Quando falamos de representação LGBTQIA+ na mídia, estamos falando de um verdadeiro tabu que percorre aparentemente todo e qualquer tipo de produção. Não por acaso, lá em 2014 houve grande debate em torno da exibição do primeiro beijo entre dois homens gays em uma novela das nove aqui no Brasil, e até hoje qualquer simples menção a um personagem LGBTQIA+ em uma produção grande no nosso país acaba gerando comoção por parte de apoiadores e de pessoas que rechaçam qualquer presença não heteronormativa.
Apesar de ser um outro país, com outra realidade, esse “tabu” pelo jeito acaba também valendo para alguns animês e mangás. Claro, quando falamos de personagens LGBTQIA+ nessas produções, muitos vão citar Sailor Moon, Cardcaptor Sakura e Utena – A Garota Revolucionária, fora algumas obras com foco nesse público, como bons exemplos de representatividade – de fato, são.
Entretanto, mesmo nessas obras, essa representatividade de personagens queer (ou seja, que não se enquadram em padrões heteronormaivos) é, muitas vezes, velada e nunca pode ficar muito bem exposta: Touya, por exemplo, não sai por aí dizendo que é namorado de Yukito e vice-versa.
Além disso, alguns exemplos de personagens LGBTQIA+ em animês podem ser bem ofensivos. É nesse momento em que os produções shounens, especialmente as mais mainstream que atravessaram oceanos, entram em foco. A demografia shounen é provavelmente a mais popular no nosso país (e talvez no mundo) e dá origem a muitos animês famosos, mas nem sempre a representação queer nas obras que envolvem esse gênero são realmente boas.
Na realidade, algumas vezes pode ser até preocupante o modo como pessoas LGBTQIA+ são apresentadas nessas narrativas – que também costumam vilanizar personagens queer.
Vilania afetada
Um caso de representação consideravelmente ofensiva em uma produção shonen pode ser notada em Dragon Ball. A série é provavelmente um dos maiores representantes shonens que existem, possuindo todos os elementos que fazem o gênero tão conhecido: vilões que querem acabar com o mundo, torneios de luta e um protagonista que vai evoluindo com um intenso treinamento.
No meio da história surge o General Blue, um dos vilões do arco focado na organização criminosa Red Ribbon. Ele é um dos principais comandantes da terrível organização, um homem narcisista com poderosas habilidades psíquicas. Entretanto, além disso tudo, ele também parece ser homossexual.
Como citei antes, alguns casos de representatividade LGBTQIA+ não são abertamente explícitos e Blue entrar nesse grupo, mas todas as “dicas” sobre sua sexualidade estão lá: ele tem algumas características “afeminadas” (o que não é exatamente ruim) e se mostra totalmente avesso às tentativas de Bulma de tentar seduzi-lo (posteriormente, ela mesma acredita que ele possa ser um cara que não goste de garotas).
Mas o traço mais marcante da homossexualidade de Blue surge quando ele visita a Vila Pinguim e se mostra atraído por Obotchaman, um androide masculino – e nesse momento surge um dos maiores problemas em torno da caracterização de Blue.
Por mais que seja um androide, Obotchaman tem a aparência similar à de uma criança, ou seja, Blue se sentiu atraído por uma criança. Não basta a presença de Blue associar homens homossexuais à vilania ou se alinhar ao estereótipo de que todos os gays são afeminados e narcisistas, mas o personagem também precisa reforçar a ideia de que homens homossexuais são… pederastas.
É bem verdade que todo o contexto que envolve a figura de Blue é cômico, inclusive quando sua homossexualidade é levemente explicitada. Só que isso não é uma desculpa para apresentar um dos poucos personagens gays de toda série como um adulto que sente atração por crianças. Trata-se de uma representação mais do que problemática: é verdadeiramente repulsiva. Só que o caso de Blue é apenas a ponta de um iceberg que busca mostrar pessoas queer não apenas como vilãs, mas como seres verdadeiramente horríveis.
Os mercenários não podem amar
InuYasha é outro shonen que em um primeiro momento apresenta um personagem homossexual de uma forma bem pouco amigável. Como sempre, estamos falando de um vilão e o nome dele é Jakotsu, um dos membros de um grupo de mercenários chamado Shichinintai.
Ele é guerreiro poderoso, um rapaz afeminado e que vive dando em cima de outros rapazes. Essa sua última característica é algo que parece irritar muitos personagens, inclusive membros de seu grupo de yokais. Acontece que, entre os rapazes pelos quais Jakotsu se mostra atraído, está Inuyasha – e ele não esconde isso mesmo sendo inimigo do herói. O protagonista, porém, responde a qualquer elogio do vilão com bastante nojo, muitas vezes censurando Jakotsu pelo ato horrível deste se mostrar atraído por um homem.
O fato de termos aqui o protagonista de uma obra demonstrando nojo por um vilão gay não pelo fato de ele ser mal ou coisa do tipo, mas sim por ele demonstrar afeição junto a outros homens, é bastante problemático no que diz respeito à representatividade. A obra acaba passando a ideia de que sentir-se atraído por alguém do mesmo sexo é algo ruim e deve ser visto com nojo, um aspecto negativo reforçado pelo simples fato do personagem ser um antagonista perante os personagens heroicos.
Pode até ser que oferecer uma representatividade ruim de um personagem LGBTQIA+ nem fosse a intenção da autora, mas todo o contexto mostrando o personagem acabou alinhando-o a uma ideia negativa sobre pessoas queer, desde o modo como o protagonista responde à afeição de Jakotsu, até o fato de o personagem ser mais um vilão homossexual.
Ninjas pouco convencionais
Naruto também é uma série que parece gostar de vilanizar seus personagens LGBTQIA+ – ainda que aqui eles sejam um pouco mais aprofundados do que nas obras anteriormente citadas. Um dos primeiros personagens queer que conhecemos é o vilão Haku, um jovem ninja de traços muito femininos.
Embora Haku não seja exatamente uma mulher trans, como alguns acreditam, apenas um rapaz mais afeminado, ele é consideravelmente “queer” do ponto de vista que o modo como se veste e age vão contra os preceitos do que seria aceito pela heteronormatividade (ou seja, se veste “fora do padrão de homem”).
Entretanto, vale a pena citar que não classifico Haku como queer apenas por sua aparência física, mas também por algo um pouco mais velado: uma possível relação homoafetiva com seu mestre, Zabuza. Durante anos, os fãs de Naruto têm debatido se Haku e Zabuza são ou não um casal.
Aqui, entramos de novo em um grande problema: se eles forem mesmo um casal, estamos falando de um adulto tendo relações amorosas com um adolescente, novamente caindo na ideia de que homens gays são pederastas (e infelizmente estou repetindo essa palavra mais do que eu gostaria nesse artigo) – embora valha a nota que há exemplos de casais formados por adultos e adolescentes em relacionamentos heterossociais em certos mangás, mas dificilmente são o único casal heterossexual da trama (como o pai e a mãe da Sakura ou o professor Terada e a Rika, ambos em Cardcaptor).
Haku e Zabuza não são os únicos “possíveis” personagens LGBTQIA+ em Naruto. Há um outro (vilão) bem mais popular que essa dupla na história do ninja loiro: Orochimaru. Conhecido por sua habilidade de roubar corpos, ele já possuiu corpos de homens e de mulheres. Apesar de muitos acreditarem com uma identificação como uma pessoa do gênero masculino, o vilão já deixou claro que não se importa com isso.
Desse modo, definir um gênero específico para Orochimaru não é possível, ao mesmo tempo em que não se pode afirmar que ele é uma pessoa de identidade agênero, pois isso nunca foi citado na história. A única coisa possível de afirmar é afirmar que ele pode se enquadrar no que seria uma pessoa queer e, novamente, temos um LGBTQIA+ sendo mostrado como vilão em uma obra shounen. Talvez não seja a representação mais problemática dessa lista, mas ainda é um exemplo de vilanização de pessoas LGBTQIA+.
Mas ser vilão é ruim?
Não, não há nada de errado em ter personagens LGBTQIA+ como vilões. Peguemos o exemplo de Devilman Crybaby para explicar melhor: no animê, o principal vilão é Ryo Asuka, ninguém menos que o próprio Satanás da história. Ele é um anjo caído e, como ser celestial, não possui gênero, mas se apresenta como homem em sua forma humana. Ele possui uma certa relação amorosa com o protagonista Akira, que, em certo grau, poderia colocá-lo como um homem gay.
Entretanto, por mais malvado e ruim que Ryo seja, sua presença como vilão não é um problema real para a representatividade LGBTQIA+, pois Devilman Crybaby não é um anime com um “único” personagem queer: há outros personagens que fogem da heteronormatividade na história, como o próprio protagonista Akira, cujo o subtexto deixa implícito uma possível panssexualidade/bissexualidade graças à sua relação com Ryo.
Outro animê com uma vilã LGBTQIA+ que não causa nenhum “dano” à representação queer é My Hero Academia. Na trama, a vilã Magne é apresentada como mulher trans. Só que ela não é a única a se enquadrar nessa classificação, a obra também conta com a participação do herói transgênero Tiger. Os dois personagens têm passagem limitada pela história, mas a presença de ambos gera certo equilíbrio no que diz respeito à apresentação de pessoas trans em animês, mostrando que sim, trans podem ser vilões, mas também podem ser heróis.
O que acontece no fim é que está tudo bem em termos LGBTQIA+ vilões quando a obra abre espaço para outros personagens LGBTQIA+ também terem destaque. Entretanto, um produto cultural cuja as únicas representações queer são personagens antagonistas e que reforçam estereótipos problemáticos (como a pederastia ou a ideia e que gostar de alguém do mesmo sexo é nojento), é um caso mais complicado. E obras shounen, ao menos as que chegaram por aqui, possuem um histórico de fazer isso.
Felizmente, as coisas parecem estar mudando, já que tanto Ryo e Akira (no animê), quanto Magne e Tiger, são personagens de obras recentes que abrem espaço para mais personagens queer de diversos tipos se apresentarem ao público. Resta agora esperar essa tendência se manter e que as representações ruins fiquem esquecidas no passado.
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