“Não dá para ter um segundo de esperança”, relata um colega meu enquanto converso com ele sobre Complicado. A afirmação faz sentido: essa é uma obra sem qualquer espaço para positividade. A cada nova passagem contada, nos afundamos mais na vala de desgraças que é a vida do protagonista.

Publicado originalmente entre 2004 e 2005 na Comic Seed!, revista online da Penguin Shobo, e depois impresso pela editora Shogakukan em 2006, Complicado é um mangá seinen feito pela autora Natsume Ono. A mangaká é também conhecida por obras como Ristorante Paradiso, Futagashira, O Homem que Foge (lançado pela JBC aqui no Brasil em 2017) e ACCA: 13-ku Kansatsu-ka, que ganhou uma adaptação em animê em 2017 através do estúdio Madhouse.

A publicação do quadrinho foi anunciada pela editora L&PM em 2014. No entanto, apenas agora, em 2022, o gibi viu a luz do dia. Se desejam um ponto de vista totalmente pessoal sobre esse gap, defendo que Complicado está melhor posicionado nesses tempos, onde as conversas acerca de depressão, traumas e suicídio são mais constantes sobretudo entre jovens, do que estaria quase uma década atrás.

Reprodução/L&PM Pocket

Não que o enredo traga algum questionamento ou resolução simples sobre esses assuntos. Inclusive, passa longe disso. O ponto é que, talvez, a mentalidade agora já seja um tico mais desenvolvida no público, de modo que uma história tão cheia de “gatilhos” possa ser consumida, os levantamentos por trás dela possam ser refletidos e a narrativa em si possa ser apreciada sem tantas contraindicações e, principalmente, sem censura.

Na trama, acompanhamos o jovem Ian. Sua vida familiar anda bem ruim: maltratado pela mãe, abandonado pelo pai, ele busca reencontrar sua irmã mais velha, Kylie. Para isso, ele viaja da Austrália para a Inglaterra, com um período pelos Estados Unidos, e encontra dificuldades variadas nesse processo. No entanto, ele faz amizade com um jornalista, Jim, que deseja contar sua história em um livro.

Não entrarei em mais detalhes para não estragar algumas surpresas (ruins), mas toda a vida de Ian e de seus familiares é regada a momentos terríveis, que envolvem violências de diferentes tipos, estupros, prostituição infantil e daí para baixo.

A Natsume Ono opta por uma narrativa que desvela esses traumas aos poucos. A cada capítulo, somos expostos a novos fatos devastadores que imergem a trama no que de pior a humanidade pode proporcionar a uma criança. Fica pior a cada página. E como a história é disposta de um jeito não linear, não há qualquer espaço para esperar um final feliz, visto desde o início já sabermos o quão trágico ele será.

Reprodução/L&PM Pocket

Parte do charme da narrativa está em essa ser uma história dentro de uma história. Um dos meus livros prediletos, O Eleito, do Thomas Mann (publicado aqui pela Companhia das Letras), segue uma estrutura onde a história, na verdade, é contada por um monge, que é inspirado por um deus da narrativa. Então, acompanhamos os acontecimentos do jeito que o narrador quis contar, não exatamente seguindo fatos.

Essa estrutura é replicada aqui. No início do mangá, Jim diz ao Ian que acha a vida dele fascinante, que nunca viu nada parecido em um filme, que se estivesse em um roteiro, pareceria ficção. Então, que ele escreverá sobre o garoto. A partir daí, podemos intuir que o que é mostrado nas páginas não são exatamente os eventos que ocorreram com o Ian veridicamente, mas sim o ponto de vista de Jim sobre isso, do jeito que ele quis dispor. É a história de Ian a partir do lápis de Jim.

E esse pode ser o porquê de os pontos mais sórdidos se revelarem numa crescente narrativa. Na vida real, as coisas não tentem a escalar (pro bem e pro mal) de uma forma tão constante. Mas essa não é uma vida real. Essa é uma história baseada em fatos. Livremente baseada. A vida desgraçada do Ian é montada para descer essa estrada, pois é roteirizada para atrair a atenção dos leitores.

Tudo fica ainda mais intenso pelo estilo de desenho colocado aqui. Os personagens são escalados com as cabeças proporcionalmente maiores que o esperável para corpos tão magros e pequenos. Os olhos são extremamente acentuados, com boa parte deles parecendo ter “olheiras” fixas. O estilo casa com a história, pois é ligeiramente fantasioso, mas com um pé no assustador, como se todos fizessem parte de uma perspectiva infantil distorcida.

Reprodução/L&PM Pocket

Desse modo, Natsume Ono entrega um dos mangás narrativamente mais interessantes dos últimos anos. Complicado é uma obra triste, depressiva ao extremo, embebida em desesperança, que não dá finais felizes, não entrega resoluções positivas para traumas grotescos e foge totalmente de qualquer tentativa professoral acerca da vida. Fica a cargo dos leitores ler, entender e realizar conclusões em cima. Isso tudo contado de um jeito que foge do “bê-á-bá” narrativo usual. Um gibi terrível na mesma proporção que espetacular.


Galeria de fotos

Confira no álbum abaixo algumas fotos da edição brasileira de Complicado.

 

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Essa resenha foi feita com base na edição cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora L&PM. 


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