Observação: Nesta coluna, eu me refiro diversas vezes a “mulheres” e “homens” em referência a atores, e quero deixar bem claro que me refiro especificamente a atores e atrizes cis, representando personagens cis. A relação de atores trans ou não-bináries com o mercado de animação é um tópico bem diferente e amplo, e merece sua própria discussão separada.

No nosso mundo moderno de streamings (e um mercado japonês bem diferente de como era antigamente), eu não sei se isso ainda acontece, mas na minha época de adolescente tinha um fenômeno bem comum entre jovens entusiastas de animê: basicamente, nós víamos um animê dublado na TV, e nos divertíamos e tudo mais… e quando nos deparávamos com a versão japonesa, sofríamos um choque – porque um personagem masculino que, na dublagem, tinha voz grave (leia: dublador homem), tinha uma voz fina (leia: atriz de voz) em japonês!

Imagem: Kurama em imagem promocional de Yu Yu Hakusho.

Divulgação: Pierrot.

Personagens como o Kenshin de Samurai X, ou o Kurama de Yu Yu Hakusho, ou o Syaoran de Cardcaptor Sakura, ou o Edward de Fullmetal Alchemist… uma série de heróis que, sem nunca nos darmos conta, tinham um approach totalmente diferente no Japão no modo como eram interpretados!

Falamos um pouco disso na primeira coluna do Se Localizando com relação ao Goku, de Dragon Ball, que era um desses casos, e também já tocamos no assunto com relação ao Luffy, de One Piece.

Mas aquilo foi só a ponta do iceberg de um fenômeno bem mais comum, e quero explorar ele um pouco mais a fundo desta vez. Então, vamos lá.

Antes de partirmos pro “x” da questão, eu sei o que alguns de vocês já estão digitando e acho melhor falarmos logo disso: sim, aqui no Brasil também temos muitos casos de dubladoras fazendo papéis masculinos… especificamente, de meninos, crianças pequenas.

Casos como a Fernanda Bullara fazendo o protagonista epônimo de Zatch Bell!, a Marina Santana interpretando o pequeno Trunks em Dragon Ball Super, a Júlia Castro como Lan em Mega Man NT Warrior, e claro, muito do repertório de Fátima Noya, indo desde os dois filhos do Goku até o Shin-chan, de Crayon Shin-chan, e também o Kiki, de Cavaleiros do Zodíaco.

Mas este é um fenômeno mundialmente comum: em qualquer país (que duble suas aquisições audiovisuais), isso acontece. Claro que o ideal em 99% dos casos é ter atores-mirins interpretando meninos, e provavelmente é o que 99% dos diretores de qualquer desenho querem… mas em 99% dos casos, isso é 100% impraticável.

O motivo principal para isso pode ser resumido em “trabalhar com criança é um saco”. Fora o fato de crianças em si serem um saco, são profissionais muito limitados: leis de trabalho infantil proíbem elas de trabalharem muitas horas por dia, além de ser necessária uma enorme, demorada burocracia para deixar provado que essas leis estão sendo seguidas.

E dublagem é um negócio rápido, e que só está ficando mais rápido a cada ano; mal existe tempo para fazer testes para novos dubladores, quem dirá pra resolver tanta papelada. E para piorar, crianças mudam de voz muito rápido, então, para uma série longa, se a dublagem não opta por “renovar” o elenco de crianças, a coisa fica bem estranha.

Imagem: Capa americana de DVD de Digimon Tamers.

Divulgação: Toei.

Há exceções, claro (geralmente antigas), como muitos de vocês já devem saber. Alexandre Drummond só tinha 10 anos quando fez o protagonista de Digimon Tamers (vulgo “Digimon 3”), Takato Matsuda; Pedro Alcântara só tinha uns 12 quando fez o Coby na primeira dublagem de One Piece (dito isso, foi só por uns poucos episódios, o que provavelmente ajudou); e como último exemplo, Bernardo Coutinho só tinha 9 anos quando interpretou o personagem Kenny no primeiro animê de Beyblade.

E em termos de hoje em dia, ainda vemos dubladores mirins em grandes animações americanas, como em Encanto ou Luca; o fato delas serem filmes resulta em menos dor de cabeça com a mudança de voz causada pela puberdade, e costuma ter bastante tempo entre a dublagem e o lançamento, o que também ajuda bastante.

E claro, é sempre bom ressaltar que, apesar de bem raro, isso às vezes acontece no Japão também. Em Code Geass, o personagem V.V. (leitura: “Ví-Two”) foi interpretado por Kazato Tomizawa, com 10 anos na época; enquanto o personagem Kouki, de Usagi Drop, foi interpretado por Noa Sakai, de idade desconhecida, mas definitivamente uma criança.

Mas voltando: é por isso que muitos meninos são interpretados por mulheres. Ajuda também que, em muitos casos, não fica estranho aos ouvidos; muitos dos leitores homens desta coluna já devem ter passado pela experiência, na infância, de atenderem um telefonema e serem confundidos por mulheres. Na infância, a diferenciação de sexo é bem mais sutil do que na vida adulta, e isso inclui a voz.

Enfim, mas esse não é o “x” da questão: o “x” da questão é que os personagens que eu listei no começo da coluna eram todos mais velhos (não necessariamente adultos, mas definitivamente pós-puberdade), e ainda assim, interpretados por mulheres no Japão.

Os motivos pra isso são vários, mas podemos começar com uma possível questão cultural: o teatro japonês tem um longo histórico de papéis representados pelo sexo oposto. Um ótimo exemplo disso é o teatro kabuki, que já foi duas versões desse mesmo conceito.

Em seus primórdios, no começo do século XVII, ele era exclusivamente performado por mulheres, que representavam papéis femininos e masculinos, até a prática ser banida dentro de algumas décadas por ser “erótica demais”. De suas cinzas surgiu o exato oposto: um kabuki 100% masculino, em que os homens representavam papéis masculinos e femininos.

Dito isso, eu diria que a associação mais próxima à prática de mulheres representarem homens em animês não está no kabuki, mas sim, no Takarazuka Revue (que tem esse nome pois fica na cidade de Takarazuka).

Criada em 1913, a companhia Takarazuka é uma famosa trupe de teatro musical composta exclusivamente por mulheres, e diferente do kabuki, é associada mais a glamour, a luzes, a ser bem chamativa e viva. E eu diria que há uma boa correlação com animê nesses conceitos.

Ajuda também que as atrizes do Takarazuka não são só respeitadas, mas adoradas, e muito populares. Tanto atrizes que representam papéis femininos – as musumeyaku –, quanto masculinos – as otokoyaku –, são celebridades com multidões de fãs e admiradores, que acompanham todos os papéis delas e toda a sua trajetória de celebridade… e eu não sei vocês, mas isso pra mim descreve perfeitamente a cultura seiyuu do Japão – isto é, de dubladores e atores de voz japoneses.

Não é difícil de imaginar que artistas no ramo pensassem: “Esse personagem é tão belo e delicado, que uma otokoyaku ficaria perfeita nele!”. Isso é só teoria pessoal, diga-se de passagem; eu só quero dizer que, com essa cultura de idolatria a atrizes que representam homens, não é difícil de imaginar isso “pingando” no mercado de animação.

Também vale ressaltar que os japoneses simplesmente dão muito valor para o tom de voz agudo, especialmente em obras para crianças, é por esse motivo que alguns produtos estrangeiros, quando dublados no Japão, optam por um registro mais agudo para certos personagens.

Um bom exemplo disso é o Ratchet, da série de jogos Ratchet & Clank, interpretado por um homem nos Estados Unidos, mas por uma mulher no Japão – Makoto Tsumura, para ser mais específico, que também faz a voz do previamente citado Takato em Digimon. Mais uma vez, não é um equivalente exato para a cultura de atuação em um animê, mas dá para ver como isso “respinga”.

E talvez você esteja se perguntando – e o contrário? Por que não vemos homens representando papéis femininos nos animês? Bom, infelizmente essa não é uma via de mão dupla: mesmo no Japão, apesar da ideia de atrizes interpretarem homens ser bem corriqueira, o oposto, assim como no resto do mundo, é visto como risível e caricato. Eu poderia tentar explicar os motivos para isso, mas acho que todos sabemos que é devido ao modo como a mulher é vista na sociedade e insegurança masculina e etc. etc.

Mas é, quando esses personagens com “voz de menina” saem do Japão, o normal é eles receberem vozes masculinas: nós não temos uma cultura de atrizes representando papéis masculinos, logo, ver um homem interpretado por uma dubladora é bem estranho para nós.

Imagem: Carol Valença e Luffy em montagem.

Divulgação: Carol Valença//Toei.

Dito isso, como eu já tinha mencionado em colunas anteriores, a nova dublagem de One Piece abriu um precedente… bom, tecnicamente, Naruto abriu o precedente, com a Úrsula atuando como Naruto a partir da fase Shippuden, mas aquele foi mais um caso de “herdar o papel” após ter feito a versão criança (o que, na verdade, foi o mesmo que aconteceu com a Masako Nozawa como Goku, no Japão).

Em termos de ser escalado como um personagem mais velho desde o começo, a dublagem de One Piece inovou: agora, o protagonista Luffy (17 anos, na primeira fase da história) é interpretado por uma mulher (Carol Valença), tal como é no Japão (Mayumi Tanaka). Crê-se que tenha sido exigência da Toei, para que o Luffy fosse interpretado por atrizes por todo o mundo.

O estranhamento inicial foi palpável: as redes sociais ficaram repletas de pessoas incomodadas com a decisão. Houve exceções, claro, mas ali ficou bem visível o quanto a nossa cultura é incompatível com decisões desse tipo.

Dito isso, eu diria que com o tempo as pessoas foram se acostumando mais, e eu observo bem menos desse tipo de revolta agora (e eu, pessoalmente, achei a Carol ótima no papel desde o primeiro dia). E sei que é bem improvável, mas já imaginou se isso cria tendência? Se um futuro papel da Megumi Ogata ganhar uma dubladora aqui no Brasil?

Bem, acho que fica essa dúvida para vocês nos comentários. Vocês também ficaram perplexos com a escalação do Luffy de início? E continuam perplexos, ou já conseguem gostar? Tem alguma seiyuu que vocês acham incrível fazendo papéis masculinos? Pra mim, é Megumi Ogata sempre! Ah, e se fosse necessário, que dubladora você escalaria pra fazer a voz do Goku? Soltem a voz aí nos comentários e nos vemos na próxima!


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