O Inferno congelou, amigos. Porcos voam, a vaca tossiu, a Konami voltou a fazer jogos… tá, essa última coisa não aconteceu, mas um milagre de fato está sobre nós: One Piece foi redublado, sem cortes, e agora está disponível para nós na Netflix.

Para entender por que isso é tão milagroso, precisamos recapitular os caminhos que a localização de One Piece trilhou para chegar até aqui. One Piece, caso um setor bem hipotético de leitores desta coluna não saibam, é um animê do estúdio Toei Animation de 1999, adaptando um mangá de Eiichiro Oda que começou a ser publicado na Shonen Jump semanal em 1997. Desde o começo ele foi um grande sucesso, e isso só aumentou nestes últimos 23 anos de existência. Com filmes, especiais de TV, spin-offs, brinquedos, jogos, produtos e muito mais, ele logo virou um dos títulos mais lucrativos do Japão, e foi só uma questão de tempo até ele ser exportado para outros países, e é aí que a história fica triste.

O ano era 2004, e a empresa americana de licenciamento 4Kids Entertainment estava indo muito bem – com o sucesso de seus títulos principais, Pokémon e Yu-Gi-Oh!, ela reuniu o renome necessário pra se tornar responsável pelo seu próprio bloco de desenhos nas manhãs do sábado em um dos grandes canais estadunidenses (na época, essa era, indiscutivelmente, a maior exposição que você poderia dar a um desenho animado no país). Esses fatores devem ter tornado a oferta dela para licenciar One Piece para aquelas bandas bem atraente (corre um boato por aí de que ela só licenciou a série porque a Toei a “forçou” ao inclui-lo num pacote junto com o então muito bem-sucedido animê de garotas mágicas Ojamajo Doremi, mas não há provas disso, e eu pessoalmente duvido), e no fim, a empresa foi escolhida para fazê-lo.

Sanji e seu famoso pirulito (eita) na versão 4Kids | Imagem: Reprodução/Cartoon Network

Só havia um pequeno… não, imenso problema: a 4Kids não trabalhava com desenhos tão violentos quanto One Piece, e mesmo fora desse aspecto, a empresa sempre teve fama de ser bem intrusiva em suas adaptações, não só editando conteúdo que considerava impróprio para crianças, como também retrabalhando diálogos, cenas e músicas a seu bel-prazer. E One Piece não foi diferente… ou melhor, foi diferente, porque foi o pior caso de todos – inúmeros cortes de cenas, episódios pulados, detalhes de enredo reescritos, tom ajustado para um público mais novo… Nas mãos da empresa, One Piece praticamente se tornou um ícone de tudo que pode dar “errado” em uma localização de animê.

Antes de seguir com esta matéria, eu preciso ser advogado do diabo para a 4Kids um pouco. One Piece, em sua terra natal, não é um título para adultos, mas sim um título para “famílias”, uma noção que tem definições diferente entre culturas. Nos Estados Unidos, ser “para família” significa “ser para crianças só que incluindo conteúdo subtextual que agrada os adultos”, enquanto que no Japão, significa “ter conteúdo que agrada os dois igualmente”. É meio difícil de explicar, mas basicamente, se você comparar um filme animado da Disney com um típico episódio de Detetive Conan (disponível agora na Crunchyroll!), dá para ter uma ideia.

Enfim, com tudo isso eu quero dizer que a decisão de direcionar One Piece ao público das manhãs de sábado americanas não foi absurda – aos olhos de qualquer pessoa tentando vender a marca, “suavizar bastante a série para dar a ela o máximo de exposição possível” é uma decisão bem racional, ainda mais quando ela vem acompanhada de brinquedos e produtos que definitivamente não são direcionados a um público mais velho, o qual foi o caso de One Piece.

Na versão 4Kids, a arma de fogo de Helmeppo e transformou em uma… Nisso aí. | Imagem: Reprodução/Toei Animation

O problema é que não deu certo. Não há números confirmando isso, mas ao observar a situação atual de One Piece, que passou das mãos da 4Kids para as da Funimation em 2007, podemos pressupor que a versão pesadamente alterada do animê não conquistou as crianças do público-alvo, sendo cancelada aos 104 episódios, o último equivalendo ao episódio 143 japonês – sim, muita coisa foi cortada! (Dito isso, devo observar que a 4Kids já estava com problemas financeiros na época que podem ter ajudado). Acaba sendo uma história fascinante da localização, mostrando que só expor algo a um público mais amplo de nada adianta se o conteúdo não o agradar, e muito dinheiro pode ser perdido aí.

Infelizmente, os efeitos da versão de One Piece da 4Kids se estenderam para além dos Estados Unidos. No mercado de licenciamento de animês, é muito comum a terra do Tio Sam servir como um “centro” de distribuição – ou seja, eles seguem uma rota do Japão para os EUA, e dos EUA para outros países. Tal foi o caso de One Piece para nós quando ele foi para o Cartoon Network e para o SBT na 2ª metade dos anos 2000, e… bom, acho que não preciso explicar mais do que isso, não é mesmo?

Mas enfim, enorme tangente da 4Kids terminada – eu digo que a nova dublagem de One Piece é “milagrosa” porque é o primeiro caso na história deste país em que um animê previamente lançado com uma adaptação da 4Kids ganhou uma nova dublagem em cima da versão original. One Piece teve um privilégio que Yu-Gi-Oh!, Músculo Total, As Super Gatinhas, Sonic X, dentre outros, não tiveram (e que aposto que não terão). Aliás, podemos estender isso a outras empresas de localização, como séries que recebemos através da Saban (Shinzo, Super Pig, Flint, o Detetive do Tempo) e da Viz Media (Zatch Bell, Mega Man NT Warrior). Isso é muito especial e acho que está sendo bem pouco celebrado, então, estou aqui para cumprir esse papel. Estou celebrando!

Yu-Gi-Oh!, Shinzo e Zatch Bell!, séries que talvez nunca vejamos em suas versões integrais e dubladas por aqui. | Reprodução: 4K Media/Toei Animation

A nova adaptação também serve para ressaltar uma coisa constantemente ignorada no mundo da localização. Fãs de dublagem se focam bastante – excessivamente, eu diria – na escalação do elenco e na direção quando avaliam a qualidade de uma dublagem, mas a verdade é que vários outros fatores também afetam essa “qualidade”, dentre eles, o roteiro. Claro que um bom ator é um bom ator, mas um bom texto sempre contribui muito mais para um bom desempenho do que algo jogado no Google Tradutor, por exemplo.

Eu argumento que mesmo se a nossa dublagem da versão da 4Kids tivesse um elenco e direção impecáveis (e eles eram bons!), ela ainda teria uma enorme desvantagem contra a nova dublagem simplesmente porque o roteiro adaptado da 4Kids é mais fraco que uma tradução direta do japonês.

Isso é um fato – a 4Kids escrevia seus desenhos para serem mais fáceis de entender, mais explicativos, mais tagarelas e menos sutis, e um roteiro sem essas características simplesmente soa melhor (pelo menos para a maioria, posso apostar). O mesmo vale para a música – eu gosto de dizer que a música é a maquiagem da voz, e a trilha sonora da Toei é uma maquiagem magnífica, em oposição à maquiagem da 4Kids, que era constante, incompatível com muitas cenas, e… chatinha no geral, sabe?

Luffy, tranquilão, feliz demais | Reprodução: Toei Animation

Mas só para deixar claro: eu não estou dizendo isso porque acho a nova dublagem ruim – pelo contrário, está sendo um enorme deleite ouvi-la, e estou muitíssimo ansioso para ver (e ouvir!) mais (e por sinal, acho divertidíssimo o fato de termos recebido esse exemplo de homem crescido dublado por uma dubladora – Luffy e Carol Valença, respectivamente – poucos dias antes da minha última coluna ser publicada. É o pior melhor timing!). Eu só digo que antes de comparar dublagens, a gente precisa pensar no contexto e nas coisas que cercam as vozes gravadas, porque eles têm um peso muito maior do que costumamos dar.

Sinto que há análises a serem feitas sobre escolhas de adaptação das duas dublagens, mas acho que isto basta para esta coluna – vamos deixar isso para um outro dia. Uma segunda dublagem de um animê americanizado sem as americanizações, cara… Apesar de todas as coisas ruins que este ano nos proporcionou, eu aprecio este pequeno milagre, e era só isso mesmo que eu queria transmitir aqui. E vocês, o que estão achando da nova dublagem? Estão ansiosos para Alabasta e além? Mandem aí nos comentários (educadamente, né, povo?), e nos vemos numa futura coluna!


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