadinho é daqueles que se acha mais poderoso e capaz que o protagonista, que constrói para si uma aura de superioridade arrogante comprada pelos que o rodeiam. Há ainda o moleque agressivo que pratica bullying, a menina que passa pano para as atitudes dele, pois gosta disso, a outra que se sente mais adulta e deslocada naquele meio, os puxa sacos de autoridades e por aí vai.

E ainda há espaço para que assuntos tabus (naquela realidade) sejam discutidos, como sexo, sentimentos, casamento (e nessa também), homossexualidade e fé. Todo o gimmick¹ de tal sociedade é o desprendimento de sentimentalismo, pois uma visão sínica e racional é tomada como a mais saudável para a humanidade. Mas são nas subjetividades do elenco central que eles encontram uma capacidade maior para lidar com o controle dos mechas² – atitudes próprias essas que são tidas como polêmicas e perigosas por aqueles que os lideram. Os episódios onde as explosões de hormônios são mais evidentes, abrindo margem para tais sentimentos sejam colocados em tela e gerem conflitos, são os melhores. O que rola uma briga entre meninos e meninas, pois os primeiros estão vendo-as com olhos sexuais, é divertidíssimo. O do casamento é bem bonito de assistir.

Também é bastante interessante como os ares cyberpunk³ vão se intensificando conforme a série vai escalando. A discussão sobre uma empresa privada ir esticando seus galhos organicamente por todos meios do planeta, sem atrair de imediato olhares negativos, até que provoque uma hecatombe e, nisso, seja a única capaz de salvar a todos, mas consequentemente dominando a humanidade, é bem bacana. Assim como a dos perigos de a população ter uma fé cega e incontestável por figuras líderes. Os adolescentes no desenho idolatram um “pai”, tendo em suas vontades e na promessa “dele” de que coisas melhores virão no futuro um estimulo de vida. O “pai”, no caso, é um grupo de cientistas donos da empresa que domina o mundo, totalmente desprendidos da realidade e egoístas em suas ambições. É muito legal observar como essa fé é derrubada acontecimento a acontecimento, com questionamentos surgindo e, na mesma proporção, represálias negativas sendo dadas por aqueles que estão acima, visando manter o status quo.

Na real, DARLING in the FRANXX é ótimo nisso de gerar pautas conversáveis dentro de seu enredo. Essas inserções de temas são bem executadas. O que fica ainda melhor com praticamente todos os personagens tendo arcos narrativos consistentes dentro deles e de modo a tocar a história para frente. Embora sejam embebidos em clichês de seus arquétipos, é perceptível que eles partem dum ponto a outro, aprendendo e crescendo nesse meio tempo. Eles se comportam como humanos (mesmo os que não são), com seus erros e acertos.

É claro que o anime não é perfeito. Rola uma idiotice aqui ao colocar um personagem gordo comendo e falando de comida o tempo todo que não convence mesmo na sátira, uns exageros de roteiro ali com toda a trama alcançando proporções intergalácticas (literalmente), uns devaneios cinematográficos pretensiosamente poéticos acolá, mas são erros eclipsados pelos pontos positivos no pacote todo. Ainda que não haja toda essa pré-disposição em catar interpretações semióticas, o desenho convence em seus traços característicos, desenho de personagens legal, cenas de ação bacanas e piadas sexuais propositalmente escrachadas não leváveis a sério.

https://www.youtube.com/watch?v=qWhTQ_eF8Z4


¹ gimmick: Algum artifício adicionado para chamar atenção, que destaque o produto, o “truque” que faz daquilo diferente, maior, mais interessante;

² mechas: Do inglês “mechanical”. Termo usado para identificar robôs gigantes, pilotados por humanos ou não, em obras de ficção;

³ cyberpunk: Subgênero da ficção-científica onde o foco está na combinação de alta tecnologia com baixa qualidade de vida, níveis de desintegração social causados por esse avanço tecnológico, geralmente destacando personagens marginalizados, oprimidos por um sistema.


DARLING in the FRANXX foi exibido entre janeiro e julho de 2018. Todos os episódios estão oficialmente disponíveis com legendas em português na Crunchyroll.