No dia 12 de agosto de 2018, o serviço de streaming Crunchyroll adicionou ao seu repertório uma dublagem brasileira para o anime Miss Kobayashi’s Dragon Maid (Kobayashi-san no Meido Dragon), produzida pelo estúdio carioca Wan Marc. Essa dublagem pegou bastante gente de surpresa na época, porque diferente das outras dublagens no serviço, essa fez questão de utilizar diversos honoríficos japoneses por toda a série.


A língua japonesa é cheia de honoríficos (posicionados após os nomes) para se referir a outras pessoas. Se você coloca um “-chan” após o nome de alguém, está se referindo à pessoa com certa intimidade, às vezes interpretada de forma fofa (geralmente é usado com crianças); um “-dono”, mostra enorme respeito e provavelmente vivendo em uma história que se passa no Japão feudal; e é esperado que você use “-san” com quem não conhece bem para mostrar o mínimo de respeito.

Imagem: As duas protagonistas de 'Maid Dradon'.

Reprodução: KyoAni.

Esses são termos normalmente deixados de fora em toda dublagem brasileira (e de outros países de línguas mais parecidas com a nossa, ponto). Na verdade, entre tradutores, eles geram uma discussão bem recorrente: são ferramentas de roteiro, e só através de seu uso pode-se dizer muito sobre as relações que existem entre personagens.

Por exemplo: se a heroína de um animê romântico chama um personagem masculino sem usar honoríficos, provavelmente ela já o conhece faz tempo e, portanto, não tem cerimônia com ele; talvez sejam amigos de infância, talvez parentes distantes… todo esse contexto é sugerido pela simples não-utilização de um sufixo.

Acaba sendo um grande desafio para o tradutor passar esse mesmo contexto sem eles; alguns, como “-sama”, são bem fáceis de se converter para “senhor”, por exemplo, mas outros, como o “-kun” (utilizado para se referir, normalmente, a meninos e rapazes jovens), simplesmente não têm equivalente na nossa língua. Por isso, alguns argumentam que os honoríficos não deviam ser deixados de fora.

Possivelmente alguém pode apontar também que existem termos de tratamento em outras línguas que passam sem tradução. Por exemplo, o “Sir” em histórias inspiradas no universo arthuriano inglês, e diversas palavras locais em livros que se passam em lugares menos representados, como o Oriente Médio. Mas é bom notar que nesses casos as palavras são deixadas de propósito para enfatizar o exotismo dessas histórias, além de títulos de nobreza serem bem reconhecíveis mundialmente.

Mas até recentemente, a discussão pendia fortemente para o lado do “não usar” em animês, e toda dublagem brasileira, sem exceção, deixava esses sufixos de tratamento de fora, a menos que vazasse “por acidente” como uns “Hao-sama”s na dublagem de Shaman King e uns “Shinobu-chan”s na de Love Hina, ou por obrigação, como o caso do Shin-chan, ou o Kami-sama em Dragon Ball.

Imagem: Personagens e logo de 'Shin-chan'.

Divulgação: Shin-Ei Animation.

Vale notar que mangás publicados no Brasil têm mais histórico de utilizá-los (apesar de que depende bastante da editora e do título em questão), provavelmente por terem o benefício das notas de tradução para deixar claro seus significados, uma vantagem que dublagens não têm (legendas tecnicamente têm, mas é visto como amador e “poluente” e, portanto, não é praticado no âmbito profissional).

Essa é uma máxima que, por décadas, nunca foi desafiada: sempre foi esperado que os honoríficos da cultura japonesa ficassem de fora das localizações porque, sem uma explicação clara, não significam nada para o resto do mundo e só dificultam o entendimento e o trabalho dos dubladores, tornando o diálogo menos natural.

Mas aí veio Miss Kobayashi’s Dragon Maid, com as personagens livremente se referindo umas às outras com “chan” e “san” sem nenhum tipo de esclarecimento. Mais recentemente (há menos de um mês, na verdade), a duologia de filmes Sailor Moon Eternal teve uma quantidade ainda maior de honoríficos igualmente inexplicados por todo o texto. Logo, claramente a máxima deixou de ser tão máxima assim. O que aconteceu?

Imagem: A imagem contém um espelho. De um lado, está saindo deste espelho a protagonista Usagi/Serena, do outro, está "saindo" a rainha Nehellenia.

Pôster promocional de ‘Eternal’. | Divulgação: Toei Animation.

Bom, a resposta simples é “internet. A internet aconteceu”. Mas isso não renderia uma coluna muito interessante, então vamos do começo:

Até a década de 2000, a cultura japonesa era mais ou menos completamente alienígena para nós, brasileiros. Sim, nós recebíamos os ocasionais desenhos, filmes ou séries de lá; e sim, todo mundo sabia pelo menos o que significava “arigatô” e usava em piadinhas xenofóbicas e racistas (eu estava lá, não neguem).

Mas, os pormenores, como as referências culturais do dia-a-dia, o estilo de vida e as atitudes e comportamentos dos japoneses? Isso era reservado somente aos aficionados pela cultura nipônica; todo o resto vivia em plena ignorância, até os mais ardentes fãs de Speed Racer.

Por esse motivo, toda tradução de mídias japonesas se esforçava para neutralizar, ou pelo menos explicar, esses pormenores. Nomes de comidas, feriados, palavras específicas do léxico japonês e até referências a figuras folclóricas de lá eram “convertidas” na medida do possível (youkai virando “fantasma”, por exemplo). E claro, sufixos honoríficos eram sempre deixados de fora ou adaptados de acordo.

Como já li por aí tantas vezes, “antes da internet, o mundo era pequeno” – contato com outras culturas e países era algo mais escasso e difícil de se ter. E depois da internet, naturalmente, o mundo “aumentou” – e nós finalmente conhecemos melhor o Japão.

Com o boom dos animês no Brasil também veio maior interesse na cultura japonesa – vieram os supracitados mangás traduzidos mais fielmente ao original, fansubs que se orgulhavam de serem os mais recheados de termos japoneses quanto possível… e em poucos anos, a situação se inverteu radicalmente; agora, era difícil não associar aniêes a termos específicos que os próprios japoneses utilizavam, como “okami”, “baka”, “ero”, “jutsu” etc.

O tom deste texto pode fazer isso parecer ruim, mas para ser sincero, não é de todo o mal. Conhecer uma outra cultura nunca é uma experiência inútil; aprender mais sobre o nosso mundo e a diversidade dele nos enriquece, e sim, até aprender coisas simples como o que foi a onda “ganguro” no Japão ou o que “chuunibyou” significa é aprendizado. É bom.

Mas como tudo em excesso, pode fazer mal, e é muito fácil observar os males que isso causa. Em resumo, isso criou todo um léxico de termos específico para o fã de animê, uma expectativa de que todos estejam familiarizados com várias palavras japonesas que nós, brasileiros, não usamos fora disso, como “kawaii” e “tsundere”. Em outras palavras, gostar de animê virou um clubinho cada vez mais exclusivo que intimida quem está de fora.

E tão influente esse clubinho se tornou, e tantos membros desse clubinho foram para outras áreas, aí a coisa começou a “sangrar” para fora do mundo dos fãs. E assim chegamos aonde estamos agora, com o caso das dublagens de Kobayashi e Sailor Moon Eternal, com o caso da nova dublagem de One Piece mantendo tantos golpes e termos em japonês, e diversas dublagens, como a de The World Ends With You, da Funimation, mantendo a ordem oriental de nome e sobrenome (bom, esse último pode ser só descuido, também).

Imagem: Neku e a menina de boina que ajuda ele.

Reprodução: DOMERICA/Shin-Ei Animation/Square Enix.

E agora vamos à parte editorial, 100% parcial, deste texto. Eu, pessoalmente, realmente não gosto dessa tendência. Porque apesar de ser bom aprender sobre outra cultura, e apesar de oferecer um contexto extra, isso não é algo que deve ser um “dever de casa” para você consumir uma obra.

O dever da tradução, especialmente de obras da cultura pop, como animês, é justamente facilitar acesso ao material para qualquer pessoa, é acessibilidade; uma tradução que requer estudo a mais, para mim, é uma tradução que falhou.

É sempre bom lembrar também que para os japoneses consumindo o original, todas essas coisas listadas, essas coisas “exóticas” da cultura japonesa, são normais. São coisas que se espera que todo cidadão japonês tenha conhecimento, são coisas que estão na obra justamente para deixá-la mais próxima do consumidor.

O autor as fez assim para deixá-las acessíveis, como uma obra brasileira que use “seu” ao invés de “senhor”; adaptar essas obras de modo que os termos japoneses sejam “palavras código de clubinho” faz justamente o oposto. Em adição, é praticamente impossível fazer um dublador brasileiro, nascido e criado no Brasil, que nunca estudou japonês, falar esse tipo de coisa com naturalidade.

E é difícil dizer até que ponto isso vai nos levar; a cultura pop é imprevisível, então, quem sabe? Talvez eu acorde amanhã e descubra que todas as dublagens de anime estão deixando os “chan”s e “kun”s intactos (foi basicamente o que aconteceu com Sailor Moon Eternal!), ou que aboliram todos eles e voltaram à velha forma.

De todo modo, é interessante como objeto de estudo da evolução da presença dos animês e mangás na nossa cultura – assim como a própria cultura de produção deles vai mudando, a nossa cultura de consumir esses produtos também vai. E isso é meio lindo, apesar de, pessoalmente, enfurecedor.

Mas e você? Gosta dos honoríficos em dublagens? O que achou da recente dublagem de Sailor Moon Eternal se utilizando deles? Odeia? É ambivalente? Pró-tradução de golpes ou anti? Solte nos comentários e a gente se vê!


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