A cultura pop japonesa, aqui no que se refere a produtos como mangás, séries animadas, tokusatsus e cinema, é nichada dentro do espectro de “universos” que fazem parte do mundo “nerd” (ou geek, numa qualificação internacionalizada).

Não há problema em ser um nicho dentro do nicho em 2021, onde o mundo avançou tecnologicamente e, graças à internet, existe a possibilidade de consumo desses produtos citados através de canais oficiais, fazendo da vida daqueles que querem investir tempo e dinheiro nisso bem mais prática.

Com o preço de uma assinatura mensal, é possível acompanhar um alto número de séries e longa-metragens nipônicos através de serviços de streaming (dos específicos Crunchyroll e Funimation aos gerais, mas também muito bem equipados, Netflix, Prime Video, Telecine Play, dentre outros). Por alguns poucos reais, capítulos de diferentes mangás podem ser acompanhados digitalmente, em português, publicados de maneira simultânea ao Japão por aqui pela editora JBC.

Se o inglês ou o espanhol estiverem em dia, ainda outros de muito sucesso podem ser lidos de graça, distribuídos oficialmente pela editora Shueisha em sua própria plataforma. E quando a legalidade da equação é deixada de lado, há ainda todo um outro mundo de possibilidades, que não devemos ser hipócritas e fingir que não existem, pois evidenciam o quanto o mundo cresceu tecnologicamente e, bem mais que antes, o consumo desses produtos é acessível àqueles que dispõem de um tiquinho de vontade e um punhado de ferramentas.

Contudo, não era assim há mais de 30 anos quando Akira enfim veio ao mundo. E, de certa forma, há de se convir que talvez o cenário de hoje, para o alcance de produções pop japonesas no ocidente, não fosse tão amplo e fácil sem a existência de Akira.

Digamos que o longa-metragem animado feito pelo mangaká e cineasta Katsuhiro Otomo, no estúdio TMS, lançado em 1988, “pavimentou” o caminho para que outros desenhos, de proporções grandiosas semelhantes ou com uma execução mais simples, conseguissem ultrapassar as barreiras asiáticas, chamando atenção mundo afora. Mais ou menos como uma Selena para Gloria Estefan, Shakira, J. Balvin ou demais cantores do pop “hispânico” nos Estados Unidos.

A história não era inédita, sendo adaptada de um mangá seriado do próprio Katsuhiro, publicado entre 1982 e 1990 na Young Magazine, mas foi quando chegou às telonas que tudo ganhou um novo alcance.

Imagem: Tetsuo caindo do céu no meio dos prédios de Tóquio.

Se jogando para o mundo… literalmente! | Reprodução: Sato Company

Akira foi um sucesso dentro e fora de casa, impressionando espectadores não só pelo tipo de história contada (já chego nisso), mas também pela assombrosa qualidade técnica da animação. Com quase 10 milhões de dólares gastos em custos de produção à época, uma quantia considerável quando comparada com o que costumeiramente era destinado a filmes do tipo, o longa foi uma grande aposta que, passado o tempo, se mostrou bastante efetiva, arrecadando 50 vezes mais em lucros posteriormente.

O investimento é justificado no quão luxuoso é o resultado final, sendo ainda hoje referência entre admiradores de animação como “forma”. O filme foi feito utilizando como técnica o desenho e pintura à mão em celuloide, trazendo mais de 2200 cenas e 160 mil células sobrepostas ao longo de seus 125 minutos, mais que o dobro do que geralmente é utilizado em longas com essa duração.

São vários e vários os momentos onde são posicionados 24 quadros de animação por segundo. E em tela, isso cria a percepção de que tudo é muito fluido, detalhado, específico nas movimentações de personagens e cenários, sem repetições, loops. O cuidado com os meandros de Akira é tão grande que, das 327 cores utilizadas nele, 50 eram inéditas, criadas justamente para o filme.

Os números são todos bem impressionantes e é muito interessante que, por contas dessas qualificações técnicas, Akira tenha entrado para um panteão de animações extremamente importantes, não só para o cenário japonês ao resto do globo, como também para filmes animados como um todo.

Mas creio que o que faz Akira extrapolar isso, que o que tenha o transformado num clássico do cinema mundial e em uma das peças pop mais referenciadas em mídias conseguintes ano a ano, é o fato de, além desse aparato em execução, a história do Katsuhiro Otomo ainda hoje conseguir ler alegoricamente os distúrbios de uma realidade onde a sociedade não conseguiu evoluir o bastante para aparar seus avanços tecnológicos. E os resultados são catastróficos, dentro ou fora das telas.

Imagem: Tetsuo e seu braço mecânico.

Tetsuo, fora de controle… | Reprodução: Sato Company

São muitas as interpretações que podem ser tiradas de seu roteiro, Akira é um filme que pode ser lido de várias formas. Todas pessimistas, todas demonstrando a degradação de uma sociedade, todas exemplificando o que de pior há em suas diferentes camadas quando a manutenção fica de lado.

Por mais que isso seja contado através de uma estética sci-fi cyberpunk visualmente intrigante, os paralelos desse 2019 Blade Runner com o nosso 2019 pé no chão são inescapáveis: abandono do Estado; violência policial; fascismo; obscurantismo; culto bélico; bullying; encontrar seu lugar no mundo e se provar aos outros. Está tudo lá.

Se passando numa Tóquio que tenta se reerguer após uma explosão devastadora que, trinta anos antes, deu início à Terceira Guerra Mundial, ele centra a história numa gangue de motociclistas do Ensino Médio, da qual fazem parte os garotos Kaneda e Tetsuo.

Criados num orfanato, a dupla alimenta uma relação de poder da parte do primeiro, líder do grupo, e submissão mal compreendida da parte do outro, que sempre sofreu na mão dos mais fortes por ser menor e mais fraco que os demais rapazes de sua idade. Enquanto enfrentam uma gangue oposta pelas ruas, Tetsuo “atropela” uma criança de aparência esquisita e capacidades mentais sobrenaturais procurada pelo governo.

Nesse contato, Tetsuo acaba despertando seus próprios poderes, também sendo “abduzido” por autoridades militares, que forçam ainda mais esses dons a seus próprios fins. Contudo, Tetsuo consegue escapar, deixando um rastro de destruição e loucura por onde passa, acarretando ainda outro perigo para a cidade: o de esses poderes serem capazes de despertar “Akira”, um ser incontrolável que talvez estivesse ligado ao desastre de três décadas atrás.

O lance é que o roteiro consegue tirar o melhor em situações narrativas que, como dito, simbolizam problemas sociais do mundo real, mas adaptados para aquele pedaço de realidade retratado.

É impossível assistir aquela cena onde a polícia executa a tiros um suspeito, acompanhado de uma criança, no meio da rua, sem traçar um paralelo com casos de truculência vindos de autoridades armadas desse lado da tela (a morte do músico Evaldo Rosa dos Santos pelo exército no Rio de Janeiro com mais de 80 tiros enquanto saia com a família para um chá de bebê, no ano retrasado, me veio imediatamente à cabeça).

Também é bem fácil comparar o quão parecida ao que conhecemos é a destruição a cidade em pontos como segurança, limpeza e escassez na educação quando não há qualquer investimento decente nisso (o ambiente inabitável da escola dos personagens não foge muito ao de colégios da rede pública aqui do Brasil, em que impera uma desesperança no futuro, em que alunos anseiam por escapismos e opções de crescimento momentâneas, já que o futuro é inserto).

Imagem: Policiais atirando com AK-47 ou arma parecida.

A violência policial é uma constante em ‘Akira’. | Reprodução: Sato Company

A representação de como funciona um Estado fascista aqui também é muito boa. Além dos pontos citados acima, o subtexto do filme recolhe vários signos que poderiam ser adaptados tanto da Itália de Mussolini ou da Alemanha de Hitler, quanto de ditaduras comunistas ao redor do globo ou militares aqui do Brasil.

O exército utiliza seu poder bélico para se apossar dos direitos individuais, prendendo Tetsuo e as outras crianças e fazendo experimentos com seus poderes. E quando isso e outros problemas são questionados, a resposta vem por meio da violência: multidões protestando nas ruas são rechaçadas, organizações de resistência são executadas.

Mesmo um veículo midiático, mais para o fim da história, ao tentar cobrir a aparição do “Akira”, tem seu helicóptero derrubado. E não é como se existisse um motivo nobre por trás disso tudo, já que, com o andamento do filme, descobrimos que o próprio governo tem culpa em eventos desastrosos do passado, além de todo um segmento ser dedicado a retratar um general dando um golpe nos governantes da cidade para tomar o poder para si.

O obscurantismo também é descrito de forma bem angustiante, ainda que sutil ao pacote todo, através de militantes que acreditam que a figura de “Akira” ressurgirá como um “messias”, um herói corajoso que lutará contra o sistema vigente e defenderá liberdades – ainda que, na realidade, o que se mostre quando Tetsuo começa a ganhar apelo midiático, seja um demônio genocida que saboreia mortes como um servo do inferno.

Uma das cenas mais impactantes exemplificando isso é quando uma multidão se reúne em direção ao Tetsuo próxima ao estádio olímpico, que já começava a perder o controle, gritando que aquele é “Akira”, que aquele é seu salvador. Então, um dos cidadãos levanta a dúvida se aquele é ou não o “escolhido”. Sem pensar muito, a primeira reação de outro contra ele é violentá-lo, esmurrando-o de cima de um carro e gritando a plenos pulmões que aquele era “ele”, cravando que não havia espaço ali para pensamentos que não fossem os primordiais em tal pauta.

Imagem: Tetsuo em cima de um carro no meio de uma multidão.

“- Não se enganem, esse não é o Akira…” | Reprodução: Sato Company

Ainda outra maneira de ler Akira é como uma parábola sobre a adolescência, as mudanças ocorridas mental e fisicamente nesse período, e todo o transtorno coming of age de encontrar seu lugar no mundo. Claro, tendo o bullying como um gancho para isso. Tetsuo serviria como um avatar, reunindo tais problemas despertos quando crescemos, mas com consequências paranormais que levam a experiência a outro nível.

Quando criança, o rapaz sofria na mão de garotos maiores no orfanato, sendo defendido pelo Kaneda. No entanto, o que poderia ser uma amizade saudável criada através desse laço se converte numa relação esquisita de poder e inveja, com Tetsuo acumulando rancor pelo destaque adquirido por Kaneda (é o líder da gangue, o com a melhor moto, o mais forte do grupo, etc.) e extravasando isso ante ao rival quando possui as capacidades propícias.

Essas próprias capacidades paranormais, que afetam sua cabeça e seu corpo, funcionariam como uma metáfora para o turbilhão de hormônios desse período, mas com consequências terríveis para todos os envolvidos.

É linda a preocupação de texto quando primeira coisa que ele faz quando foge do hospital é voltar ao bar que não pôde entrar no começo do filme, pois precisou cuidar das motos dos companheiros de grupo, e pedir uma droga específica remetendo ao nome de sua gangue. É aquilo de “se provar aos outros”, assumir o controle da narrativa, só que do modo mais devastador possível.

Akira é uma obra-prima, um clássico, um dos melhores filmes japoneses em todos os tempos, uma pérola que merece ser redescobrida por novos fãs do gênero que talvez torçam o nariz para produções mais antigas. Trinta e tantos anos se passaram e ela não envelheceu nada, seja como forma, seja como conteúdo.

É o recorte perfeito de um momento dentro da cultura pop nipônica que se eternizou como peça fundamental da cultura pop internacional. Em tempos onde supremacistas brancos marcham defendendo um neonazismo que já não deveria mais encontrar respiros, ou onde cidadãos e um presidente ativamente se colocam contra a democracia, defendendo uma intervenção militar aqui no Brasil, é bom encontrar retratado nas artes uma história que apresenta resultados urgentes para uma geração que resolveu não se importar com o que de ruim aqueles que detém o poder, se não vigiados, podem causar.

Um animê tão político que já defendia ideais antifascistas há tanto tempo. Tão desconfortável quanto estupendo, Akira ainda é muito atual, mas os motivos para isso são assustadores.

Aqui no Brasil, “Akira” está oficialmente disponível via streaming através da Netflix e do Telecine Play.


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