Há algo ótimo sobre já estar calejado quanto ao cenário de “produções otaku“: o passe livre para observar e apreciar quando alguns clichês de gênero são utilizados para montar produtos que os satirizam, rindo de si próprios e das regras autoimpostas em cada nicho. Tá, tá, existem várias e várias outras coisas legais em acompanhar o mundinho de desenhos e gibis japoneses por muito tempo, eu sei. Até melhores que isso. Só que é tão engraçado dar de cara com algo que brinca com pontos específicos de determinados segmentos e, mentalmente, poder dar aquela piscadela de “eu sei o que você está fazendo aqui”. É como fazer parte de um clube fechado, que exige um tiquinho de experiência prévia para participar. Bobagem? Sim. Mas quem liga?

O nicho de shoujo magical girls (aquele onde as histórias, em geral, são protagonizada por meninas, que possivelmente ganham superpoderes, possivelmente vindos de algum “mascote” mágico, possivelmente enfrentando vilãs, provavelmente com figurinos espalhafatosos, que surgem em transformações ultradramáticas, musicadas, coloridas e purpurinadas), em especial, rendeu boas desconstruções/paródias nos últimos anos. O primeiro que deve vir à cabeça é Puella Magi Madoka Magica (2011), obra prima seinen que pega esses clichês de garotas mágicas e os utiliza num cenário de horror pessimista, rendendo uma das tramas mais lindamente agoniantes dessa década. Num lado inverso, há também Nurse Witch Komugi-chan R (2016), que também se apossa dessas repetições, mas caminhando para a chacota, elevando tudo a níveis absurdos de interpretação.

É mais ou menos nessa onda que Sarazanmai segue. Diria mais: propositalmente ou não, ele tanto brinca com os pontos de histórias SMG, quanto bebe do “pessimismo” de Madoka e do “absurdo” de Nurse Witch.

Sendo uma série original do estúdio MAPPA (Yuri!!! On Ice), dirigida por Kunihiko Ikuhara (Sailor Moon S) e chefiada por Nobuyuki Takeuchi (Fireworks – Luzes no Céu), Sarazanmai é uma viagem de ácido estranhíssima. Ela gira em torno de três estudantes do ensino fundamental que entram em contato com Keppi, um kappa* de motivações misteriosas que os transforma em shoujo magical boys… Ou melhor, em shoujo magical kappas! Isso acontece quando a criatura roubas as joias místicas dos meninos (através de suas bundas), o que os obriga a enfrentar kappas zumbis que vêm atraindo objetos na cidade (as coisas literalmente saem voando em direção a eles). Como recompensa, o trio pode colecionar “pratos” mágicos. Quando juntarem cinco, poderão fazer um desejo.

O anime acerta em muitos fronts. O modo como reúnem uma porção de personagens bizarros é um deles. O trio de principais conta com um personagem mais disfuncional que outro. Tem um garoto que engana o irmão mais novo, fazendo cosplay de uma idol apresentadora de TV e conversando com ele como se ela o conhecesse, a ponto de ir à consequência quase criminosas para manter essa farsa. Outro deles é apaixonado por esse primeiro e uso isso como desculpa para todo tipo de manipulação egoísta. E o último é, de fato, um criminoso. A maneira que usam os segredos desses personagens como gatilho para a narrativa é outro deles. E hilário aquilo que, justamente, “fortalece” eles em batalha, é a exposição de flashbacks constrangedores, o que deveria enfraquecê-los socialmente.

As várias decisões visuais absurdas também são ótimas. A “transformação” ocorrendo por, é… um kappa sugando o ânus deles e os “defecando” depois. Os vilões em grande escala, sendo derrotados por uma, aah, inserção anal. Parando pra pensar, tem bastante humor erótico aqui, não? E tudo fica ainda mais legal com os, como disse, pessimismos “madokianos” embutidos na trama. Os episódios dão viradas de plot surpreendentes aos espectadores, mas bastante negativas aos personagens. Divertido de assistir, mas pesado em alguns momentos.

O único problema no anime é a repetição de cenas com “molde” em cada episódio. As transformações deles em kappas, aquela descrição do que eles fazem enquanto são carregados pelo kappi num carrinho, os musicais deles enfrentando os kappas zumbi, os duetos dos policiais naquela sala de conferência antes de expor o “monstro da semana”. Tudo isso é muito legal de ver e enche os olhos num primeiro momento. No entanto, quando é repetido duas, três, quatro, cinco vezes e por aí vai ao longo da temporada, se torna apenas massante. Ainda mais quando os episódios são vistos em sequência numa maratona.

Sarazanmai é um anime bem interessante em ideia e quase perfeito em execução. Não é o tipo de coisa que funciona para iniciantes nesse meio, pois seu tom de paródia exige um conhecimento prévio do que ele está fazendo piada em cima (portanto, nada de sugerirem esse para a Maísa, hein). Ele é estranho, é absurdo, meio errado a alguns olhos mais conservadores, mas divertidíssimo quando os que assistem se deixam levar pela jocosidade do pacote todo.


Esse texto toma como base os 11 episódios do anime Sarazanmai, disponível com legendas em português pela Crunchyroll.


*Kappa: Criatura aquática do folclore japonês, geralmente descrita com a aparência de um anfíbio, mal intencionada, que ataca humanos quando vem à terra firme. Dizem as lendas que, para se proteger de kappas, é preciso riscar o nome num pepino e jogar na água.