A imagem absoluta do estúdio Trigger com certeza são os diretores, animadores e roteiristas Hiroyuki Imaishi e Yoh Yoshinari. Os dois, trabalhando juntos ou separados, sempre costumam entregar obras que fascinam boa parte do público por sempre ter uma fórmula em que as coisas escalam em um nível gradual até chegar ao absurdo — coisa que costuma agradar pela “explosão que gera no roteiro”. Sim, essa é a fórmula normalmente repetida. E isso pode ser um problema também.
Uma das produções mais recentes do estúdio Trigger foi o animê BNA: Brand New Animal, feito em parceria com a Netflix. Como era de se esperar, o hype gerado desde antes da estreia já era enorme, pois seria mais um “animê do Trigger”. Mais uma obra que alcançaria o “over the top” como tantos antes do estúdio buscaram alcançar (herança essa que vem do Gainax, de animês como Gunbuster ou Tengen Toppa Gurren Lagann).
BNA, no entanto, é um pouco mais conciso nesse sentido e, por mais estranho que pareça, isso é um pouco decepcionante e uma boa qualidade ao mesmo tempo.
Entrando um pouco na história, na série conhecemos Michiru, uma humana que se transformou misteriosamente em uma feral, animais que possuem uma capacidade de se transformar em humanos e conviver em sociedades similares a que conhecemos. O problema disso é que: não existe casos no passado de algum humano se transformar em feral e isso que faz a roda da história girar.
Michiru, ao se ver nessa situação, decide fugir para Animália, uma espécie de recanto para os ferais, onde eles podem viver sem precisar se segurar às regras das sociedades dos humanos. Porém, no fundo as coisas não são bem como ela imaginava, visto que existe uma forte influência dentro da cidade e ela em si aparenta só se manter por “benevolência” da humanidade.
Ao decorrer dos episódios, Michiru conhece a cidade de diversas formas possíveis. Ao entrar em contato com o lobo Shirou Ogami, quase um sentinela de Animália, ela vislumbra como funciona o submundo do local, vendo como mesmo aquela sociedade que, teoricamente, deveria ser utópica, passa por diversos problemas, envolvendo coisas como tráfico de ferais, discriminação, pobreza, e até mesmo como a presença de um culto dentro de Animália tem a capacidade de afetar as mentes dos ferais de maneira radicalizada. Isso só para citar algumas das abordagens.
Existe também, claro, a influência humana na série que, em teoria, deveria ser o grande embate do enredo. BNA busca tratar sobre preconceito, usando os ferais como ponto de partida para essa abordagem, só que no fim das contas mal existem confrontos reais entre eles e os humanos. Não falo de confrontos físicos ou coisa assim. Confrontos em que realmente há exclusão da sociedade. Tudo é mostrado muito por trás dos panos, o que pode deixar a mensagem do animê um pouco falha.
Claro, em alguns momentos e episódios a situação fica mais clara, como no capítulo em que vemos o desejo de Nina, filha de um chefe da máfia, de ver o mundo humano depois de ilegalmente ter contato com redes sociais criadas por eles. Com ajuda de Michiru, ela consegue em certo momento ir até a sociedade que tanto almeja, porém lá é tratada apenas como, praticamente, uma atração de zoológico. Todo o carinho que ela recebia pela internet no fim não passava de ilusões assim que ela é descoberta como uma feral. É um conflito que cai bastante no conceito de algumas culturas serem tratadas como exóticas e, quando estão nessa situação, viram apenas um divertimento para aqueles que estão fora daquele universo.
Tocando nesse ponto, chega a ser irônico que, o próprio estúdio Trigger, em 2019, lançou o filme Promare (que deve chegar esse ano aos cinemas brasileiros), que também questiona um aspecto do preconceito, só que, inserindo elementos como rebelião dos discriminados e mostrando mais como esse lado em si sofre em decorrência da sociedade “comum”. Promare brilha muito mais que BNA tratando sobre um tema semelhante. Mas, então, por que BNA acabou sendo produzido mesmo com um roteiro tão tematicamente semelhante tendo sido lançado recentemente pelo estúdio?
O que pode-se tirar é que a série tente passar outra ideia de abordagem de outros conceitos não tão radicais, porém isso é feito de maneira um tanto quanto pobre, o que pode ser desanimador para quem busca uma história que trate aspectos do tipo com mais vigor, ainda mais em tempos em que fica cada vez mais necessário enxergamos com os próprios olhos como existem problemas sociais em que precisamos pensar melhor sobre e como agir a essas questões.
BNA é singelo. Apesar de contar, sim, com os absurdos comuns em obras como o já citado Promare ou outro animê do estúdio, como Kill la Kill, ele se contém mais em não exagerar tanto quando chega em seu clímax. Porém o fato de tentar se manter mais pé no chão também acaba sendo sua fraqueza. Talvez a grande força de BNA seja ter criado um universo que pode ser explorado no futuro caso exista uma nova temporada (por enquanto, algo hipotético).
No fim, a decepção da falta de exagero supracitada é algo que poderia preencher a tematização não tão bem executada da série. Se BNA conseguisse proporcionar uma história que gerasse um êxtase prazeroso, talvez valesse a pena ele não conseguir manter a força no roteiro desde que conseguisse entregar isso de uma forma mais à la Trigger. Apesar disso tudo, é uma questão de dualidade.
BNA ser mais pé no chão também acaba sendo algo positivo para o animê. Alguns dilemas mais episódicos que observamos ao decorrer da história de Michiru dentro de sua nova vida são reconfortantes e nos fazem pensar um pouco em como podemos enxergar nossa própria sociedade. Esse dia-a-dia também gerou episódios muito bons como o já citado da feral que queria conhecer a humanidade e o inquestionável ponto alto da série: o episódio do beisebol. A única coisa que faltou mesmo foi uma exploração melhor sobre todo esse ótimo universo que nos entregaram.
BNA – Brand New Animal estreou no Brasil em 30 de junho de 2020, pelo serviço de streaming da Netflix. Todos os 12 episódios trazem na plataforma opção de idioma original e também dublagem em português.
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