Três semanas! Três semanas atrás a Netflix lançou em sua plataforma Yasuke, animê sobre a vida do samurai homônimo, que foi o primeiro africano a conseguir esse título, até onde se sabe. A essa altura do campeonato, você já deve ter assistido e até lido críticas em outros sites. Normal, ainda mais num mundo em que tudo é muito imediato. Mas, por que estou lançando essa crítica “tanto” tempo depois?

Muitos acreditam que escrever uma crítica se resume a abrir o Word e escrever se gostou ou não da obra, malhar um título que os outros gostam para parecer diferentão e polêmico ou tentar parecer superior; sendo que não é bem assim.

Claro, partilhamos de nossas experiências pessoais com as obras, enquanto conjuminamos todos os aspectos mais técnicos. Basicamente, uma batalha entre razão e emoção – falo mais por mim, claro, mas não creio que seja tão diferente para os outros aqui do site. Você pode ler as críticas deles clicando aqui. Ao terminar de assistir Yasuke, sentei para escrever sobre o mesmo. E escrevi.

E ainda bem que não mandei esse texto! No calor do momento, acabei escrevendo um texto recomendável apenas para maiores de 90 anos acompanhados dos pais. Claro, reescrevi, mas mesmo assim ainda estava aquém do admissível. Então, resolvi refazer com a cabeça já mais fresca e assim tentar descobrir como um animê foi capaz de dar tão errado.

Imagem: Robô gigante em 'Yasuke'.

Reprodução | Netflix

Yasuke foi um africano – possivelmente moçambiquenho – que chegou ao Japão em 1574 na comitiva do jesuíta italiano Alessandro Valignano (1539-1606). Ao aportar no arquipélago japonês, logo chamou atenção do daimiô Oda Nobunaga (1539-1582), que o chamou para fazer parte de sua comitiva. Sua história após conseguir o título de samurai é nebulosa, dificultando a se fazer um enredo baseado em uma história real, mas não é como se fosse fazer muita diferença aqui.

A história da animação começa quando Yasuke abandona sua vida de samurai e passa a viver num vilarejo como um barqueiro. Neste mesmo local, mora uma menininha doente, dependente da ajuda dele para chegar até o médico capaz de curá-la. Porém, no meio do caminho aparecem mercenários que querem a garota, pois a mesma detém poderes especiais.

O estúdio MAPPA tinha a faca e o queijo na mão. Escrever sobre um momento em que não se sabe muita coisa é difícil, mas a licença poética e a romantização podem ajudar no processo e criar uma história, no mínimo, decente. Talvez se a equipe de produção fosse inteiramente nipônica, isso fosse possível. Mas com nomes como LeSean Thomas e Flying Lothus  assinando o roteiro, talvez tenha ficado difícil.

Longe de serem incapazes de criar um bom roteiro, mas é quase um consenso de que americanos não são bons em escrever histórias ambientadas fora de seu quintal. O resultado disso é um pot-pourri de ideias jogadas sem boa coesão. Os mais chamativos são os elementos alheios à nossa realidade, como metamorfose e robôs.

Enquanto alguns podem discordar da liberdade de se colocar tais elementos, eu sou a favor – pra quem já viu a minha bio lá embaixo sabe que seria hipocrisia afirmar o contrário. O problema maior é que, usando o português simples e rápido, é horrível. Nenhum dos elementos conversa entre si. O maior diferencial da obra, os tais poderes, não empolgam.

Nem no clímax, durante a batalha no plano astral, vemos um bom uso deles. Esta, sim, é a verdadeira magia que leva o mais são dos homens à loucura. A sensação é de assistir uma grande paródia exagerada de animês.

Imagem: Luta cósmica em 'Yasuke'.

Reprodução | Netflix

A maioria dos personagens não tem o carisma para nos prender. Rasos e com motivações simplórias, muitos aparecem por pouco tempo e só voltam a dar as caras bem depois. Em momento algum conseguimos gostar ou odiar algum deles.

Muitos aparecem em momentos tão espaçados que nem são capazes de mostrar mais de si – problema comum quando se coloca mais de 10 personagens em pouquíssimos episódios. O maior descaso fica para as personagens históricas.

Seria bem interessante vermos uma história mais realista onde veríamos o ninja Hattori Hanzo (1542-1596) ou Mori Ranmaru (1565-1582), servo e um provável parceiro sexual de Oda melhor trabalhados. Nem mesmo o protagonista escapa desse destino.

Também quero deixar aqui registrado o bom trabalho realizado pela equipe de dublagem, com destaque para Duda Ribeiro (Yasuke) e Luis Carlos Persy (Abraham), dando mais vida aos personagens. Foi bom ouvir vozes que casaram tão bem com os eventos vistos em tela.

A animação está longe de encher os olhos, mas não significa que seja de todo ruim. Ela cumpre bem o seu papel, apesar de em certos momentos deixar a desejar, em especial nos momentos de ação. Os designs dos personagens também são simples e facilmente esquecíveis.

Imagem: Yasuke lutando com um soldado.

Reprodução | Netflix

Vivemos num momento em que muitas produções estão fazendo um revisionismo histórico e trazendo à luz histórias até então pouco conhecidas, sobretudo da comunidade negra. Os motivos para esse levante são diversos e levantariam uma outra discussão, mas podemos afirmar ser o momento mais do que ideal para termos uma produção inspirada na vida de Yasuke.

Uma não, duas! Vale lembrar que teríamos uma produção hollywoodiana na mesma temática, mas que infelizmente foi cancelada devido a morte precoce de Chadwick Boseman, escolhido para interpretar o samurai.

Assistir e escrever sobre Yasuke não foi fácil. Eu tinha em mente assistir tudo num único dia para ser mais rápido. Porém, em diversos momentos me vi obrigado a me levantar para dar uma volta, jogar uma água no rosto ou socar uma parede (não faça isso, é perigoso!). Você pode estar achando que é um exagero. E talvez seja.

Afinal, Yasuke está longe de ser a pior animação a sair da Terra do Sol Nascente. Mas o sentimento de revolta não é exagero. Ninguém esperava grandes coisas da produção, e mesmo assim ela conseguiu decepcionar. A obra tentou ser mais do que conseguiria ser – mais até do que precisava ser – e não conseguiu.

Infelizmente, os produtores entendem este como o pontapé inicial de um projeto ainda maior. Desculpe, nobre samurai, mas creio que essa batalha já está perdida.


Yasuke está disponível com dublagem e legendas em português exclusivamente na Netflix.


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.