O texto abaixo contém spoilers do volume 1 de Gigant.


O mangaká Hiroya Oku é especialista em bolar argumentos iniciais provocativos, que chamam atenção de imediato – pro bem ou pro mal, variando da percepção do leitor. Duas de suas obras ficaram bastante conhecidas por aqui: Gantz (2000-2013), sobre um adolescente que é salvo da morte e se vê preso num jogo real em que precisa caçar alienígenas; e Inuyashiki (2014–2017), que ganhou um animê recentemente, onde um cara mais velho é transformado num robô de destruição em massa. Partindo de ideias assim, o autor costuma dar pano para manga em tramas onde essas, não necessariamente, são o principal. Ele joga o foco para a reação dos personagens, explorando nesse meio tempo lados mais obscuros do ser humano, utilizando a violência e o erotismo, em diferentes proporções, como alegorias de choque. Tem quem goste, tem quem deteste. Mas funciona, ou ele não estaria há mais de duas décadas nessa.

Sua mais nova série é Gigant, em publicação desde 2017, que chegou ao Brasil em dezembro do ano passado. Nela, somos apresentados a ainda outro universo de situações tresloucadas que pareceriam absurdas demais nas mãos de outros artistas, mas podem ser bem promissoras quando contadas pelo Hiroya Oku. Quando Papico, uma atriz de filmes pornográficos de pouco alcance, tenta ajudar um senhor que havia sido atropelado, ele prende em seu pulso um dispositivo misterioso que lhe dá a capacidade de mudar de tamanho. Aproveitando sua nova capacidade esquisita, ela começa a gravar os vídeos como uma mulher gigante, enxergando nisso uma oportunidade para deslanchar no mercado adulto. Paralelo a isso, o estudante de ensino médio Rei Yokoyamada, grande fã da atriz, coincidentemente começa uma amizade perigosa com ela. Mais a fundo, coisas esquisitas acontecem no Japão envolvendo votações num site de “fim do mundo”.

Nessa fórmula de brincar com as respostas dos personagens em meio a estímulos tão malucos, o primeiro volume de Gigant acerta em cheio em vários pontos.

Sequência do mangá mostrando Rei assistindo ao filme de Papico.

Reprodução/Panini

Seu maior trunfo é conseguir construir uma narrativa esquisita de acompanhar, onde os fatos são revelados aos poucos, com níveis de importância que vão se sobrepondo até um grand finale de tirar o chão. Inicialmente, somos levados a acreditar que o protagonismo se limitará à vida colegial de Rei, com seus gostos por cinema e por entretenimento adulto afetando seu ambiente ao redor. Ele sonha em se tornar um cineasta, conversa sobre isso com um amigo, pretende montar com ele uma equipe para filmar um roteiro que concorrerá num festival, tendo como estrela a menina mais bonita de sua classe. Contudo, ele ganha novas prioridades ao conhecer Papico, que fica grata por ele ajudá-la numa ocasião.

Essa relação nada inocente entre um adolescente e uma mulher mais velha, acostumada ao mundo pornô, é eclipsada em urgência quando Papico é atacada e consegue mudar de tamanho. Com a ajuda dele, a gigante tenta investigar o que a levou para aquilo, com o roteiro revelando ainda outra camada narrativa, misteriosa, sobre viagens no tempo e tecnologias futurísticas que fogem à compreensão. Se já não bastasse isso, a roda gira mais outra vez. Eventos estapafúrdios acontecem na cidade e eles são originados de um site, popular entre crianças, que os seleciona em votações, tal como um Big Brother. O primeiro deles é, literalmente, uma chuva de fezes. Os seguintes geram consequências cada vez mais perigosas.

Tal sequência de plots cada vez mais grandiosos pode parecer ruim num primeiro momento, já que é como se o foco da história mudasse a cada momento. Entretanto, a prática é bem mais orgânica que isso. Não só pela ação escalonar ao longo dos 9 capítulos, dando a impressão de que o volume fechado funciona como um episódio piloto de série, mas também pelo roteiro ir adicionando passagens curtas nessa meiuca que colam legal na construção dos personagens, do enredo, do universo, além de servirem como bons petiscos enquanto o prato principal não chega.

Cena do mangá onde Papico aparece gigante diante de Rei.

Reprodução/Panini

São vários os segmentos interessantes, dos mais bobocas aos com maior pungência social. Os diálogos do Rei com seu amigo sobre cinema são divertidos, ilustrando bem a figura do jovem fã de cultura pop, comparando diretores, especulando como seriam as reações deles ao assistirem produções de colegas que ficariam em casa em suas respectivas filmografias, elencando atrizes prediletas e por aí vai. Sua interação com a Papico exemplifica em tela bem o arquétipo do adolescente esquisito aprendendo a lidar com a sexualidade. É válido até traçar uma comparação entre suas expressões faciais, ao assisti-la nos vídeos e conversando diretamente, sabendo que ela responderá. No segundo caso, é sempre mais aflito, tímido, constrangido, desconfortável.

Mas a magia real está na degradação, nas situações particularmente pra baixo, sujas, que delineiam o íntimo da dupla e dos coadjuvantes ao redor. O roteiro não poupa ninguém, não tem medo de chafurdar os personagens na lama para retratar uma sociedade suja, mesquinha, pintando tons de cinza em telas que autores menos ousados optariam por faces unilaterais. Poucos seguidores no Twitter, o tédio da burguesia, fracasso em vendas no mercado adulto, cartazes ofensivos colados na vizinhança? É mais pesado que isso.

A menina na escola saindo do projeto do filme pois seu namorado a proibiu de participar é a pura tristeza de uma relação tóxica. Mergulhando mais nesse tema, assistimos Papico ser frequentemente agredida fisicamente por seu namorado, um encostado que se aproveita do dinheiro que ela faz na pornografia para bancar uma vida de mordomias. Vida de mordomias que também é desfrutada pela família da Papico. O segmento com ela indo visitar sua mãe, internada num hospital, é extremamente incômodo. Seus irmãos têm vergonha de seu trabalho, a humilham, mas dão a entender que não se importam dela sustentá-los assim mesmo. O mesmo para sua mãe, que deixa claro que Papico deve manter a família, ainda que tão vulgarmente em sua concepção. Não há glamourização da pobreza, idealização de que cidadãos de classes sociais menos favorecidas possuem um caráter mais limpo. São todos erradamente humanos.

Cena do mangá focando o rosto de Papico, que pergunta "Então... Por quê?"

Reprodução/Panini

E essas coisas são contadas através de uma arte bem bacana. O autor monta quadros com cenários urbanos e internos bastante detalhados em certas ocasiões, mas também usa construções mais minimalistas quando se propõe a apontar as atenções para os personagens em página. O ecchi é bem caprichado, as curvas exageradas da Papico são bem distribuídas, com um esmero especial nos takes mais pornográficos. Aqui está um caso onde esse sexploitation faz sentido, afinal, é um mangá assumidamente erótico, não um shounen de lutinha com pré-adolescentes em poses ginecológicas inexplicáveis. É de sacanagem mesmo, pornô, sem vergonha de se vender assim. Há, literalmente, cenas de sexo explícito. E faz isso muito bem. Uma página com a personagem gravando um filme gigante com vários caras num set é impressionante. Outra, com a Papico gigante em seu apartamento com seu namorado e o Rei, também enche os olhos. Isso tudo junto das implicações mais aprofundadas citadas acima? Daria um ótimo filme do David Cronenberg.

O primeiro volume de Gigant é muito bom. Bizarro, estranho, punk, impressionante. Mas muito bonito. E dá um nó no cérebro. É um começo ideal para despertar a curiosidade do leitor, abrindo um sem número de possibilidades para o futuro.


Capa do volume 1 de 'Gigant'

Para essa resenha, foi utilizado o primeiro volume de Gigant, publicado aqui no Brasil pela Panini em dezembro de 2019. Ele tem tradução do Caio Suzuki, capa cartonada, miolo em papel offwhite, com algumas páginas coloridas e vem com um marcador de brinde. O preço de capa está por R$22,90, com quatro volumes já tendo saído por aqui até então. Esse primeiro, em especial, enquanto essa matéria era escrita, não podia ser encontrado na Amazon. No entanto, ele ainda está disponível na loja online da Panini (pelo preço cheio) e na Comix (com desconto). O fascículo foi enviado ao JBox como material de divulgação para a imprensa à época do lançamento. Porém, por problemas de logística aqui do site, agravados mais tarde pela pandemia do COVID-19, só pode ser resenhado essa semana.