O grande vencedor da 93ª edição do Oscar foi o longa-metragem Nomadland. O filme garantiu não só a estatueta de Melhor Filme, como as de Melhor Direção para a Chloé Zhao e Melhor Atriz para a Frances McDormand. Na trama, McDormand vive uma nômade contemporânea. Sem um endereço fixo, ela mora em seu próprio carro e viaja os Estados Unidos em busca de empregos sazonais para sobreviver.

Nomadland é um filme bem bonito. Contudo, ao assistí-lo, tive a impressão de que o enredo não é o mais importante no pacote todo. A história por trás não chega a importar de verdade pro resultado final, sim o jeito como ela é contada. A protagonista vai por diferentes lugares, conhece pessoas, aprende seus estilos de vida e, ao fim, alcança uma resolução pessoal que há muito vinha adiando.

Daria para ser um curta-metragem, mas a Chloé Zhao preenche o tempo com takes longos deslumbrantes e interações que emprestam um estilo documental à narrativa ficcional. Acaba sendo imersivo e tocante de assistir. Mas no que isso conversa com o mangá desse texto? Já chego lá.

Lançamento recente da editora Pipoca e Nanquim, o título As Crônicas da Era do Gelo foi originalmente publicado em 1988 do Jiro Taniguchi. O autor é bem celebrado no meio editorial de quadrinhos aqui do Brasil. Diferentes obras suas foram publicadas num intervalo de poucos anos por diferentes editoras: O Homem que PasseiaO Gourmet Solitário pela Devir, O Livro do Vento pela Panini e Guardiões do Louvre pela própria Pipoca e Nanquim (que anunciou também Um Bairro Distante para o ano que vem).

Esses gibis compartilham de um estilo narrativo mais contemplativo, introspectivo, onde a importância está no cotidiano dos personagens. E essa maneira de contar histórias é mais comum em quadrinhos europeus, os quais Taniguchi era consumidor e o influenciaram em muitas obras – principalmente dos anos 90 em diante. Porém, há um outro “lado” do autor que ainda não havia sido explorado por aqui.

Ocorre que Jiro Taniguchi, em seus primeiros anos como quadrinista, foi ativo em diferentes fronts temáticos: suspense, ação, biografia, aventura, policial, faroeste. E ficção científica, que é onde se encontra As Crônicas da Era do Gelo.

Imagem: Cena de 'As Crônicas da Era do Gelo'.

Reprodução: Pipoca & Nanquim.

Na história, num futuro distante, a Terra passa por uma nova era glacial. A humanidade, então, passou a conviver com o gelo e se adaptar de diferentes maneiras a ele. Em uma instalação num imenso buraco no meio do ártico, uma porção de trabalhadores são isolados por temporadas de meses (até anos) para escavar minérios que servem para aquecer a população.

O problema, no entanto, começa quando o inverno, cujo início deveria ser só bem mais para frente no ano, chega com tempestades capazes de impedir a “troca de turnos” dos mineradores ali, que em breve ficarão sem poder retornar para suas casas e até sem os insumos básicos para sobreviverem durante todo o inverno naquele local.

Soma-se a isso o fato de a instalação estar em frangalhos, com uma porção de defeitos em vários pontos, já que a empresa responsável por ela, por entender que aquela mina em breve esgotaria seus recursos, não tem mais interesse em repará-la.

Aí, simultâneo à chegada adiantada do inverno, ocorre um acidente numa das seções que tira a vida do chefão do local. Esse chefão, no leito de morte, resolve passar o bastão de comando para Takeru, um garoto-problema filho bastardo do presidente da companhia, que está ali obrigado por ele para não lhe gerar constrangimentos na capital.

Espalhada a notícia do inverno precoce, da morte do chefe e de sua substituição por Takeru, um motim começa no local, culminando no roubo dum par de naves pequenas por alguns funcionários que querem fugir dali. Mas as naves não são fortes o suficiente ante à ventania invernal que toma conta do topo do buraco. Então, elas são destruídas no caminho e boa parte deles morrem.

Os sobreviventes precisam agora sobreviver ao frio, esperando até uma equipe escalar o precipício para salvá-los. Essa equipe é liderada pelo assistente do falecido patrão, que obriga Takeru a ir junto para ensiná-lo forçadamente sobre responsabilidades. E basicamente é essa a história nesse primeiro volume.

Imagem: Cenas de 'As Crônicas da Era do Gelo'.

Reprodução: Pipoca & Nanquim.

Só que As Crônicas da Era do Gelo não me parece ser para qualquer leitor de mangás. Assim como Nomadland não me parece ser para qualquer espectador. Coloco isso não num sentido negativo, tampouco subestimando os eventuais leitores, mas alertando ser este um gibi para um público que se importa mais com questões técnicas que o geral, que se dispõe a admirar como a arte foi bem desenhada, que imagina que será impactado tão ou mais pelo visual do que pelos textos escritos e diálogos.

Ambas as obras possuem um fiapo de história (e digo não de modo pejorativo) que poderia ser resolvida num terço do tempo e espaço. Mas os responsáveis por elas lhes dão fôlego com os artifícios técnicos estéticos possibilitados pelas mídias às quais foram destinadas.

Nomadland, como disse, apresenta grandes segmentos que enchem os olhos. A fotografia é lindíssima, aproveita a luz natural das tomadas externas que abraçam um bucolismo bem bonito de assistir. Os momentos mais documentais dedicados ao cotidiano despertam as sensações mais angustiantes e tristes que parecem desejadas pela direção. É um prato cheio para quem gosta das ferramentas que fazem um filme, de experimentações permitidas ao meio. Mas restritivo aos que não se importam tanto ou nada com isso, pois a história mesmo é mínima.

As Crônicas da Era do Gelo é isso, mas voltado ao público de quadrinhos. Fosse num título semanal da Shonen Jump, os parágrafos acima com a sinopse seriam resolvidos numa ou duas edições de 20 páginas. No entanto, o Jiro Taniguchi utiliza centenas de páginas para isso. E cada uma dessas é um desbunde visual, onde ele entrega desenhos de cair o queixo para as paisagens, os maquinários futuristas, os personagens e as criaturas bestiais desenvolvidas para essa realidade.

Imagem: Cena de 'As Crônicas da Era do Gelo'.

Reprodução: Pipoca & Nanquim.

É narrativa gráfica elevada ao esplendor. Ele não conta a história em diálogos expositivos. O mundo num todo é bem pouco explicado, sabemos coisas relacionadas a ele na maneira que essas informações chegam aos diálogos situacionais.

Taniguchi consegue ser claustrofóbico ao nos apresentar os personagens reclusos em ambientes desgastados, trazer grandiosidade e sensação de perigo ao jogar a escala lá para cima e montar painéis detalhadíssimos de tais locações, exprimir o sentimentalismo escapista que os indivíduos ali necessitam se agarrar ao dedicar cenas e mais cenas à bebida, sexo e outras formas de desanuviar daquele inferno gelado.

Ele mostra muito sem falar quase nada. O que é espetacular e enche de vida este que vos escreve, mas pode causar estranhamento a quem for esperando uma obra de ação e ficção-científica mais convencional. As Crônicas da Era do Gelo é o tipo de história para quem gosta de viajar no talento para desenhos de um grande quadrinista, sem querer informações mais mastigadas e prefere preencher sozinho lacunas de possibilidade que a narrativa vai entregando.

Ao menos até as páginas finais, quando a trama toma um rumo fantasioso até então inesperado dentro daquele universo, com um folclore bem posicionado e todo um possível novo caminho narrativo envolvendo um escolhido – mas que fica para o segundo volume do mangá.


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Essa resenha foi feita com base numa cópia do primeiro volume de As Crônicas da Era do Gelo enviada pela editora Pipoca e Nanquim como material de divulgação para a imprensa.


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.