Na última quinta-feira, dia 15, estreou na Netflix o filme Tudo por Ela, uma adaptação em live action do mangá Gunjô (Além-mar, em tradução livre) publicado por Ching Nakamura de 2007 à 2012. A sinopse inicial da história é bem simples e direta: Nanae é vítima constante dos abusos de seu marido violento e pede que Rei, sua antiga colega de escola, o mate. Rei é completamente apaixonada por Nanae e, incapaz de dizer não a mulher que ama, assassina o marido de Nanae. A história segue as duas em uma fuga após esse assassinato.
Gunjô é uma história bastante conhecida no meio yuri e sua adaptação para live-action suscitou muitos comentários tanto sobre o mangá quanto sobre a adaptação. Portanto, para abordar o assunto de forma justa, esse texto será dividido em três partes.
O mangá

Divulgação.
Como já citado anteriormente, a obra original se chama Gunjô e foi escrita e desenhada por Ching Nakamura. O mangá sempre foi referido como uma obra violenta, triste, dolorosa e desconfortável.
O traço de Nakamura se constitui por ser visualmente cru e quase visceral e a obra aborda temas como violência doméstica, relacionamento abusivo, abuso paternal, estupro, violência psicológica, homofobia, homofobia internalizada etc. Ou seja, Gunjô não é uma história de amor e na verdade é uma obra cheia possíveis gatilhos para mulheres e pessoas alinhadas ao feminino, sobretudo as sáficas.
Nakamura conta uma história de duas pessoas completamente quebradas, imersas em situações abusivas e tóxicas que só são capazes de reproduzir esse mesmo padrão uma com a outra. Nanae foi abusada sua vida inteira por pessoas que deveriam lhe dar amor e cuidar dela, ela é por vezes deliberadamente perversa e se aproveita do amor de Rei.
Enquanto isso, Rei é uma mulher lésbica com uma quantidade gigantesca de homofobia internalizada que joga tudo pro alto por causa dessa mulher que não a ama e nunca vai poder amá-la, mas por quem tem uma certa obsessão. Toda essa homofobia internalizada e essa afeição não muito saudável por Nanae faz Rei também agir de maneira tóxica e protagonizar situações de homofobia, como vítima e como reprodutora.
Resumindo, Gunjô é uma história de duas pessoas quebradas, cheia de situações tóxicas, pois Nakamura quer produzir uma narrativa complexa de emoções que te esmagam como uma bigorna. Entretanto, Gunjô não é inerentemente lesbofóbico! O mangá não é perfeito e possui algumas falhas, mas ele não tem um discurso anti-gays. Inclusive, Ching Nakamura é uma mulher LGBT+ e ela até publicou um livro sobre sua experiência morando com sua namorada.
O filme da Netflix

Divulgação.
O live action escrito por Nami Sakkawa e dirigido por Ryuichi Hiroki traz Kiko Mizuhara e Honami Sato nos papéis de Rei e Nanae, respectivamente. O roteiro é bastante parecido com a história original, com exceção do final, mas o tom da produção audiovisual é completamente diferente.
O filme tem uma estrutura interessante, utilizando-se de saltos temporais iniciais para dar o background da história. Ao mesmo tempo, o live-action se estrutura de uma forma um tanto diferente da narrativa original: algumas situações apenas citadas no mangá se tornam visualmente explícitas no filme e alguns aspectos que são mostrados claramente no mangá, no filme são expressos de maneira mais sutil.
Analisando como uma adaptação, pode-se dizer que apesar de ter 2h25min de duração a produção enxugou muita coisa. Alguns fatos foram adiantados, reestruturados e algumas partes foram completamente amputadas, o que é completamente compreensível e não causa um grande problema na transposição total da história. Quem leu o mangá provavelmente vai sentir a narrativa se desenrolando um tanto rápido demais, mas quem assistir unicamente ao filme talvez não tenha a mesma sensação.
Tirando a última meia hora final, a história é praticamente a mesma, porém incontavelmente mais palatável. O filme é leve e tem uma trilha sonora um tanto romântica. Quase todo o peso emocional incutido no consumidor que o mangá possui foi retirado.
O longa continua a ter um peso emocional para as personagens, mas enquanto a história original traz um grande desconforto pro leitor, a versão live-action é bem confortável de assistir. As emoções ainda estão ali, as questões e os problemas das protagonistas também, porém de uma forma muito mais palatável que não deixa a experiência de consumo pesada.
Por um lado, se torna confortável assistir ao filme, até as partes mais tensas foram um tanto suavizadas; por outro, talvez essa suavidade faça com que os momentos pesados soem um tanto levianos para algumas pessoas. Entretanto, as questões seguem presentes lá, a Nanae continua tendo todo o passado de abusos e a Rei continua tendo muita homofobia internalizada, porém, enquanto no mangá isso é expresso na forma de frequentes socos no estômago, no filme as questões aparecem no pequeno, de maneira um tanto mais sutil.

Reprodução.
Tudo por Ela oscila entre um tom mais leve e cenas de tensão, o que pode parecer um tanto fora do lugar para alguns espectadores, mas é meio que só um outro jeito de fazer cinema. Num geral, é uma história muito parecida, mas com um final diferente. A narrativa acaba soando, ao final de tudo, como um quase romance meio agridoce e conturbado por causa das questões das personagens, o que não acontece na obra original que, definitivamente, não é um romance.
O humor das protagonistas também é diferente. Enquanto na história de Nakamura as personagens estão quase sempre sérias, no filme elas sorriem bastante, algo diferente do esperado – principalmente pra Nanae, que no mangá está sempre de cara fechada, cheia de raiva e angústia e no filme possui uma energia mais amena.
Mudar o tom da narrativa através da atuação tornou mais fácil de digerir e de assistir. Considerando que as questões não foram completamente alteradas, a decisão pode ser vista como uma transposição interessante. Talvez ficasse muito maçante e pesado replicar a mesma energia do mangá – e talvez nem atingisse o mesmo efeito, uma vez que muito da tonalidade da obra original se dá pela arte de Nakamura.
Ainda assim, o longa possui algumas cenas desnecessárias, as cenas de sexo e talvez os vinte primeiros minutos são um tempo de tela que não acrescenta muita coisa na narrativa em si. Algumas das cenas iniciais têm a função de situar o espectador na história, mas essas cenas ocupam tempo de tela que poderia ter sido gasto aprofundando mais as questões das personagens em si e a relação conturbada que elas desenvolvem uma com a outra. Ter começado a narrativa após o assassinato, como no original, poderia ter sido uma escolha melhor.
Com a trama correndo de forma mais ligeira, têm-se um pouco a impressão de que parte da densidade da obra se perde e acaba não ocorrendo a catarse narrativa, mas o cinema é uma outra linguagem artística e não tem como construir em duas horas e meia de tela toda a tensão que foi desenvolvida em trinta e quatro capítulos originalmente.
O desfecho do filme é diferente do final do mangá, o que contribui para que Tudo por Ela seja uma obra um tanto independente. Enquanto o mangá é uma narrativa gráfica, crua e desconfortável, semelhante a se debater embaixo d’água, o filme se torna um quase romance um tanto novelesco de duas moças com grandes problemas sorrindo e dirigindo em direção ao horizonte.
Representatividade, preconceito e expectativa

Reprodução.
Já faz um tempo que se fala bastante sobre representatividade LGBT+ na mídia e quais seriam ou não boas representações. Infelizmente, por muito tempo, as representações LGBT+ eram apenas escape cômico ou sofrimento. No caso de mulheres lésbicas, as representações eram sua maioria trágicas, terminando em separação e/ou em morte.
Levando isso em consideração, é comum que queiramos mais histórias com finais felizes e menos histórias de sofrimento, portanto é justo que citemos narrativas felizes e relacionamentos saudáveis quando se fala em representatividade LGBT+. Acontece que, por mais que nós prefiramos histórias felizes, uma história triste não é necessariamente uma história LGBTfóbica.
Por mais que Gunjô seja uma história pesada e que a Nakamura faça as personagens sofrerem muito, você tem uma representação lésbica muito pior em Chio-chan Tsûgakuro (2014-18), que apresenta uma personagem transformando em alívio cômico o estereótipo de lésbica predatória, enquanto em Gunjô a lesbofobia advém do fato de Rei ter internalizado noções preconceituosas. Talvez o mangá de Nakamura não seja nosso ideal de representatividade, mas, de novo, ele não é inerentemente lesbofóbico e o mesmo vale para o filme de Hiroki.
Dito isto, entramos agora numa outra questão que diz muito sobre como o espectador vai receber uma obra: a expectativa. Como já dito anteriormente, quando se fala do mangá de Gunjô nos círculos de yuri, ele é referido como uma história pesada, quem vai ler não espera “lindo romance” e o mangá em nenhum momento se vende como tal.
Por outro lado, o trailer do live action da Netflix faz com que você espere um romance agridoce e na própria plataforma um dos gêneros é romance. Esses aspectos, talvez façam o espectador esperar um filme mais leve e divertido, e ao receber Tudo por Ela – um quase romance ou um romance agridoce, mas ainda permeado por questões complexas e muita homofobia internalizada – ocorra uma decepção.
Entretanto, sejamos justos, a propaganda não é enganosa. O filme é leve e confortável de se assistir e a narrativa acabou meio que se tornando um romance e, mesmo assim, ele continua não sendo inerentemente lesbofóbico!
Fica então a questão final: o filme é bom? Depende… O saldo final é uma versão novelesca da história original: um filme ok, com algumas cenas desnecessárias e um desfecho que sequer é inesperado. Em resumo: se você quer uma história complexa e pesada com um final mais interessante, leia o mangá; se você quer a versão novelesca mais agradável de se acompanhar, assista ao filme. Agora, se você quer uma história bonitinha de lésbicas existindo felizes, é melhor consumir outra coisa.
Tudo por Ela está disponível com exclusividade na Netflix. O mangá Gunjô é inédito no Brasil.
O texto presente neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
Interessante, vou querer ver as duas obras pra comparar mas sem esperar um filme feliz.