Entre a batalha feroz das principais editoras de mangá nas bancas do Brasil, é sempre bom dar uma espiada no material alternativo que outras empresas vêm apostando, expandindo as opções do mercado. Entre essas, a Editora Alto Astral (via selo Astral Comics) talvez seja a mais corajosa, trazendo desde títulos eróticos até os chamados “manfras”, apelido dado aos quadrinhos franceses produzidos com a estética clássica dos mangás.

A França é um dos mercados mais representativos de mangás fora do Japão, tanto que muitos títulos orientais do início do “boom” nas bancas brasileiras (com Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball pela Conrad em 2000) eram traduzidos com base na versão europeia ao invés da original – Cavaleiros foi um desses. Toda essa paixão pelos quadrinhos japoneses fez com que muitos artistas franceses fossem influenciados pela arte dos mangás, ao ponto de termos manfras desenhados até com o sentido de leitura oriental.

No cenário de quadrinhos franceses, um dos nomes mais representativos é o da editora Les Humanoïdes Associés. Criada em 1974, a empresa nasceu para publicar a Métal Hurlant, revista de comics adultos que seria conhecida mundialmente através de sua versão americana – a Heavy Metal, editada no Brasil nos anos 1990. Com o tempo, tornou-se uma editora para todo o tipo de quadrinhos, incluindo mangás originais, como foi o caso da revista Shogun Mag, editada (com algumas pausas e remanejamentos) entre 2006 e 2009. É dessa Shogun Mag que saíram alguns títulos já publicados em encadernados no Brasil pela Astral Comics, como B.B.Project e Vairocana, além do título desta matéria, Tengu-Dô.

Tengu-Dô foi uma história que surgiu meio por acaso nas mãos de Alex Nikolavitch. Especialista em comics americanos, Alex traduziu diversos títulos da Marvel e da DC para a Panini francesa e até chegou a roteirizar histórias nos EUA. Ele nunca tinha pensado em trabalhar com mangás até um amigo encaminhá-lo ao projeto da Shogun Mag, onde iniciou com um título chamado L’Escouade des Ombres (O Esquadrão das Sombras). A proposta de mexer com conteúdo histórico envolvendo samurais surgiu nas mãos do escritor na missão de criar um enredo que service para os desenhos de Andrea Rossetto, um então jovem desenhista italiano.

Alex pegou boa parte de sua paixão pessoal pelos samurais, as experiências com os filmes de Kurosawa e o clássico eterno Lobo Solitário para resgatar uma história de viagens no tempo escrita quando era garoto, nascendo então Tengu-Dô.

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História

O enredo começa de forma simples, com o filho de um criador de búfalos que decide ser um samurai. O jovem vai contra as vontades de seu pai e namorada, tendo aulas com um ancião dos arredores de onde vive. O velho lhe conta sobre as lendas em torno de Tengu, um monstro que vive no “coração da eternidade” e que foi derrotado por ele há muito tempo atrás. O discípulo (seu nome não é mencionado em nenhum momento) é meio descrente no início, mas acaba aos poucos se entregando ao destino de encontrar o demônio e derrotá-lo, logo após a morte de seu mestre pelo mesmo.

O recente guerreiro parte então numa jornada, não só para vingar seu mentor, mas em busca de sua auto-afirmação. No meio do caminho, encontra um aparente aliado careca e maneta, que lhe guia e lhe proporciona a primeira viagem no tempo ao passado, onde é posto em confronto com uma verdadeira guerra.

Ao longo dos três volumes, a simplicidade inicial dá lugar à uma complexa dimensão temporal, onde vemos o protagonista passear por diferentes fases da história (chegando até a passear pela tragédia da bomba atômica no Japão) e de si mesmo, encontrando-se consigo diversas vezes e se vendo em um ciclo de acontecimentos.

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Arte

Os desenhos de Andrea Rossetto lembram traços de mangás mais antigos, da década de 1990, mas também próximos de animações ocidentais que se inspiram nos animes – como Avatar, ou mesmo Três Espiãs Demais, que não por acaso é uma animação francesa. Por ser uma história mais séria (Tengu-Dô é visto como seinen pela Shogun Mag, ou seja, voltado para adultos), não vemos muito daquelas expressões exageradas características de mangás, mas o básico está ali, como os olhos, a narrativa em “novela”, arte monocromática, etc.

Definiria a arte do desenhista como “correta”. Ela cumpre o papel de ilustrar bem o roteiro de Alex, mas não se mostra tão marcante e original que lhe valha grande reconhecimento. É bonita, principalmente no primeiro volume, junto aos cenários, mas se mantém no comum.

Nos volumes 2 e 3, aparentemente ele perde um pouco a mão em alguns casos, e os traços dos personagens se mostram inconsistentes (há uma página onde o mesmo personagem aparece várias vezes e fica difícil saber se é realmente o mesmo cara). As cenas de ação, embora bem desenhadas, não parecem transmitir o calor da batalha como os japoneses fazem com mais facilidade – talvez esteja no sangue, né? Para não desmerecer o trabalho, há cenas que fogem dos quadros comuns, onde Andrea mostra melhor a sua habilidade e faz com queiramos que ele tivesse bolado outras no mesmo nível.

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Considerações

Confesso que não dava muito para este mangá, ou “manfra”, quando o peguei em mãos. O começo extremamente simples manteve o meu pé atrás, mas fiquei realmente impressionado em quão complexo se torna o emaranhado temporal proposto pelo autor. Diversas vezes fiquei confuso, como o próprio Alex – como confessado pelo mesmo em um dos extras, mas depois da primeira lida percebi o maior atrativo: ler de novo.

É realmente interessante poder encaixar todos os acontecimentos a partir de uma releitura da obra, quando as coisas começam de fato a fazer mais sentido. O que fica mais vago mesmo é a interpretação da mensagem em aberto no final, ao critério do leitor.

A arte, apesar de não ser o maior destaque, não causa incômodo como várias das “tentativas de emular mangá” que estamos acostumados por aí, bem pelo contrário. Vale a chance da leitura àqueles que querem tentar algo diferente.

Edição Nacional

No vídeo acima, você pode conferir com mais detalhes o resultado da edição física dos três volumes da coleção da Astral Comics.

Os quadrinhos estão em papel off-set (sem as transparências que infernizaram as vidas das “grandes”) e as artes das capas são praticamente as mesmas das originais francesas, exceto que o subtítulo de cada volume é maior na edição nacional, no rodapé.

A tradução (feita por Beatriz Le Senechal) está redonda e não pude notar nenhum erro, exceto uma falha minúscula nos extras, onde o título americano de Lobo Solitário, “Lone Wolf and Cub”, aparece como “Lone Wolf and Club”.

O volume 1 traz ao fim da história um “making of” interessante, onde o autor fala do processo de composição da obra. Há também uma galeria “sketchbook“, com alguns esboços dos personagens no traço de Rossetto.

Já no volume 2, além da continuidade do making of, temos uma galeria com artes dos personagens feitas por outros autores, o que também se repete no volume 3, com novas artes.

Curiosamente, todos os volumes trazem na última página um aviso de que a leitura é no padrão ocidental, da esquerda para a direita. A Astral considera aqui que já é hábito do leitor de quadrinhos pegar um mangá e ler no sentido oriental.

Avaliação Final

História: 3,5/5
Arte: 3/5
Edição Nacional: 4/5

As três edições de Tengu-Do podem ser adquiridas através do site oficial da editora: loja.editoraastral.com.br