Tem algum anime ‘shounen de lutinha’ atual melhor que Radiant? Confesso estar meio avulso aos lançamentos desse gênero, visto ainda não ter conferido os hypados Hinomaru Sumo e Black Clover, nem ter passado das primeiras temporadas de Ataque dos Titãs, Sword Art Online e Boruto, trio capaz de mover multidões de fãs a defendê-los religiosamente. Se algum desses conseguir carregar 70% da excelência presente em Radiant, me avisem, pois certamente valerão a pena.

Isso porque essa animação não só entrega de modo eficaz todos os conceitos necessários dentro de um desenho ‘shounen de lutinha’, abusando a bel prazer de tais bons clichês, como o faz com um tiquinho a mais de cuidado com seu subtexto, anabolizando a narrativa com um tanto de paralelos à nossa realidade, aplicados de doses extras de sensibilidade e ousadia roteirística. Talvez só My Hero Academia também faça isso quase tão bem entre os contemporâneos. Os dois animes de Fullmetal Alchemist (o primeiro bem mais que o segundo) também são bons exemplos.

Radiant é a adaptação japonesa animada do mangá francês Radiante, em publicação desde 2013, escrito pelo autor Tony Valente. Exibido entre outubro do ano passado e fevereiro de 2019 (1ª temporada), ele é produzido pelo estúdio Lerche (Persona 4, Assassination Classroom), com direção de Seiji Kishi, Daisei Fukuoka e roteiro de Makoto Uezu.

Se passando num mundo onde as pessoas, aparentemente, vivem nos céus, a mercê do ataque de Nemesis, criaturas bestiais que surgem de ovos vindos do alto, temos aqui a história de Seth, um jovem que sonha se tornar um grande feiticeiro. Feiticeiros são seres humanos que, ao sobreviverem ao contato com Nemesis, se tornam “amaldiçoados”, sofrendo mutações e adquirindo capacidades mágicas, o que faz com que sejam vistos como párias perante o resto da sociedade, apanhando com preconceitos no dia a dia, fato justificado ainda pelo aparato governamental, que institucionaliza essa segregação através da atuação dos “Inquisitores”, que caçam, prendem e executam feiticeiros considerados potencialmente perigosos – de acordo com parâmetros totalmente particulares dentro de suas crenças.

Tomando esse contexto de repressão como ponto de partida, temos então o que de melhor essas séries shounens podem nos proporcionar em suas diferentes camadas. Na mais simples delas, Radiant pode ser aproveitado como uma aventura divertidíssima, com uma porção de personagens cativantes, bastante diferentes entre si, vivendo uma jornada num mundo criativo, detalhado e propenso a um tanto de folclores internos deliciosos de serem desvendados. O protagonista, Seth, é o arquétipo desse tipo de história até o dedão do pé: possui um passado misterioso que o torna o “escolhido”, mais poderoso entre todos, mas ainda necessita de maturidade para lidar com isso; encara a vida com um ponto de vista bem mais ingênuo e otimista que o esperável para alguém que já sofreu o tanto que ele sofre desde criança; grita o tempo todo e toma o máximo de atitudes impulsivas que lhe são capaz.

A doce bruxinha Melie encarna direitinho o papel de heroína secundária mais experiente, com um plano de fundo interessante ocasionado por sua maldição, que muda sua personalidade para outra bem mais agressiva quando se sente tensa ou intimidada, sendo ambas muito legais e úteis em tela quando utilizadas. O Doc é entretenimento puro em todas as suas tentativas frustradas de lidar com qualquer coisa naquele mundo. Alma e Yaga fazem bem aquilo de mestres mais velhos, ela, com bem mais coração e uma porção de cenas tocantes, ele, mais misterioso, inatingível. O capitão da Inquisição, Dragunov, é o tipo de vilão de motivações tridimensionais, recheado daquele carisma capaz de atrair uma porção de admiradores equivocados.

Todo o universo e as pequenas regras dentro dele dão bastante gás e oportunidade para explorá-lo mais a fundo. O visual mistura contos de fadas medievais com um futurismo mágico steampunk colorido lindíssimo. A ideia deles viverem nos céus, com ilhas acima das nuvens, naves que imitam navios e toda uma estética marítima nas alturas é legal aos olhos. A mítica de criaturas que caem em ovos sei lá de onde, infectando com superpoderes aqueles que sobrevivem ao seu contato, é instigante. E o modo como os feiticeiros usam esses poderes em batalha, com muita luz, brilhinho e explosões, além de variações menos agressivas e mais criativas, como a do cara das bandagens com o caixão, é shounen demais.

Até então, tudo um prato cheio para fãs da demografia. Mas quando vamos numa escala mais a fundo, as coisas ficam ainda melhores, pois o anime usa toda essa plataforma para tratar de temas bem condizentes com a atual realidade global, como preconceito de classe, racismo, cultura de ódio, violência contra imigrantes, eugenismo, religiosidade do Estado e fascismo – mas organicamente, com tais pautas conversando em coerência dentro da história que está sendo contada, fazendo sentido com o retratado até então.

Algumas das passagens mais bonitas, emocionantes e revoltantes exploram esses temas muito bem. E efetivamente tomando partido, estipulando que os feiticeiros estão do lado do “bem”, sendo perseguidos e sofrendo violência apenas por serem quem eles são, enquanto os militares inquisitores do lado do “mal”, incentivando a segregação, prendendo, julgando e executando os feiticeiros de acordo com suas réguas morais. O segmento inicial, com Seth e Alma sendo perseguidos dentro de um vilarejo, reforçado mais tarde por alguns flashbacks de que suas vidas sempre foram assim, é bastante incômodo. Um arco mais pra frente, numa missão dentro de uma cidade fabril comandada por um militar “supremacista humano”, mergulha de vez no subtexto xenofóbico/eugenista, com alguns diálogos que dão vontade de chutar os móveis da casa.

O roteiro trabalha muito bem em tela um tipo de hipocrisia bastante recorrente desse lado de cá da realidade, onde pessoas, aparadas pelo Estado ou não, enxergam a sociedade como um sistema de castas. Em várias ocasiões, o anime alegoriza isso, naquilo de “não queremos dar a essas pessoas os mesmos direitos humanos dos quais gozamos, mas sabemos que precisamos delas para executar tarefas que consideramos menores perante nossa grandeza”, saca? As mais evidentes são relativas ao fato de os feiticeiros serem “ideais” para proteger o mundo dos Nemesis, pois já foram contaminados por eles antes, então não tem tanto a perder (só as vidas). Outra destacável é toda a situação dentro da já citada ilha fabril, que recebeu durante anos imigrantes mantendo os serviços pesados em tal lugar, mas os colocou em guetos, com todo um resto de sociedade “civilizada” acreditando estar acima daquilo e rejeitando-os com o passar do tempo. Nazismo, ditadura militar aqui do Brasil, muro de Berlim, Make America Great Again, são várias as comparações que podemos fazer.

E se esse capricho no subtexto não é o suficiente para impressionar, o anime vai ainda mais longe, brincando com a própria narrativa ao dar, em certos momentos, a palavra para o “outro lado”, gastando episódios inteiros apenas para humanizar os vilões e cravar que existe gente boa em ambos os fronts de uma guerra ideológica. Falei mais a respeito disso nesse texto sobre o 9º episódio, onde colocam um soldado recém-convocado no protagonismo, para que acompanhemos através de seus olhos vários dos ideais que lhes foram pregados mudando conforme ele entra em contato com a corrupção dentro do exército.

No entanto, isso não ocorre só com os vilões, mas também com outros que estão do lado “certo” do jogo. Tem uma cena extremamente bem feita durante um baile, em que um bruxo bastante conhecido despeja uma série de preconceitos contra uma outra classe de feiticeiros, o que desperta a fúria de Seth. Mais pra trás, há um diálogo também otimamente bem colocado, em que um pai de família imigrante (na imagem acima), na favela, cujo filho foi contaminado por um Nemesis, decide tratar isso como se fosse uma simples gripe, rejeitando a ajuda dos feiticeiros, tamanho seu preconceito, mesmo sendo visto como igual ou pior perante as pessoas da cidade.

E o melhor de tudo é que Radiant faz isso utilizando toda aquela estrutura emocionante de jornada do herói, recheada de ação, com arcos onde entretenimento assumidamente farofa de torcer pelos personagens socarem a fuça dos vilões é o foco principal. Repito a pergunta, tem algum anime shounen de lutinha atual melhor que esse? Se sim, me avisem.


Esse texto toma como base os 21 episódios da 1ª temporada de Radiant. Aqui no Brasil, o anime está oficialmente disponível com áudio em japonês e opção de legendas em português pela Crunchyroll.


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