Há algo de suma importância em partidas de RPG, que dita mais ou menos o quão imersivo o jogo será durante o tempo gasto nele: a capacidade do mestre em construir, através de sua descrição e narração, a sensação aos players de como é o universo onde eles habitarão. É preciso inserir nas mentes não só o que os olhos devem enxergar, cenários e NPCs bem caracterizados, mas também toda a variedade de cheiros, temperaturas sentidas à pele, sons em diferentes planos e climas pairando no ar. O mundo deve ser outro personagem, influenciando diretamente nas ações e reações dos jogadores. Mesmo sem enxergar, você ficaria numa sala cuja temperatura aumenta na mesma proporção do odor característico de fumaça? Só se quiser uma queimadura, né?

No entanto, a seleção de peças que formam aquele microuniverso é apenas parte de um todo. Sem estarem dispostas de maneira coerente, através de um bom roteiro, de nada adiantam. Uma boa climatização, somada à uma boa trama, formam, de modo simbiótico, uma boa partida de RPG. Enquanto relia Battle Angel Alita – Gunnm Hyper Future Vision, publicado novamente aqui no Brasil pela editora JBC entre o ano retrasado e o passado, tive a impressão de estar em meio a um jogo do tipo, de temática cyberpunk¹, tamanha a capacidade do autor, Yukito Kishiro, em elaborar um cenário imersivo para sua história. Em meio a um jogo excelente, no caso.

Saído no Japão originalmente entre 1991 e 1995, nas páginas da revista Business Jump, da editora Shueisha, Battle Angel Alita carrega influência de totens do gênero, como os filmes Mad Max (George Miller, 1979), Blade Runner – O Caçador de Androides (Ridley Scott, 1982) e O Exterminador do Futuro (James Cameron, 1985) para reunir o que de melhor um cenário cyberpunk precisa em termos iconográficos. Claro, dispondo disso e de um pouco mais para contar sua história. Como ditam as regras, temos um mundo futurista distópico, onde a alta tecnologia permissiva para um tanto de melhoras na sociedade é degenerada pela decadência da humanidade, se misturando em resultados que podem beirar ao grotesco quando mal-intencionados. Nesse futuro caótico, o cientista Daisuke Ido, habitante da Cidade da Sucata, localizada logo abaixo da idolatrável ilha flutuante de Zalem, encontra a ciborgue Alita num lixão, decidindo reconstruí-la e torná-la sua protegida. Num novo corpo, mas sem memória da vida levada até então, a garota começa a trilhar seu próprio caminho em busca de sua verdadeira identidade.

Parte do que faz de Alita um mangá minimamente ótimo é todo o cuidado em representar aquele mundo usando vários dos pesares necessários numa narrativa cyberpunk. E não só através dos desenhos, bastante detalhados, expressando visualmente as locações decadentes, ou as consequências rendidas da utilização violenta da tecnologia, onde alguns humanos são limitados a cérebros em cabeças num formato larval asqueroso abaixo do pescoço, mentes inseridas em máquinas cilíndricas a fim de exercerem trabalhos burocráticos, ou quaisquer variações disso, mas também nas piscadelas políticas retratadas em diferentes momentos. Seja na alegoria de uma cidade com cidadãos “perfeitos” no céu, inatingível (pois é crime voar naquelas proximidades), dominando todos no chão através de leis e consumindo seus recursos e o que é ali produzido. Seja nas demais maneiras de controle vindas de cima (um panis et circense de uma corrida ultra violenta feita para o entretenimento dos de cima e o respiro dos de baixo, vagas de Guerreiros Caçadores, onde os transeuntes de baixo agem como “superiores” atrás de bandidos, sentindo-se um pouco maiores por isso). Seja nos resquícios de revolução aflorados em diferentes pontos após tais abusos.

O fato da história no mangá ser contada em diferentes blocos, alguns espaçados por anos, apenas auxilia na sensação de que essa é uma grande aventura de RPG bem montada. Neles, a Alita vive diferentes “vidas” numa só, visto sua própria lhe ser um mistério. Ela tem seu arco de guerreira caçadora de criminosos procurados, de participante em corrida destrutiva televisionada ao entretenimento alheio. Faz uma ponta de musicista num bar, afunda até virar uma pária entre os seus, renasce servindo de arma controlável ao governo da cidade nos céus, se apaixona, rebela e muito mais. Tudo é construído corretamente. Os aprendizados e cicatrizes adquiridos são carregados entre um e outro. Os ocorridos influenciam no psicológico de Alita. Ela cresce tanto em sua humanidade, como permite que seu lado máquina impere quando necessário.

E tudo isso é ainda ampliado pelo vasto leque de personagens tão ou mais complexos que a androide protagonista da trama. Nenhum dos melhores se resume em representações unidimensionais. Sim, pintados em várias camadas de cinza, pendendo para o bem ou para o mal de acordo com a ocasião (ou com o estado de espírito do leitor). Uns projetados para serem lidos por “do bem” deixam escapar suas falhas em dadas situações – por exemplo, o par romântico de Alita, incomodado por sua amada não ser uma menina amável, sim uma guerreira violenta amante da batalha que chuta o traseiro de todos ao redor. Outros, feitos como “do mal”, soltam suas intenções inocentes quando desprevenidos, tipo um dos grandes vilões que, no íntimo, preferia ter uma vida feliz e digna junto de seus inimigos.

Gosto bastante da quebra de expectativa no jeito que constroem um certo fotógrafo no quarto volume, também do modo como balanceiam doses de infantilidade e responsabilidade involuntária num “radialista” lá pelos arcos finais. É bem interessante assistir à involução desumanizadora de um personagem, que inicia sendo só outro dos guerreiros em tal ambiente, mas adquire mais e mais tons de psicopatia conforme os capítulos passam e seu contato com a Alita aumenta, culpando-a por isso e incentivando aqueles ao redor a pensar assim. Também é muito bonito ver, mesmo entre os humanos idealizados e “superiores” lá em cima, a possibilidade de empatia, encarnada numa das personagens mais divertidas do gibi, auxiliar da Alita à distância em sua jornada de arma viva, criando com a androide um laço de afeto que a faz questionar todo o meio a qual faz parte e contribui diariamente.

Porém, acima de tudo, Alita é um mangá cuja aventura emociona por si só. Os arcos despertam entusiasmo, tensão, as lutas são de tirar o fôlego. Se o leitor não quiser se prender às interpretações e semióticas desenvolvíveis ali, ele ainda funciona como um compilado de histórias escapistas divertidíssimas de ler. O segmento “Corrida Maluca” da Motor Ball no segundo volume é de pular da cadeira. O do “parque de diversões” no quarto é de arrancar os cabelos. É o melhor de dois mundos.

Criativo. Inventivo. Imersivo. Divertido. Emocionante. Complexo. Eficaz em construir personagens factíveis, bem desenvolvidos, que crescem em seus arcos narrativos. Com um mundo cyberpunk cuja sociedade abre margem para uma porção de interpretações pessoais aos que as desejam. E os desenhos ainda são de tirar o fôlego. Honestamente, Battle Angel Alita – Gunnm Hyper Future Vision é imbatível. Provavelmente, o que de melhor há no catálogo atual da JBC – na opinião deste que vos escreve, claro. Cruzemos os dedos para que o Robert Rodriguez não estrague tudo em sua adaptação cinematográfica. Se estragar, é só voltarmos ao material original, pois esse não decepciona em momento algum.


¹ cyberpunk: Subgênero da ficção-científica onde o foco está na combinação de alta tecnologia com baixa qualidade de vida, níveis de desintegração social causados por esse avanço tecnológico, geralmente destacando personagens marginalizados, oprimidos por um sistema.


Essa resenha tem como base os quatro volumes da edição física do mangá Battle Angel Alita – Gunnm Hyper Future Vision, do autor Yukito Kishiro, publicadas aqui no Brasil pela editora JBC entre 2017 e 2018. Elas compilam os 9 volumes originais do quadrinho, tendo, cada uma, cerca de 448 páginas, formato 13,5 x 20,5cm, capa cartão, custando R$39,90 em seu preço de capa. A primeira edição conta também com algumas páginas coloridas, algo exclusivo dessa versão. Também exclusivas dessa publicação são as quartas capas, que completam as ilustrações nelas.