Já faz um bom tempo que os animes e mangás ganharam, no Brasil, o que chamam de “imprensa especializada”. Além de veicular notícias relacionadas a esse meio (abrangendo tanto o mercado nacional quanto o internacional), também somos responsáveis por produzir material para oferecer ao público algum tipo de noção acerca do que está disponível no mercado  – daí a funcionalidade das resenhas e análises. Além disso, esse material produzido por nós (sites e blogs) têm, ou deveriam ter, um intuito em específico: fazer com que o mangá realmente seja visto, reconhecido e apreciado como artifício cultural e literário.

No entanto, trabalhar com uma linguagem verbovisual tão marginalizada (em muitos aspectos) exige certa destreza – que muitas vezes nos falta. Muitas obras têm o seu valor subestimado ou reduzido pelos leitores e – principalmente – pela própria crítica (pode nos incluir mais uma vez), que é quem tem o dever de expor e tratar com a devida atenção a matéria tratada.

Quando Planetes foi lançado no ano passado, pela Panini, muito se falou sobre a qualidade dessa narrativa. Os que já conheciam, se deleitaram novamente com a obra máxima de Makoto Yukimura, e os que tiveram contato pela primeira vez foram positivamente surpreendidos pela sua grandeza literária. Mas onde é que reside, objetivamente, essa grandeza? É o que tentaremos responder nesse texto.

É uma notícia antiga, mas lembro de ter visto na TV a história de duas meninas de dez anos que deixaram um bilhete dizendo: “não temos um motivo para morrer, mas também não temos um para viver”, e pularam de um prédio. Nenhuma das duas sobreviveu. Às vezes, penso nisso. Se eu fosse agraciado com a oportunidade de falar com elas no momento em que pulariam, o que será que eu teria dito ou feito? E se eu tivesse mostrado apenas três quadrinhos de uma tirinha e prometido revelar o quarto quadro apenas  se  elas  decidissem  viver para  ver?  Será  que  a estratégia  daria  certo?  Mas teria que ser uma história muito engraçada ou intrigante. Como seria bom se, no último quadro, houvesse uma piada daquelas impossíveis de não rir, que as fizesse mudar de ideia e lhes desse forças para que,  no dia seguinte, pudessem retornar ao dia a dia normalmente. Se eu tivesse a habilidade de elaborar histórias assim, faria um enorme sucesso. Quem me dera ter um talento como esse. (Prefácio da 3ª edição de Planetes)

 Makoto Yukimura

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Primeiras informações

Detalhes técnicos

Planetes é um mangá escrito e ilustrado por Makoto Yukimura. Completo com 4 volumes encadernados, estampou as páginas da Morning, da Kodansha, entre os anos de 1999 e 2004, e totalizou 26 capítulos. A série recebeu uma animação, em meados de 2003, que rendeu 26 episódios produzidos pelo estúdio Sunrise.

O título do demográfico seinen chegou ao Brasil em maio de 2015 – cerca de 1 ano depois de Vinland Saga, o outro sucesso do autor, ter a publicação iniciada por aqui. Os 4 volumes vieram numa edição caprichada, com orelhas, laminação fosca com detalhes em verniz, papel offset 90g e páginas coloridas; o mangá é considerado inadequado para menores de 16 anos e o preço de capa foi definido em R$ 18,90.

A história

No ano de 2075, a humanidade expandiu seus domínios e alcançou parte significativa do espaço (ou nem tanto). Porém, como era esperado, a negligência dos responsáveis pela exploração espacial causou impactos ambientais terríveis e fez com que a atmosfera terrestre ficasse cheia de lixo espacial. Surge daí a necessidade de haver uma equipe de coletores de lixo espacial, que é composta pelos protagonistas da história: os tripulantes da nave Toy Box. Em meio a essa realidade futurista, Hachimaki e seus companheiros passam por diversas situações de conflito, fazendo com que eles e o próprio leitor questionem o que são diante da grandeza do Universo.

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Sobre a arte (e a distribuição dos elementos visuais)

O primeiro aspecto que nos chama a atenção quando lidamos com qualquer tipo de narrativa feita através de linguagem verbovisual é a arte. É o primeiro contato da relação entre leitor e obra. E em Planetes, assim como fez posteriormente em Vinland Saga, Yukimura demonstra um domínio claro sobre os elementos visuais empregados.

O traço do autor é belíssimo e desde as primeiras páginas isso já fica bastante evidente (além das capas, que funcionam como mais um atrativo). Yukimura tem uma ótima noção de estética e anatomia. Uma marca de seu estilo bem definido é saber adequar seu traço de acordo com as situações em que os personagens da narrativa se encontram. Há em Planetes um equilíbrio exemplar entre um traço mais realista, que se apresenta em partes mais específicas, como nos instantes de maior subjetividade e também nos momentos em que os rumos da história parecem estar em jogo, e um traço mais simples, que pode ser observado em cenas mais cotidianas, como nos mangás do gênero slice of life, e também nos instantes de alívio cômico.planetes-review-04

E a beleza de seu traço não se faz apenas na caracterização dos personagens. Além da ótima realização nas roupas, acessórios e naves, os cenários chamam atenção pela sua riqueza de detalhes. É perceptível que o autor direcionou grande parte de sua atenção (e de sua equipe de assistentes) para fazê-los, pois as minúcias da parte interior das naves e as paisagens são notáveis. Em cada volume temos várias cenas nas quais personagem x espaço figuram em harmonia perfeita.

Ainda a respeito da arte, temos um outro aspecto importante a mencionar: Makoto Yukimura não brinca em serviço quando o assunto é dotar seus personagens de múltiplas expressões. O autor mostra muita sofisticação e consegue te fazer perceber as emoções de Hoshino e cia. só de olhar para a face de cada personagem. São constantes os quadros em que Yukimura lança mão dessa habilidade, que fica ainda mais clara nas cenas em que há apenas uma mudança na direção do olhar de um personagem, por exemplo, ou então quando, de um quadro pra outro, só é alterado o posicionamento de uma boca, ou nariz e etc. Enfim, cada detalhe se mostra determinante na construção de sentido nas cenas e no desenvolvimento da narrativa.

Por último, vale destacar como a arte se mostra profunda e carregada de significado nas belíssimas páginas duplas e nas ilustrações coloridas – principalmente quando o espaço é maior do que os outros elementos que preenchem a ilustração (geralmente algum personagem), contribuindo formalmente para a ideia de “o Homem, mortal e minúsculo, e o Universo, infinito e imensurável” que está presente em toda a obra.

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A matéria e o tratamento

Depois de nos posicionarmos sobre a arte de Planetes, vamos agora nos voltar para a outra metade da laranja que constitui qualquer instrumento artístico: a matéria e a maneira como ela é tratada pelo autor. É importante constatar que, nesse tipo de produção (o mangá), imagem e texto não podem, de modo algum, ter a sua relação desprendida para a elaboração de uma análise, visto que eles “conversam” para formar a narrativa. O que faremos agora é tratar do inteligível, ou seja, do que diz respeito ao significado da obra, e não de sua forma de expressão.

Comecemos expondo a multiplicidade de temas sobre os quais Planetes dá conta. Logo de cara nos deparamos com o problema da falta de consciência ambiental que persiste mesmo num momento em que a humanidade avançou consideravelmente. Mas isso é só a ponta do iceberg para uma crítica severa que Yukimura faz sobre a sociedade. Além de utilizar a questão do lixo espacial para sugerir que a nossa espécie continuaria insistindo nos mesmos erros, mesmo quase um século depois do período em que o autor escreveu a obra, há também um posicionamento a respeito da Guerra ao Terror iniciada (oficialmente) pelos EUA no início do séc. XXI, mais precisamente após o ataque às Torres Gêmeas, em 2001.

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Yukimura escreveu Planetes entre os anos de 1999 e 2004 – pegando quase todo o primeiro mandato de George W. Bush – o que nos faz acreditar ainda mais nas implicações causadas pelo contexto histórico sobre a obra. A Síndrome de Kessler, que pode ser definida como “fenômeno que ocorre quando os detritos em aceleração dão origem a mais detritos”, pode ser vista como uma metáfora para a desastrosa tentativa de acabar com o terrorismo que foi a Guerra ao Terror – que, ao invés de tratar um problema tão complexo com o cuidado necessário, foi executada com um planejamento raso e simplista, não atentando às raízes do problema, mas sim às suas consequências.

Ainda a respeito desse assunto, não devemos nos esquecer da presença de um grupo terrorista na história (o que pode comprovar ainda mais nossa hipótese). Os pertencentes ao grupo são do Oriente Médio e estão insatisfeitos com o sistema devido à aplicação dos recursos extraídos no espaço – esses recursos são todos explorados por grandes potências, como EUA, Rússia e Japão. Hakim, o personagem que representa esses “terroristas”, é quem nos mostra o outro lado da moeda, mais precisamente no capítulo 8, num diálogo com Hachimaki. Novamente, vale lembrar que o mangá se passa quase um século depois do momento histórico real em que foi escrito. Hoje, 12 anos depois do fim da obra, as coisas não mudaram num panorama geral. As super potencias continuam se favorecendo com a exploração de recursos e, provavelmente, se um dia houver uma expansão significativa dos domínios humanos no espaço, as coisas deverão caminhar para o que Makoto Yukimura tentou prever.

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Por último, um outro assunto extremamente delicado é tocado pelo autor: o racismo. No quarto volume, temos a história sobre um tio de Fee (a capitã da Toy box e uma das personagens principais, ao lado de Hachimaki), que sofreu com o preconceito étnico. Trata-se de um personagem negro que é tido como o principal suspeito de ter sequestrado uma criança; e as suspeitas chegam até ele sobretudo pelo fato de ele ser negro (e de classe menos favorecida). Temos nessa parte da história uma das mais profundas representações da realidade já vistas numa história em quadrinhos (e que me limitarei a descrever aqui para evitar spoilers) e a sensibilidade com a qual o autor trata do assunto é notável. É definitivamente a parte mais triste do mangá.

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Voltando-se agora para os personagens, é interessante ver a maneira como eles são explorados. Fee Carmichael é, talvez, a que mais chame a atenção pela sua evolução na história. Ela passa do status de coadjuvante ao de quase protagonista, ao longo dos quatro volumes. Ao ler os capítulos iniciais, fica a impressão de que o papel de personagem mais importante, depois de Hachimaki, seria tomado por Yuri, o astronauta russo que também faz parte da equipe da Toy box. Mas não, Fee é quem chega ao fim como a grande personagem ao lado do protagonista.

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O protagonista também evolui de maneira bastante significativa, e o mais legal é observar como se dá essa evolução. Hoshino (o sobrenome de Hachimaki, que na verdade é um apelido para se referir à faixa que ele utiliza na cabeça) vai tendo a sua personalidade moldada de acordo com o que abstrai dos personagens ao seu redor. Ele parece retirar de cada diálogo em que se envolve um valor importante que passará a ser considerado por ele e acrescentará para a formação de seu caráter. É assim nas conversas com Fee, Yuri, na sua relação inicialmente complicada com Tanabe (uma moça que aparece lá pela metade da história), com Hakim (lembrando: o “terrorista”) e com os familiares – que carregam parte importante da mensagem adquirida por ele para a sua evolução como ser humano.

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Em linhas gerais, é Hachimaki quem carrega, na narrativa, a crise existencial que se dá quando o indivíduo se depara com a grandeza do Universo. Mas, como puderam observar na multiplicidade de temas aqui expostos, é um erro limitar essa grande obra a isso – mesmo que ela esteja presente de maneira óbvia o tempo todo. É justamente essa obviedade que nos motiva a ir atrás de uma leitura mais complexa de Planetes, a fim de contemplar tudo aquilo que a obra tem a nos proporcionar.

É óbvio também o paralelismo utilizado pelo autor acerca da Terra e das outras regiões habitadas pela espécie humana. Diferentemente do que estamos acostumados a pensar, a Terra e os outros domínios alcançados pela humanidade em Planetes, como Júpiter e a Lua, são colocados não em contraste, mas como pertencentes a um mesmo conjunto infinito de astros e planetas – o Universo – e são o pano de fundo para mostrar como, não importa onde estivermos, agiremos da mesma maneira que agimos aqui, insistindo nos mesmos erros e haverá sempre aqueles que se beneficiam e são privilegiados em função do detrimento das classes menos favorecidas.

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Por fim, concluímos que Planetes concentra todos os aspectos necessários para ser considerada uma grande realização literária. São inúmeras referências, intertextualidade, representação do real (não como uma fotografia, mas como matéria transformada, ou seja, ficcionalizada em literatura) e ótima noção de tratamento temático. Makoto Yukimura definitivamente conseguiu alcançar, em Planetes, o seu auge no que diz respeito à técnica de criação.

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 A edição nacional

Como já dissemos em outra oportunidade, as resenhas de mangás completos se voltarão mais para os aspectos formais da obra, e não será nosso foco principal versar sobre o material físico da edição nacional. Por isso, faremos um breve comentário sobre a edição brasileira de Planetes, que, já lhes adianto, ficou belíssima.

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A começar pelas capas, o trabalho editorial da Panini foi muito competente. E o acabamento gráfico foi igualmente competente para chegarmos num resultado muito satisfatório. Embora tenha fugido um pouco do padrão das capas originais japonesas, seu design relativamente alternativo fez com que todas ficassem muito bonitas, sendo um dos trabalhos editoriais mais legais dos últimos anos (ao lado da recente edição de Vagabond, da própria Panini, e de Thermae Romae, da JBC). As orelhas também merecem os devidos elogios, pois dão um toque de requinte a mais na edição que é sempre bem-vindo.

O papel das 4 edições apresenta uma boa qualidade, no entanto alguns leitores reclamaram sobre o quarto volume e constataram que estava mais transparente que os demais. Não pudemos notar isso (talvez tenhamos tido a sorte de pegar o volume de uma tiragem que não foi afetada), mas é bem provável que realmente tenha acontecido, visto que não foram poucos os que reclamaram por aí.

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A qualidade da impressão também está muito boa, sobretudo nas páginas coloridas, que estão excelentes (e são muitas). Outro ponto a ser destacado é a diagramação, que, se não me falha a memória, não cometeu nenhum erro aparente. A opção por utilizar um glossário (como é de praxe nas edições da Panini) caiu como uma luva para evitar uma possível descontinuidade (causada pelas notas de rodapé) no ótimo trabalho de arte sequencial realizado por Yukimura.

A tradução, creditada à Lídia Ivasa, também está bem adequada e a costumeira alternância de tom dos personagens (que varia entre as cenas mais sérias e as mais cômicas ou cotidianas) está presente assim como deve ter sido pretendida pelo autor.

Por fim, Planetes apresenta um belo custo-benefício: conta com uma história fantástica e muito bem narrada (com argumento e arte brilhantes) e uma edição digna da grandeza da obra, fazendo valer cada centavo.

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Planetes

de Makoto Yukimura
Formato: 13,7 x 20 cm, 228 páginas (em média)
nas 3 primeiras edições e 336 no último volume
Papel: offset, 90g
Concluído com 4 volumes

História, arte e desenvolvimento: ★★★★★ (5/5)

Nota da edição nacional: ★★★★★ (5/5)