Há poucos dias, a Sato Company emitiu um comunicado que deixou todo o fandom de tokusatsu no Brasil estarrecido: a série Black Kamen Rider (Kamen Rider Black) será retirada do ar após a apresentação de apenas dois episódios na Band. O canal do YouTube TokuSato, pertencente a empresa, também removeu os dois episódios que havia disponibilizado.

Uma avalanche de especulações e notícias falsas surgiram em torno do assunto. A mais absurda e falaciosa envolve a versão brasileira da abertura pelo cantor Ricardo Cruz. Há quem esteja disseminando que o problema está na “desaprovação de uma maioria” pela versão produzida especialmente para o relançamento da série no país. Bobagem.

O JBox foi atrás e apurou informações do meio para tentar elucidar os fatos em torno do assunto.

Já adiantamos: não, não foi “a música do Ricardo Cruz” que tirou ‘Black’ do ar. Nem foi uma decisão unilateral da Band por conta do retorno dos campeonatos de futebol. O assunto é mais delicado e está conectado a um tema desconhecido pela maioria dos fãs: direitos conexos de dublagem

 

O que são direitos conexos?

É do conhecimento geral que toda produção audiovisual (filmes, séries, novelas…) exige dos profissionais envolvidos uma entrega, por vezes exaustiva, que pode render uma fortuna para as muitas empresas envolvidas neste produto. E é inegável que o sucesso de muitas obras está vinculado diretamente à atuação de um elenco de atores e atrizes qualificados, que às vezes chegam ao ponto de “salvar” alguma produção com seu talento. Com a dublagem podemos afirmar que não é muito diferente.

A dublagem no Brasil é um processo inclusivo, que aproxima o conteúdo do telespectador através de seu idioma nativo. E por incrível que pareça, dados do IBGE do ano de 2019 apontam que ainda existem 11 milhões de brasileiros analfabetos em nosso país. No passado existia uma grande valorização às legendas, mas hoje o público geral que consome produções internacionais valoriza e consome BOAS dublagens.

Claro que não basta só um bom dublador ser escalado para versionar algum conteúdo. É preciso ter vários elementos (tradução, edição, direção…) que se somarão para que tenhamos uma experiência marcante. Qual não é nosso prazer ao assistir uma produção dublada e sequer nos darmos conta de que ela é estrangeira? Ou nos identificarmos com personagens que possuem seu carisma elevado por uma interpretação marcante?

Quando ouvimos um trabalho de dublagem ruim, com interpretações inexpressivas, logo o condenamos e queremos saber a causa por trás desse descaso. Uma troca de elenco de dublagem repentina deixa fãs de qualquer idade chateados. Alguns se perguntam: “onde está o respeito?”.

Respeito.

Essa palavra, ainda tão exigida de muitos em nosso país, às vezes só funciona por meio da força da lei. Se assumirmos que o sucesso de uma produção é mérito dos atores, instrumentos foram criados para que a divisão dos lucros sobre o valor de seu trabalho pudesse ser assegurada. Um filme como Vingadores: Ultimato rendeu cifras bilionárias nos cinemas e mesmo que já tenham sido pagos por seu trabalho, naturalmente se pensa em justiça, quando este trabalho migra para outras mídias e continua rendendo dinheiro.

Para assegurar os direitos a essa justiça, foi criada em 1998 no Brasil a Lei de Direitos de Autor e Os que lhe São Conexos.

Os direitos conexos são aqueles que a regulação de direitos autorais vai assegurar para determinadas pessoas que contribuíram, de forma muito relevante, para a concretização e/ou divulgação de obras de terceiros. Enquanto os direitos autorais privilegiam os criadores de uma obra, a legislação em torno do assunto construiu um caminho para o reconhecimento destes que contribuíram para o êxito dessa mesma obra.

O Brasil segue padrões internacionais deste tema e aponta quem tem direito a receber direitos conexos: intérpretes, cantores, executantes (músicos que executam a obra de outra pessoa), empresas de radiodifusão e os produtores fonográficos. Existem algumas prerrogativas e aspectos mais detalhados em torno do assunto, mas está registrado no inciso XIII do artigo 5º da lei 9.610 o direito a estes profissionais.

O trabalho dos dubladores, que é puramente interpretativo, os beneficia aos valores relativos a estes direitos. Comumente, hoje em dia, os “clientes” (quem paga a dublagem para os estúdios) estabelecem em um contrato um valor pelo serviço do dublador e pelos direitos conexos. Um longo período de tempo também é estipulado (coisa de décadas, geralmente 70 anos!) para que o trabalho possa ser utilizado em variados tipos de mídia (TV, home vídeo, streaming ou até mídias que sequer existem ainda, mas podem aparecer ao longo dos anos de duração do contrato fechado).

Resumidamente, há três variáveis: local (qualquer território ou país), tempo de uso (veiculação) e mídia. Caso uma destas três variáveis mude, os direitos conexos precisam ser pagos novamente. Até se um dia habitarmos Marte e existir a transmissão de um episódio de sua série favorita por lá, os direitos conexos (interplanetários – risos) precisarão ser faturados.

Existem algumas exceções, variando principalmente o tempo de validade dos direitos conexos, mas em vias de regra o que é praticado é o supracitado.

Kamen Rider Black RX e ‘Black’, ambos dublados no Brasil por Élcio Sodré | Reprodução: Toei Company

No caso de Black Kamen Rider, aparentemente há duas questões:

  • Seus direitos de autor foram adquiridos ANTES da lei de 1998, portanto, não teve seus direitos limitados por ela, na época, e nem através de um contrato. 
  • HOJE, os direitos conexos assegurados pela lei de 1998 garantem o pagamento desses direitos, o que precisa ser firmado por UM NOVO CONTRATO onde o autor e seus conexos podem cobrar o que lhe é de direito e estabelecer uma nova precificação pela veiculação de seu trabalho. Seja essa precificação qual for.

Como frisado, essa é uma prática dos dias de hoje assegurada pela Lei de Direitos de Autor de 1998. Hoje, por meio de um novo contrato firmado, um valor é estabelecido pelas partes interessadas (distribuidor e profissionais) e o trabalho passa a ser legalmente liberado para veiculação. Mas esse contrato depende principalmente da idoneidade das empresas de se ter a iniciativa de entrar em contato com os profissionais e acertar o pagamento do que é devido.

Como estamos no Brasil, pode ter certeza que nem sempre isso ocorre… 

Entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, um movimento no cenário da dublagem ganhou força em prol de acertos justos em torno do pagamento de direitos conexos devidos. 

Segundo reportagem do jornal a Folha de São Paulo, de 10 de março de 2000:
Lá estava Borges de Barros, o veterano que emprestou sua voz rascante a personagens clássicos como Moe Howard, de “Os Três Patetas”, e Dr. Smith, da série “Perdidos no Espaço”; havia José Soares, dublador de Mister Magoo e de Oliver Hardy, o Gordo de “O Gordo e o Magro”. Estavam presentes também Helena Samara, voz de Vilma Flintstone, e Flavio Dias D’Oliveira, dublador de Pernalonga e Patolino. A geração mais nova era representada, entre outros, por Sérgio Moreno, que hoje dubla o Mickey, e Tatá Guarnieri, a voz do Pateta.

Uma declaração, na mesma reportagem, evidencia um aspecto interessante em torno do tema:
O advogado Rodrigo Salinas, especializado em direito autoral, afirma: “No Brasil não há tradição de respeito a esses direitos, mesmo porque os dubladores eram, até agora, uma categoria muito desorganizada, que nem recibo exigia.”

Cálculos para direitos conexos de dublagens antigas são demorados e delicados. Há muitos profissionais que sequer recebiam recibos por seus trabalhos realizados há 30 anos atrás. Culpa deles não exigirem recibo? Não exatamente… Às vezes aceitar certas condições, era a única chance de começar no meio.

 

Onde fica minha nostalgia?

Mesmo com alguns erros e problemas técnicos, que não estão vinculados diretamente aos atores de voz; o que seria das memórias da sua infância sem que programas como Chaves, Jaspion e Os Cavaleiros do Zodíaco não tivessem recebido um trabalho de dublagem profissional com as vozes que você conhece e lembra até hoje?

(Foto: Divulgação/ TV Globo)
Carlos Takeshi: dublador do Jaspion declarou que parte dos seus direitos conexos foram pagos em boxes de DVD pela Focus Filmes, à época do lançamento em home-video.

E faz um tempo que o mercado brasileiro se deu conta que “nostalgia” é algo que vende. Todavia, isso tudo tem um preço alto caso todos os trâmites legais sejam seguidos. Nem sempre aqueles que investem nos produtos – adquirindo suas licenças junto aos produtores e autores originais – conseguem um retorno financeiro compatível com o investimento realizado. São quase como apostas. Só lembrando que a moeda que impera no valor dessas transações comerciais é o dólar

Não se expõe muito o quanto custa um episódio de sua série ou animê favorito, mas estamos falando de algo que pode estar em torno de 3.000 mil dólares até a impressionante marca 2 milhões de dólares – preço que a Netflix desembolsou por cada episódio da série The Blacklist, em 2014. Isso sem falar custos de dublagem e royalties que existem. 

Dublagem no Brasil é um produto caro, conforme o presidente da Sato Company já divulgou publicamente:
“A dublagem de um filme pode custar o preço de um carro popular hoje no Brasil”

Segundo pesquisas, estamos falando de um investimento superior a R$ 30 mil. Mas ainda que pareça um negócio meio “kamikaze”, quando um produto é vendido para um serviço de streaming ou emissora de TV, quase sempre se compensa os investimentos – ou pelo menos ele “se paga”. Só que ainda há vezes em que as emissoras cedem apenas o espaço para exibir e combinam dividir lucros de possíveis anunciantes dos intervalos comerciais. Logo, se esses anunciantes não aparecem…

O meio da dublagem em nosso país pode ser considerado uma verdadeira caixa preta. Quem convive de perto relata sempre muitas intrigas, panelas, nepotismo, falta de profissionalismo e orçamentos “exorbitantes” (na visão dos clientes, claro).

Nos últimos anos, assistimos surgir estúdios com qualidade duvidosa, com vozes irreconhecíveis pela maioria dos apreciadores dessa arte. Tudo para conseguir oferecer preços “mais em conta” e ganhar clientes – que às vezes só querem cumprir “a obrigação” de versionar o conteúdo para nosso idioma. O resultado pode ser “ouvido” principalmente nas plataformas de streaming.

‘Blue Dragon’ teve dublagem realizada em Miami. Sabemos como ficou, né? | Imagem: Divulgação/TV TOKYO/Microsoft

Por conta disso, surgiu até uma terminologia para estúdios que oferecem serviços de qualidade e um elenco mais “classe A”: os estúdios Premium. O custo de dublagem nessas casas é mais elevado, mas assegura-se ao cliente uma entrega que irá contribuir para o sucesso de determinada produção. E sabemos bem como a dublagem realmente ajuda a valorizar certas produções aqui, né?

Tornando a falar de direitos conexos e relacionando-os diretamente com sua memória afetiva, de vozes que marcaram alguma época de sua vida em uma série de TV, filme, desenho, animê ou tokusatsu; a dificuldade de se estabelecer um valor que seja interessante para todas as partes envolvidas (estamos falando de todos os dubladores que trabalharam em uma produção) pode gerar um gasto de tempo e dinheiro maior do que o esperado, fazendo com que as distribuidoras e donos dos direitos dessas produções optem por fazer algo bastante criticado nos últimos anos: as redublagens.

Do ponto de vista comercial – e ninguém investe em uma produção nova ou antiga pensando em fãs – é mais barato e seguro investir em contratos atuais e longevos com profissionais de dublagem que tentar acertar erros do passado. Resta ao dono do produto avaliar o quanto isso é relevante ou não para os fãs e o sucesso de sua empreitada.

Uma coisa é certa: assumem-se muitos riscos ao não finalizar negociações envolvendo direitos conexos no Brasil, inclusive, uma ilegalidade do ponto de vista jurídico. Resta saber até que ponto é inteligente correr tais riscos e arcar com as consequências – como testemunhamos recentemente com uma querida produção do gênero tokusatsu.


Fontes consultadas: Obras Intelectuais / IBGE / Folha de S.Paulo / Portal do Planalto / RD1


Atualização (21h07):

Em vídeo, o dublador Elcio Sodré (dublador do Black Kamen Rider) detalhou o seu lado na história da suspensão da exibição da série, explicando também sobre a questão dos direitos conexos: