Nos últimos meses, venho tentando cumprir uma missão: jogar os Zelda que não joguei e rejogar alguns Zelda que joguei de má vontade há alguns anos. Essa aventura começou com The Minish Cap (inclusive, recomendo bastante), mas este texto não é sobre isso.

Depois de uma jogatina de Tears of the Kingdom, eu resolvi voltar para o começo de tudo: The Legend of Zelda (1986), popularmente conhecido como Zelda 1 (e também The Hyrule Fantasy: Zelda no Densetsu) — na versão lançada oficialmente por aqui pela Playtronic na década de 1990, ele foi intitulado A Lenda de Zelda, mas nenhum relançamento oficial da Nintendo no Brasil (por exemplo, via emulador do Switch Online) resgata o nome localizado.

imagem: caixa de a lenda de zelda pela playtronic.

Reprodução: NintendoFan, via Twitter.

Minha primeira experiência com o jogo de Nintendinho (NES se você não for íntimo) foi há alguns anos — e não foi das melhores. Logo de cara vem o choque: o protagonista simplesmente aparece em um cenário e não existe qualquer indicativo do que fazer ou para onde ir. A maioria dos jogadores provavelmente não demora muito a descobrir que é perigoso ir sozinho, mas ir para onde?

imagem: capa do manual de instruções de zelda 1 (versão em inglês).

Divulgação: EBay.

Sejamos justos, no entanto: a experiência proposta pelo jogo é menos perdida do que a maioria dos jogadores hoje experienciam caso simplesmente comecem a jogá-lo. Isso porque quem comprasse Zelda 1 na época do lançamento não teria apenas o game, mas uma bela embalagem contendo também um manual com dicas, alguns conceitos básicos da história, menção a alguns personagens (como Impa e Ganon), explicações sobre itens, e ainda uma reprodução parcial do mapa de Hyrule.

Claro, mesmo na época, não necessariamente os jogadores teriam acesso a esse “pacotão completo”. Por exemplo, antes da Playtronic lançar A Lenda de Zelda oficialmente por aqui, o acesso ao jogo (por quem tivesse um NES importado ou um Phantom System) seria ou via cópias importadas, de primeira ou segunda mão, ou via cópias piratas — as importadas poderiam ter o manual em inglês ou outros idiomas (para quem entendesse…), principalmente se fossem de primeira mão, mas as piratas certamente não vinham com o livreto. Não tive acesso ao manual da Playtronic, mas existiu um, que não sei dizer se era tão detalhado quanto o americano — recentemente o Hyrule Legends fez uma versão corrigida e revisada dele, seguindo os moldes do americano.

Enfim, sem todo esse conteúdo extra, o jogo é apenas um garoto jogado em um mapa sem qualquer informação a mais. Não há história (existe uma brevíssima introdução sobre a Zelda dividindo a Triforce em 8 pedaços se você deixar a tela-título rolar), não há contexto nem nada, apenas um mapa desconhecido gigante que pode ser explorado ao bel prazer do jogador — e acredito ser esta a experiência da maioria das pessoas que jogaram esse game entre 1986 e hoje.

Apesar das dungeons serem numeradas, o jogador também pode fazer parte delas na ordem que quiser — a última só pode ser acessada depois de completar a Triforce e algumas têm áreas inacessíveis sem itens encontrados nas anteriores. O caminho feito pode variar muito: dá para ficar explorando o mundo e encontrar itens que tornam boa parte do jogo bem mais fácil, mas é possível também dar de cara com as piores dungeons logo no começo, tornando a experiência desgastante.

Com segredos espalhados pelo vasto mapa, Zelda 1 é um dos primeiros exemplos de jogos de mundo aberto (open-world), ou quase isso. A proposta, inclusive, era justamente fornecer uma experiência de exploração, mas a franquia acabou se tornando mais linear com o passar do tempo, seja porque os consoles se tornaram mais potentes, sendo possível inserir informações que a equipe possivelmente gostaria de ter incluído neste projeto, ou seja porque os desenvolvedores julgaram que um caminho muito solto não era a melhor ideia no momento.

imagem: mapa que vinha no manual de Zelda 1.

Reprodução. | Via PDarkLink, IGN BOARDS.

Retornar a Zelda 1 depois de passar por Breath of the Wild e Tears of the Kingdom é uma experiência fascinante. Talvez seja a idade, talvez seja o momento de vida. A verdade é que a primeira vez que joguei Zelda 1, eu estava na adolescência e conhecendo o mundo dos JRPG, que me foi apresentado via Final Fantasy X, um jogo extremamente melodramático e linear. Ir a um mundo 8-bit sem qualquer informação prévia depois de ver uma das mais incríveis cenas de beijo da indústria de games e da indústria cinematográfica (sim!) não foi a melhor das ideias. Mas jogá-lo após passar pela mais nova experiência de mundo aberto de Zelda me fez ver The Legend of Zelda com outros olhos.

Há alguns pontos em comum, propositais ou não, entre Zelda 1 e Breath of the Wild (e um pouco de Tears of the Kingdom também) para além da experiência de mundo aberto. Um deles é como o mapa parece vazio — não se enganem, tem muita coisa para fazer em Hyrule em ambos (aposto que daria para jogar Zelda 1 por 50 horas e ainda não saber bem como terminar o jogo), mas é curioso como, por motivos diferentes, mal tem gente nesse mundo.

Em Breath of the Wild faz sentido: o Calamity Ganon fez os habitantes de Hyrule basicamente viverem em mundo apocalíptico, se escondendo em fortes e pequenas cidades dos monstros que andam livres — e em grande número — pelo que antes provavelmente foram terras cheias de gente caminhando para todos os lados.

Em Zelda 1 as poucas pessoas que encontramos habitam cavernas, muitas delas escondidas, e por vezes reclamam quando Link destrói a entrada com bombas ou fogo — é para ser piada, mas o fato dos velhos carecas chamarem um amontoado de pedra de “porta” dá a entender que esses lugares são realmente lares. E isso é muito louco! Que ambiente distópico é esse no qual as pessoas vivem basicamente isoladas em cavernas? Nenhum Zelda posterior foi tão ousado ao mostrar o terror de Ganon (mesmo sendo provavelmente acidental, por causa das limitações do console).

imagem: cena do jogo com velhote pedindo para link pagar o conserto da porta.

Pague o conserto, Link! | Reprodução: Nintendo.

Mas o mundo de Zelda 1 também é aberto em um sentido mais metafórico. Ele foi o início do que ninguém sabia que seria uma franquia tão longeva. E isso é lindo. É um Zelda sem style guide, sem diretrizes, mas que já possui as bases daquilo que foi posteriormente construído como mitologia desse universo. Se consultarmos o manual, vemos já quatro personagens estabelecidos: Zelda, Link, Ganon e Impa — e eles já ocupam a exata função que é repetida nos jogos posteriores, com Zelda sendo a princesa, Link um herói corajoso, Ganon um vilão poderoso e terrível e Impa a babá de Zelda (ok, a função da Impa varia entre babá, acompanhante, conselheira real, mas ela é sempre uma personagem próxima à Zelda).

O Link desse jogo é mais similar ao de Wind Waker: ele não tem origem misteriosa ou relacionada às deusas de Hyrule, não é predestinado a nada, nem tem qualquer ligação de parentesco com a guarda real e, aparentemente, sequer sabia quem era Zelda. É apenas um garoto aventureiro e corajoso que resolveu ajudar a princesa por qualquer motivo.

imagem: ilustração do link de zelda 1 de costas em cenário branco.

Divulgação: Nintendo.

De lá para cá, diversos jogos da série foram mexendo com esses personagens, trazendo novas histórias mas por vezes repetindo estruturas, papéis e mais. Com um jogo por vezes mencionando ou retomando elementos de games anteriores, foi-se criando em parte da fanbase uma expectativa de amarrar todos em uma linha cronológica coesa, como se cada um fosse parte de um momento na história de uma única Hyrule — o que, curiosamente, não ocorre na mesma intensidade com Mario, que tem também repetições temáticas.

Talvez seja o fascínio que o mundo fantástico de Hyrule, aparentemente estruturado de forma coesa em cada jogo e frequentemente evocando uma mitologia de criação, traga em muitos jogadores, que passam a se sentir como arqueólogos e historiadores daquilo que nunca ocorreu fora da ficção.

A minha percepção revisitando Zelda até o momento, no entanto, é outra. O primeiro Zelda é claramente uma história simples de herói, com alguns elementos tirados de “contos de princesa”, mas sem nenhum grande compromisso com uma narrativa maior de universo. A trama acaba sendo um pouco estendida em Zelda II, que introduz, via manual, um feiticeiro que acaba colocando Zelda em um estado dormente e um príncipe, irmão dela, que acidentalmente também serve de antagonista para essa trama inicial se desenrolar. É também este manual do segundo jogo que introduz o conceito de três Triforces, uma do Poder, uma da Sabedoria e outra da Coragem.

A ideia de um feiticeiro vilão começa a ser melhor lapidada a partir de A Link to the Past (ou Um Elo com o Passado), com o Agahnim, e vira um recurso comum em jogos ambientados em Hyrule que não utilizam Ganon como principal antagonista (mesmo aqueles que ele aparece no final…), como é o caso de Vaati, Yuga e o feiticeiro misterioso do spin-off Hyrule Warriors: Age of Calamity. A Triforce é cansativamente retrabalhada na série. Mas é curioso que basicamente nenhum outro jogo da franquia traz um segundo herdeiro real (isso quando vemos um rei…).

imagem: arte de vaati em minish cap.

O maior que temos! | Divulgação: Nintendo.

Os jogos posteriores vão rearranjando elementos, por vezes trazendo explicações para eles e criando novas peças para a mitologia da série, de uma forma que parece um tanto desordenada, ao ponto de que qualquer tentativa de criar uma linha coesa — mesmo a “oficial” da Nintendo — esbarra em inconsistências e incoerências.

Geralmente, quando isso acontece é porque as histórias não foram feitas pensando em uma coerência temporal — exceto em alguns casos, quando jogos formam explicitamente e propositalmente uma “mini linha do tempo”, como a “trilogia Toon Link”, formada por Wind Waker, Phantom Hourglass e Spirit Tracks.

A impressão, ao ver a quantidade de elementos soltos — porém extremamente interessantes e reutilizados — de Zelda I é, na verdade, que as equipes posteriores estavam pouco satisfeitas com alguns aspectos do primeiro jogo e reciclaram elementos tentando recontar a história ou fazer algo parecido com ela.

Não só isso, mas os avanços tecnológicos nos consoles fizeram com que as equipes criativas tentassem “experimentar a história de Zelda de uma nova forma”, rearranjando o universo de acordo com as novas possibilidades. De forma simples, acho que para muitos jogos a tentativa foi muito mais de reescrever a trama, com novos elementos que caíssem bem tanto na história quanto com as novas tecnologias de gameplay, do que buscar dar qualquer tipo de continuidade dentro de um universo coeso.

imagem: os oocca em twlight princess.

Dão mais medo que o Twilight Realm. | Reprodução: Nintendo.

Um exemplo disso é como um aspecto introduzido em Twilight Princess (2006) foi sendo reformulado de forma quase obsessiva em jogos posteriores: a ideia de um povo do céu. Introduzido por meio da tribo Oocca, que parece o resultado de alguma experiência radioativa com galinhas, o conceito de uma civilização que vive nos céus foi aprofundado em Skyward Sword, que basicamente ignora qualquer ideia vinda de TP.

A “tribo do céus” foi novamente trabalhada com os Zonai em Tears of the Kingdom, que também ignora praticamente qualquer lore de seus antecessores sobre os habitantes celestiais. A impressão é sempre de um “aquele não ficou tão legal, podemos fazer melhor!” do que de uma estrutura com qualquer continuidade.

Tears of the Kingdom também revive a ideia de uma “guerra do aprisionamento” envolvendo Ganondorf e sete sábios — o primeiro jogo a mencioná-la é A Link to the Past e, embora o novo jogo mantenha alguns elementos em comum, ele também traz definitivamente um novo mito sobre a guerra (ou uma nova guerra, se pensarmos em histórias que não se ambientam na mesma linha temporal).

Mas o mais interessante de Zelda é aquilo que a série definitivamente deixou de ser. Entre 1990 e 1991, a editora Valiant Comics detinha direitos de produzir quadrinhos de diversas propriedades da Nintendo, e Zelda fazia parte do pacote. Numa época sem media guide nem suportes bem estabelecidos, as histórias da Valiant soam muito diferentes daquilo que atualmente compõe o corpus comum da série. Elas não eram ousadas no sentido de introduzirem “maluquices” nas tramas (como foi aquele filme do Mario em 1993), mas, para além de nomes e alguns elementos, não parecem em nada com o que se entende hoje por Zelda.

Entre alguns exemplos de coisas que parecem não combinar a série temos o fato do Link ficar pedindo beijos para a Zelda, algo comum também no desenho americano e nos infames jogos de CD-i, um capítulo no qual a Triforce faz uma profecia (?!), e um outro em que vemos Link ser corrompido pela Triforce do Poder — o rapaz se tornou praticamente um símbolo de herói incorruptível, embora alguns poucos jogos, como Twilight Princess, desenhem brevemente outras possibilidades, sem muito aprofundamento. Ah, sim, o Link tem pais nesses quadrinhos! Isso sim é ousado.

imagem: link voltando para casa em quadrinho de Zelda e seu pai o chutando da porta dizendo "você não é meu filho, vá embora!".

Reprodução: Valiant Comics.

Deixado de lado pela Nintendo, o “legado” da Valiant Comics é uma demonstração de como Zelda era um espaço aberto de possibilidades no início dos anos 1990. Essas histórias são estranhas hoje, mas faziam sentido para uma série que ainda não tinha bem uma “cara”; era apenas um aglomerado de conceitos colocados juntos. E isso é extremamente perceptível em Zelda 1, ao ponto de que por um momento cogitei se a Nintendo planeja fazer um remake do jogo, agora que o conceito de mundo aberto já é bem mais lapidado e aceito. Até o momento que me dei conta: esse jogo é um rascunho. Refazê-lo é literalmente reescrevê-lo. Breath of the Wild já é de certa forma um remake de Zelda 1, ao unir a experiência de exploração que deu origem à série com os conceitos narrativos que a tornam coesa hoje.

Nenhum remake conseguiria transmitir a experiência de Zelda 1, a experiência do começo de algo sem forma, que pode ir para qualquer lugar, porque o início acidental de uma franquia de sucesso é um momento único e irreplicável (mas se a Nintendo um dia anunciar um, eu previ!).

Por fim, ninguém pediu, mas já que estamos aqui, vou deixar meu pitaco sobre cronologia: a graça de Zelda é que jogamos uma lenda. Cada jogo traz uma história e lendas diferentes desse mundo chamado Hyrule. Lendas podem ser inconsistentes entre si, e lendas podem conter informações erradas, por mais que a ideia de um jogo seja vivenciar aquela história.

Zelda é como um mito grego: são várias versões das mesmas histórias. Hoje, encaramos os textos gregos como registros históricos de um povo, mas, em suas épocas, eles eram provavelmente encarados como histórias reais ou algo próximo a isso. Ao contrário disso, Zelda sempre esteve no campo da ficção e não faz nem um pouco de mal os desenvolvedores se aproveitarem disso para deixar incoerências cronológicas para lá enquanto nos entregam visões diferentes das possibilidades de um mundo fictício. Afinal, Hyrule não existe mesmo, não tem nenhum problema viver entre inconsistências.


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