Outro dia, estava eu navegando pelo Twitter e vi que um amigo compartilhou uma matéria recente do site CBR sobre uma declaração do cineasta e animador Hayao Miyazaki (80), co-fundador do estúdio Ghibli, sobre a franquia Ultraman. Esse amigo, no caso, também é fã da franquia e levou o caso na esportiva. Conhecido há longa data por criticar algumas obras da cultura pop japonesa, Miyazaki tenta associar Ultraman com o vício de crianças em televisão.

Tal afirmação não vem de agora. Miyazaki explica seu problema com Ultraman em dois textos coletados no livro Turning Point: 1997-2008. No artigo “Relembrando os dias de minha juventude”, publicado na The Akahata Sunday Edition em 1998, ele escreveu o seguinte:

As crianças começaram a pensar que o mundo dentro da televisão era mais atraente do que a realidade no momento em que o Ultraman foi transmitido pela primeira vez. Para esta geração Ultraman, a melhor coisa do mundo era o Ultraman.

Imagem: O próprio e primeiro Ultraman.

Ultraman viciou crianças japonesas em TV? | Foto: Divulgação/Tsuburaya

Neste mesmo texto, Miyazaki associa o crescente vício das crianças ao escapismo pela TV com uma sociedade que está falhando com as crianças na vida real.

No artigo “Nada me deixa mais feliz do que ver as crianças se divertirem“, publicado no Graph Mitaka em 2002, após a inauguração do Museu Ghibli, Miyazaki tenta comparar mais uma vez a “geração Ultraman” com o fracasso dos pais.

Os pais falharam … e hoje vemos, cada vez mais, que [seus filhos] não têm ideia do que fazer. Entre amigos na casa dos quarenta, vários são da geração Ultraman, e esse problema parece ter se tornado cada vez mais comum entre eles.

Miyazaki afirma que menos pessoas estão dispostas a criticar os efeitos da televisão, caracterizando isso dizendo “tudo e todos se tornaram progressivamente mais estúpidos“.

Apesar de expressar tais preocupações sobre como a mídia retrata a violência, Miyazaki não se aprofunda em nenhuma crítica particular ao conteúdo específico de Ultraman.

A mesma reportagem frisou que Miyazaki também havia comparado isso com seu próprio vício de infância com os mangás de Osamu Tezuka (1928~1989), e trata do assunto em um tópico onde ele expressa seus próprios sentimentos, que podem ser considerados como paradoxais.

Imagem: Anno e Miyazaki.

Hideaki Anno e o veterano Miyazaki | Foto: Reprodução/Studio Ghibli Brasil

Além disso, a matéria da CBR também cita o diretor Hideaki Anno (60), que foi animador do filme Nausicaä do Vale do Vento (1984), dirigido por Miyazaki. Anno tinha 6 anos quando Ultraman foi ao ar pela primeira vez em 17 de julho de 1966 e está dirigindo o filme Shin Ultraman, que estreia neste ano. Na teoria, Anno faz parte da primeira geração que acompanhou Ultraman. Ambos são amigos e certamente as opiniões deles sobre Ultraman seriam bem divergentes (espero que sejam cordiais).

Confesso que não sou um grande fã de Miyazaki, embora tenha assistido alguns filmes do Ghibli. Reconheço sua importância para a indústria dos animês. Eu entendo o seu ponto de vista, conhecendo suas fortes opiniões, mas achei essa comparação extremamente exagerada. E digo com propriedade por ser fã de Ultraman.

Confesso que já tive minha fase de vício por TV na minha infância, mas era por mero entusiasmo de uma criança dos anos 90 que curtia programas infantis da época, especialmente dos heróis japoneses. Partindo da premissa de Miyazaki, Jaspion e cia “arruinaram minha vida”, mesmo também tendo outros hobbies fora das telinhas.

Os filmes de Miyazaki e Ultraman possuem elementos em comum: falam sobre realidade, fantasia e transmitem valores. Obviamente, com estilos próprios. Eu poderia tratar aqui sobre os efeitos que o cinema poderia fazer com as crianças e responsabilizar algum super-herói da Marvel ou da DC por algum tipo de ponto de inflexão, mas não me deterei nisso. Existem casos e casos e não podemos generalizar, pois isso não seria uma análise e sim um mero pretexto ou birra por não gostar de algum tipo de produção.

Miyazaki está no seu direito de detestar Ultraman, por qualquer que seja o motivo. O problema é que antes de qualquer embasamento, ele deveria ter um conhecimento prévio sobre a série. A verdade é que a franquia segue atravessando gerações e são inúmeros os episódios que falam sobre coragem, determinação, esperança, etc. Basta procurar.

Nunca é demais tomar como exemplo Os Cinco Mandamentos Ultra: Não ir pra escola com fome; Pular da cama ao nascer do sol num dia bonito; Tomar cuidado com os carros quando passar na rua; Não se aproveitar dos outros; Brincar descalço no chão. Ensinamentos simples e que qualquer criança, em tenra idade, pode carregá-los pra si e por toda a vida. Tais foram apresentados no último episódio de O Regresso de Ultraman (1971~72).

Imagem: Mandamentos Ultra.

Os Cinco Mandamentos Ultra ensinados por Jack no final de O Regresso de Ultraman | Foto: Divulgação

Bem como outras séries tokusatsu, Ultraman sempre enfatizou o valor da amizade, da honra, da ética, do respeito ao próximo, etc. Aliás, esse tipo de produção sempre passou lições como essas de maneira sutil, mesmo que o estilo de algumas séries mais antigas tivessem enredos com situações mais fortes, dramáticas e até mesmo violentas.

A Tsuburaya foi importante em crises como o terremoto e tsunami de 2011 e agora com a pandemia da COVID-19. A Ultraman Foundation foi criada por causa da primeira situação e vem cumprindo o propósito de fazer as crianças sorrirem.

Hoje, com a pandemia ainda em curso, a mesma fundação promove atualmente um especial com episódios selecionados da franquia no YouTube, todos com mensagens propositivas e que agreguem às crianças, enquanto há distanciamento social.

Eu mesmo fui testemunha ocular de um espetáculo de Ultraman, realizado na edição de 2019 do Anime Friends. Eu vi crianças com seus pais atentos à trama, torcendo pelos heróis e até mesmo erguendo os braços para invocar a luz de Ultra, para ajudá-los em mais uma batalha contra Belial. Ver várias famílias unidas, no meio de fãs hardcore, não tem preço.

Em parte, a preocupação de Miyazaki pode ser legítima – considerando que sua geração é diferente da nossa e de nossos pais, e levando em conta também a sua implicância. Mas é preciso compreender o que é a franquia, antes de tudo. Ultraman não é ruim como o cineasta deve pensar e é um bom entretenimento para crianças de 8 a 80, assim também como os seus filmes.


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