É extremamente difícil deixar de lado a memória tão viva da saga original d’Os Cavaleiros do Zodíaco no Brasil. Seja o fã que acompanhou a série em sua primeira exibição (na metade da década de 1990, via Rede Manchete) ou conheceu a série por meio de suas várias reprises (via Cartoon Network, Band ou Rede Brasil); a trama que adapta o mangá de Masami Kurumada possui elementos narrativos que conquistam espectadores de uma forma muito singular – que só os animes conseguem conquistar com seu estilo que os diferencia das produções de outros países. 

Assim, qualquer reinvenção da série que seja apresentada em nosso país sempre possui a sombra do anime original – para frustrar os planos da Toei Animation em lucrar ainda mais com a marca. Depois do esquecível Os Cavaleiros do Zodíaco – Ômega (lançado completo em DVD por aqui), do caça-níquel Os Cavaleiros do Zodíaco: Alma de Ouro (apresentado no Brasil via Crunchyroll e com os episódios dublados inéditos, até a publicação deste texto, em uma inexplicável falta de timing da distribuidora PlayArte), do embaraçoso Saintia Shô (apresentado via Crunchyroll no Brasil) e do controverso longa-metragem Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário; a Toei parte para uma audaciosa aposta, dessa vez em parceria com a Netflix, e nos apresenta Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco.

Mesmo antes da produção estrear, a enorme base de fãs que sustenta a fama e força da marca no mundo já tinha muito do que se queixar: o tipo da animação (com a computação gráfica substituindo a animação tradicional), a mudança de gênero de um personagem (Shun, que de homem sensível e pacifista passou a ser uma mulher determinada) e uma interação com elementos nunca vistos em qualquer produção anterior com tanta ênfase (helicópteros, tanques de guerra e personagens saídos de algum Counter Strike da vida).

Restava ao mundo aguardar a estreia e começar a pipocar críticas severas de saudosistas de plantão e youtubers com vídeos destilando repúdio.

Bem… Por incrível que pareça o mundo não entrou em colapso. Para pessoas sensatas, é muito claro que o objetivo dessa versão de Saint Seiya não é agradar os fãs da “série clássica”. E por conta disso, é possível “digerir” a proposta sem passar mal. Aos velhos fãs, seguramente muito curiosos com o resultado, muita coisa foi propositalmente dosada para que fosse possível assistir essa meia temporada sem convulsões. A começar pela abertura – embalada em uma regravação honesta e respeitosa da banda The Struts.

Com uma dinâmica mais ágil, coerente com a velocidade do interesse da garotada de hoje, e até surpreendentemente tendo cochichos do mangá original, a releitura (vamos chamar assim?) consegue atualizar a trama para um contexto contemporâneo de forma até inteligente – ou você não achava estranho no original os Cavaleiros Negros serem “cara-e-focinho” dos de bronze apenas com armaduras pretas?! 

São justamente essas injeções de nostalgia que, somada com vários gaps, comprometem o resultado final. Tentando se por no papel de uma criança e assistindo a série, não dá pra deixar de se perguntar porque a Marin usa uma máscara e a Shina uma maquiagem inspirada na banda Kiss (?!). Ou como os personagens vão parar no meio de um deserto para uma luta clandestina por motivações um tanto rasas e que contrariam o código de ética que (supostamente) aprenderam no treinamento. Sensações que muita criança da época da Manchete também teve com pérolas como os Cavaleiros Fantasmas ou o Dócrates fugindo da polícia.

Enquanto na série clássica a dramaticidade (quase que num nível de novela mexicana) costura as relações entre os protagonistas, nessa versão a relação entre eles brota de forma tão repentina que são obrigados a falar de amizade, time e trabalho em equipe repetidamente. A trilha sonora  é apática, sendo este um dos pontos mais marcantes em todas os animes que levam Saint Seiya no nome. Mas nada mais enfadonho que a tentativa forçada de humor através de um tipo de tampa de bueiro hi-tech. Soa como um remendo de roteiro advindo de alguma cabeça da direção com uma ordem de “temos que por mais humor nisso aqui”.

A Netflix vem acertando com várias releituras de séries clássicas como a nova versão da She-Ra e da Carmen Sandiego. São oportunidades de roteiristas apresentarem um olhar novo e atualizado para várias questões que sempre pareciam mal explicadas ou não eram tão discutidas no passado. E é justamente esse o ponto que faz com que essa versão dos Cavaleiros do Zodíaco para a Netflix não seja uma experiência tão ruim para ampliar o público (ou melhor: construir algum no gigantesco e pouco explorado mercado norte-americano) e ainda fazer um espectador de 25 anos atrás que não virou “otaku” – ou que acompanha e consome produções japonesas com regularidade – possa se reconectar com o melhor que Saint Seiya oferece: seu pano de fundo e elementos-chave.

A mitologia grega e deuses estão lá. As armaduras – com mais uma remodelagem eficaz. Os personagens carismáticos, os mistérios, lutas, golpes, brilhos, frases de impacto… Tudo em uma versão fast-food com alguns problemas e que não deve agradar a muitos fãs saudosistas. Mas para o público-alvo (que tem menos de 15 anos), ouso dizer que tem algum potencial. 

Sobre a versão brasileira, é muito nítida a estratégia de aproveitar a base de fãs da série no país para o número de views ser bem expressivo em um dos lugares onde a original mais fez sucesso no mundo. Os dubladores conseguem mais uma vez encarnar os personagens com esmero e é extremamente satisfatório ouvir Marcelo Campos junto ao elenco reprisando seus vários papéis. Todavia, abro um parênteses para a Shun – que pensei que se chamasse Shaun. 

A escolha da talentosa dubladora Úrsula Bezerra não consegue transmitir muita emoção para a personagem, que possui uma história com aquele viés de superação e força. Sua voz se assemelha a um meio termo entre o Naruto Uzumaki e a Rini de Sailor Moon. Ao lançar sua corrente, falta um bocado de emoção – que todos os outros dubladores conseguiram transmitir. Uma voz forte demais, para a adolescente deslocada dessa versão. A opção por manter o nome de “Shun” para a nova personagem por aqui mais atrapalha e confunde do que ajuda…

Talvez cientes de que Os Cavaleiros do Zodíado da Netflix é uma produção voltada para o público que cresceu com a Galinha Pintadinha ou que venera o Lucas Neto e acha a Lady Bug o máximo, a adaptação para o português tenha se dado uma liberdade também para usar termos comuns do dia a dia dos pequenos brasileiros hoje – cortesia de Marcelo Del Greco, que mais uma vez assina a versão brasileira do texto.

Aos fãs mais antigos, resta torcer para um retorno positivo. Acredito que é desse investimento que dependerá o futuro da franquia. No final, a sensação de que tudo passa rápido demais e a vontade de continuar assistindo pra ver até onde vai tudo aquilo é confusa – principalmente na mente de fã das antigas. Mas o que mais incomoda é a sensação de que o remake da Netflix, infelizmente, está a altura da atenção que a Toei e seu criador dão para a série.