A obra do rapper Sabotage, alcunha de Mauro Mateus dos Santos, a despeito de ser uma obra curta — devido à morte precoce, em janeiro de 2003, quando o músico ainda não havia completado 30 anos — constitui um dos capítulos mais sublimes da história da canção brasileira. De Um Bom Lugar“, “Mun-Rá“, “Rap É Compromisso“, “Respeito é Pra Quem Tem, certamente as mais conhecidas, aZona Sul“, “Cocaína e algumas outras, o Maestro do Canão foi feliz na criação de uma dicção dotada de originalidade que impressionou já no primeiro e solitário disco. A vida difícil na periferia de São Paulo, mais especificamente na zona sul da capital, onde a desigualdade social se materializa com facilidade aos olhos do observador mais desatento e aplica, sobre os mais pobres que vivem ali, toda a sua violência, constitui o mote principal das letras do nosso artista. Em alguns momentos raros, no entanto, Sabotage debruçou-se sobre outros assuntos. Um deles foi o Japão.

Em vida, portanto, o Maestro do Canão lançou apenas um disco, Rap É Compromisso (2000), sem dúvida um dos maiores da história do hip-hop. Recentemente, veio à luz o álbum duplo Sabotage (2016), que reuniu 11 canções gravadas pelo rapper nos anos que seguiram o processo de criação do primeiro trabalho. Dessas faixas, algumas já haviam sido lançadas na coletânea Uma Luz Que Nunca Irá Se Apagar, de 2002 (que contou com gravações até então inéditas entre canções do Sabotage, como Mosquito“, “Gatilho, e outras nas quais o artista fizera participação, como Black Steel in the Hour of Chaos, do Sepultura) mas foram remixadas e ganharam novas versões, tudo orquestrado por Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno e Dj Cia, que já haviam trabalhado em Rap É Compromisso. Outras, como Respeito É Lei e Canão Foi Tão Bom vieram a público pela primeira vez com o disco.

Dorobo, escrita romanizada da palavra “ladrão” em japonês, é uma parceria do rapper paulistano com BNegão & Seletores de Frequência, e foi lançada em 2003, no disco Enxugando Gelo do grupo carioca. O fonograma, que permanece até hoje entre os trabalhos menos conhecidos de Sabotage, estivera presente também na coletânea de 2002. A canção, grosso modo, versa sobre variados elementos da cultura pop japonesa, que já fazia parte do imaginário brasileiro há — pelo menos — 20 anos. O que chama a atenção, entretanto, é menos o tema, considerado pouco comum dentro do hip-hop àquela altura, do que a forma estética que a canção apresenta.

A música pode ser dividida em duas partes. Além do refrão, que é cantado por BNegão e Sabotage logo no início (e repete outras 2 vezes), há um trecho reservado para cada um dos cantores. Na parte 2, cantada pelo compositor carioca, temos uma espécie de relato de viagem, que o próprio BNegão “entregou” como pista para interpretação numa entrevista ao site The Summer Hunter: Ele [Sabotage] cismou com esse lance do Japão, de cultura oriental. Ele tinha uma ideia na cabeça e fez uma mistura danada na rima dele com Coreia, Japão, China, a porra toda. E eu tinha acabado de voltar do Japão e tava com isso muito fresco na cabeça. É um país que eu tenho alguma coisa ali, com certeza já vivi numa outra vida, porque eu tenho uma ligação forte.”

A primeira parte, cantada por Sabotage, opera em sentido contrário, ou seja, não é o eu lírico que executa o movimento de aproximação em relação ao objeto. A cultura japonesa, com o perdão do alto grau de generalização que o termo tende a evocar nos dias atuais, é quem parece ir em direção à subjetividade lírica, o que resulta na mimetização do movimento de recepção, em contraponto à aproximação engendrada na “viagem” do eu lírico interpretado por BNegão, momento em que predomina o caráter enciclopédico das informações expostas (a referência a diversos bairros e cidades japonesas, por exemplo).

Um aspecto importante a se observar é a marcação do tempo musical, que se assemelha à estrutura do baião, com compassos binários (2/4). O abandono do tempo típico do rap (4/4) não é por acaso e, portanto, merece ser levado em conta. Isso porque a escolha por essa base parece corroborar o procedimento operado pelo canto e pela letra que se faz visível do início ao fim da música, mas está condensado na primeira parte: a acepção em registro local de dados que pertencem a um universo exterior, do qual o eu lírico não faz parte de maneira direta. E nada melhor do que lançar mão de um gênero tipicamente brasileiro para promover tal efeito.

“Ichi, ni” é “um, dois, três” na terra do yen, hayako!
Alguém com muita pressa, lá e vem
Sayonara, baa-chan, s
ei que toda mãe tem seu divã
Samurai Vivan, tanto faz ter fã

Estes versos iniciais ilustram a coerência do processo para o qual chamo a atenção na primeira parte da canção. Não se trata apenas de um exercício de verborragia, em que o canto vai soltando termos estrangeiros de maneira aleatória. Sabotage, como mestre da palavra que é, trava com os vocábulos japoneses um incessante jogo de negociação, testando os limites das línguas portuguesa e japonesa e produzindo uma amálgama entre as duas. É evidente que ele sabia que “um, dois, três” na verdade é “ichi, ni, san“, no entanto o compositor não se interessa por uma correlação fidedigna entre os dois idiomas, mas sim em condicioná-los a seu modo, em nome do ritmo, das rimas e da métrica.

Tal operação que, de novo, assinalo corresponder ao movimento de recepção de uma cultura outra por um determinado sujeito que nela não está inserido, dá-se portanto em todos os níveis na forma estética de “Dorobo“. Os versos vão ficando cada vez mais sofisticados e não se limitam apenas ao jogo de rimas com termos de duas línguas diferentes. Há passagens em que é difícil definir se o que se escuta é português ou japonês sem acompanhar a letra por escrito, como em:

Sim, sansei, hoje sei gohan com inu cai bem, também
Que eu me lembrei, banzai, sai, Satanás

Ou então em:

Nii-chan kirei, se tu quer, vou querer, também, meu bem-querer
niko-niko, um dia sair com você

Em tais versos, Sabotage é perspicaz em descobrir uma proximidade sonora entre os dois idiomas, valendo-se de uma escolha de palavras precisa e do deslocamento de sílabas tônicas (uma constante em sua obra): “um dia sair com você” vira “um dia sair com você” (a pronúncia fica algo como “un-dji-ya-sai“, se assemelhando com a fala japonesa). [nota: aqui o negrito corresponde ao acento tônico]

Por fim, neste 3 de abril de 2020, quando Sabotage completaria 47 anos, o JBox presta essa singela homenagem, na tentativa de revelar àqueles que não (ou pouco) conhecem a sua obra um episódio pouco lembrado. Para os que se interessam pelas mais diversas formas de relação entre o Brasil e o Japão, “Dorobo” constitui não apenas um documento valioso sobre a recepção de elementos da cultura japonesa nas grandes cidades brasileiras no começo do século, mas também uma amostra da capacidade da inteligência brasileira em interagir ativamente com o dado de uma realidade tão distante, transformando-a para que se torne parte da nossa realidade também.

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Colaboraram Laura “Gasseruto” e Natália “Kazu”, da equipe do JBox.