Mangás são, desde os primórdios, uma forma de arte que sempre foi bastante pautada em denunciar vários tipos de opressão. Revistas como a Garo contavam com obras com fortes críticas ao autoritarismo, mensagens antiguerra e de luta social, além de trabalhar com autores que buscavam uma revolução através da arte, fugindo do estilo mais “infantil” que predominava na época para criar algo mais experimental.

No entanto, apesar do gekigá ter sido aparentemente mais vocal nesse aspecto, essa resistência em forma de arte permeava todas as “demografias”, desde Osamu Tezuka e suas obras infantis que contavam com fortes críticas em relação às guerras, passando por Ashita no Joe se tornando um marco histórico para a luta de classes no Japão e indo até o influente “grupo do ano 24″*, formado por várias autoras que trouxeram uma visão feminina mais forte para não só no shoujo, mas para os mangás como um todo, além de pautarem fortemente questões de gênero que ressoam até hoje em outras obras.

*Nota: o grupo tem esse nome porque as autoras teriam nascido todas em torno do ano 24 da era Showa (1949 no nosso calendário), mas essa é uma categoria criada por críticos, jornalistas e acadêmicos, não é como se todas as autoras fizessem de fato parte de “um clubinho”.
imagem: uma conversa entre Ryo e Jin no primeiro volume de Boys Run the Riot. Na página, Ryo, em lágrimas, fala para Jin: "Por dentro eu sou um homem!".

Foto: Teke/JBox.

Tudo isso, claro, não ficou apenas no passado dos mangás, já que essas denúncias ainda se fazem bastante presentes na mídia. E um forte exemplo de obra que é bastante vocal sobre isso é Boys Run the Riot, mangá de Keito Gaku que não só traz questões da luta de pessoas trans, mas também outras variadas discussões LGBTQI+.

Na história, acompanhamos Ryo, um garoto que, devido à pressão social, decidiu esconder que é trans. Apesar disso, Ryo ainda busca se expressar como pode, usando roupas comumente consideradas como masculinas, além de tentar demonstrar sua rebeldia através do grafite e da pichação.

Certo dia, Ryo é pego de surpresa ao encontrar Jin, um colega de classe, fora da escola, revelando assim seu segredo para ele. No entanto, Jin não só trata Ryo positivamente, mas também o convida para a empreitada de começar uma marca independente de roupas.

É a partir do processo de fazer a marca de roupas funcionar que a história de Boys Run the Riot começa a desenvolver, e através dela, Ryo começa a expandir sua visão de mundo sobre diversas coisas. Além de poder se expressar artisticamente criando designs para as camisetas da marca, Ryo começa a conhecer mais pessoas ao longo de sua jornada, fazendo com que ele se sinta ainda mais à vontade para mostrar como realmente se sente em relação ao seu gênero.

Esse processo, entretanto, não é nada fácil, pois ele se depara constantemente com a transfobia, não só de pessoas que são diretamente preconceituosas, mas também de quem acaba fazendo isso de forma não intencionada. Todos esses casos acabam incomodando Ryo porque fazê-lo notar, cada vez mais, que mesmo quem o aceita não está livre das amarras da construção social. Ele não quer ser visto como diferente porque sua identidade de gênero, antes de tudo, não deveria causar qualquer estranheza.

Durante a obra, Ryo precisa também lidar com sua sexualidade: apesar de reconhecer que gosta de garotas (e sempre gostou de uma amiga), em certo momento o rapaz fica conflitado quando conhece um homem se interessa por ele em seu trabalho de meio período. Essa situação é um dos pontos altos do mangá, já que aqui Ryo não só expressa sua aversão à ideia de ficar com um homem, mas também fica claro como ser tratado como mulher pode afetar a mente do personagem, em um retrato bastante vívido para o leitor o quão incômodo aquilo é. Mas, fica ainda mais complexo quando Ryo percebe que ainda não entende sua sexualidade por completo, um sentimento que acaba o consumindo por dentro.

imagem: página do volume 3 de Boys Run the Riot onde cenas felizes do passado de Tsubasa são mostradas. O personagem narra durante as cenas o seguinte: "Eu fui salvo quando virei o WING. Minha vida mudou. Conheci novas pessoas. E aprendi a me divertir. Meus horizontes expandiram.

Foto: Teke/JBox.

É nesse momento que entra Mizuki, outra colega de trabalho que tenta entender como Ryo se sente sobre sua sexualidade. Apesar da situação também ser um tanto conturbada em alguns momentos, eventualmente Ryo consegue se expressar para ela entender como ele verdadeiramente se sente. Nessa situação, Mizuki acaba se tornando um ponto importante para Ryo se entender melhor não só consigo mesmo, mas também ser capaz de se abrir mais para as outras pessoas sobre seu gênero e sexualidade.

Outra parte marcante na história é quando Jin, Ryo e Itsuka — outro membro do time da marca — estão correndo atrás de parceiros para divulgar as camisetas da Boys Run the Riot e isso os levam a conhecer Tsubasa, um youtuber conhecido como WING que trata sobre temas LGBTQI+ e eventualmente decide divulgar a marca com um vídeo.

O problema é que Tsubasa divulga no vídeo, sem a permissão, que Ryo é um jovem trans, criando um burburinho que força o rapaz a bater de frente principalmente com os colegas de sua escola e, eventualmente, com sua família, sem falar que do conflito criado com o próprio Tsubasa nesse momento da história.

Com o foco passando um pouco para Tsubasa, descobrimos que ele sofreu bastante preconceito por ser gay e por querer expressar feminilidade durante sua juventude, só que, depois que finalmente começou a se expressar mais abertamente, percebeu outras coisas sobre si que o fizeram questionar sua identidade e sua imagem na internet, ainda mais sendo alguém tão influente para a cena LGBTQI+.

Durante o mangá, todas essas questões são debatidas de forma bem direta e, em alguns trechos, até mesmo didática. Ryo é uma imagem bem forte de que, mesmo quando existe “aceitação”, as coisas não são tão simples para viver como uma pessoa trans.

Os conflitos internos tanto de Ryo quanto de Tsubasa também são um retrato forte de que existem diversas minúcias que às vezes podem impactar como alguém realmente se enxerga e como os outros vão ou não julgar isso. A história também apresenta forte exemplo com Yutaka que, apesar de não ser apresentado como LGBTQI+ na história, se importa bastante com as pautas de gênero e até mesmo estudou sobre isso para entender melhor Tsubasa, seu primo. É através dele que Tsubasa conhece Ryo e também é através dele que vemos um pouco mais do didatismo do mangá.

imagem: Ryo, Jin e Itsuka mostram seus bilhetes com mensagens para o conceito da marca Boys Run the Riot. As três mensagens contam com apoio para quem é oprimido pela sociedade. Na conversa entre os três, é comentado "Uau... Eles são basicamente a mesma coisa..." "A gente pensa parecido. Somos uma boa equipe. Vai ser fácil e rápido de fazer".

Foto: Teke/JBox.

Como indicado no início dessa resenha, Boys Run the Riot não para por aí e abre espaço também para outras discussões sociais. Ao longo de todo o mangá, vemos que a marca independente dos protagonistas visa abrir espaço para qualquer pessoa à margem da sociedade e questões envolvendo pessoas nessas situações são retratadas pontualmente durante a obra.

A situação da marca também é envolta em questões de conflitos da juventude contra a opressão da “sociedade adulta”, já que os rapazes durante a história têm parcerias recusadas por ainda estarem no ensino médio ou “não estarem sérios sobre aquilo”.

Também existe uma questão envolvendo Jin e seu pai, que insiste em falar para o filho se preparar de verdade para a vida adulta e não se agarrar a sonhos que não vão levá-lo para lugar algum. Essa discussão também é vista em Itsuka, um jovem que sonha em ser fotógrafo, mesmo que seu pai tenha desistido de seguir essa carreira e o influencie a largar esse sonho. Depois de fazer uma parceria com Jin e Ryo para ser o fotógrafo da Boys Run the Riot, ele começa a consolidar seus objetivos e entender cada vez mais aspectos que o motivam a seguir a carreira.

Entre títulos recentes que visam discutir pautas LGBTQI+, Boys Run the Riot é extremamente importante no mundo dos mangás, pois o título carrega a essência que originalmente fez com que mangás prosperassem como a mídia que são. A obra não hesita em mostrar para o que veio, o que combina perfeitamente com o próprio roteiro permeado por rebeldia.

Assim como os artistas usavam os mangás para denunciar problemas na sociedade, Ryo usa seu grafite para denunciar o preconceito e se expressar como ser humano. Também assim como questões de gênero já estavam sendo debatidas nos anos 70, essa discussão continua viva até hoje e lutando para conquistar cada vez mais seu devido espaço na sociedade.

É uma história que não se agarra apenas no didatismo e se esforça ao máximo para mostrar de forma firme que a discussão é necessária para a nossa sociedade, principalmente no momento atual, em que questões LGBTQI+ estão cada vez mais vocais e ganhando mais espaço. É um lembrete de que essa luta não deve acabar, mesmo que já exista uma maior conscientização, pois não é fácil se livrar de estigmas que perduram por tanto tempo. Sem dúvidas, um título essencial que deve ser lido e discutido mesmo fora da bolha dos fãs de mangás.


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imagem: capa brasileira do volume 1 de Boy Runs the Riot

Capa do volume 1. | Divulgação/JBC

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Essa resenha foi feita em parte com base nas edições cedidas como material de divulgação para a imprensa pela editora JBC, que disponibilizou os três primeiros volumes da obra para o JBox (o redator adquiriu o quarto e último volume, sem exigência do site).


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