Localização é uma prática curiosa. Por um lado, é preciso ser uma pessoa criativa para adaptar uma obra de uma cultura para outra – existe um lado do processo que requer originalidade, além de uma “coisa” autoral para deixar o texto bom, um dos motivos pelo qual é tão difícil substituir os profissionais por máquinas (um dia acontecerá, mas, sabe… deve demorar). Por outro, é uma prática presa ao original: a obra sendo trabalhada já existe e o trabalho do localizadores é só “transportá-la” para outro mercado. Não é como se pudesse reescrever cenas ao seu bel-prazer.

Mas e quando a originalidade vai um pouco longe demais e fica intrusiva? E quando ela “atropela” a intenção de uma cena para transpor uma informação – geralmente cômica, chegamos já nisso – que não estava lá originalmente? É, pessoal. Hora de falarmos dos memes nas dublagens.


Para começar, vamos definir bem rapidamente o que é um meme (de internet, especificamente): em suma, é uma ideia, frase, imagem ou ação que se espalha pela internet e vira parte da “cultura” dela – 99% das vezes como elemento de comédia. “Já acabou, Jéssica?”, Geovanna segurando o seu forninho, a Glória Pires falando “não sou capaz de opinar”, a Nazaré… esse tipo de coisa.

Imagem: Renata Sorrah.

O meme da Nazaré. | Reprodução.

Agora, o que isso tem a ver com dublagem? Acho que muitos de vocês já sabem disso, mas com o aumento da presença da internet, e, por conseguinte, dos memes, nas nossas vidas, dublagens de todos os tipos, inclusive de animes, vêm mostrando a tendência de incluir memes em seus scripts. Quando menos se espera algum personagem vai falar algo sobre ir pegar “uma sopa pa nóis”, ou descrever algo como sendo “mais de oito mil”, e assim por diante.

Antes de julgar dura e parcialmente essa prática, é bom refletirmos sobre o histórico dela. Essencialmente, ela se resume a “adicionar piadas” sobre o original, e isso meio que sempre existiu em dublagens. Não todas, claro, mas não era uma prática incomum ver um dublador improvisando alguma gíria ou referência cultural para deixar uma cena ou fala mais engraçada e pessoal para o telespectador. Em matéria de anime, acho que o que mais vem à mente quando se fala disso é Yu Yu Hakusho, tanto a dublagem de 1996 quanto a de 2004, que praticavam isso com bastante frequência.

Logo, podemos dizer que essa prática não é nova – dubladores, diretores de dublagem e até tradutores trabalham em um ramo criativo, e enquanto for assim, eles sempre vão injetar um pouco da própria personalidade e vivência em seus trabalhos. Logo, talvez você esteja se perguntando: “então, isso é uma coisa boa, né?”

Imagem: Kuwabara, Kurama, Hiei e Yusuke Urameshi em 'Yu Yu Hakusho'.

Divulgação: Pierrot.

Bem… há controvérsias. Voltando a algumas matérias atrás, eu já comentei que existem vários tipos de tradução, e também existem várias filosofias de tradução. Não vou entediar você listando elas, mas em termos de mídia para consumo de massa, como por exemplo 99% dos animes, diria que a maioria dos localizadores tenta achar um equilíbrio entre “manter uma fidelidade ao material original” e “deixar a experiência do novo público a mais próxima possível da experiência do antigo público”.

É por isso que, por exemplo, no ramo profissional, tradutores de animê evitam ao máximo notas de tradução: o público original não teve seu consumo da obra interrompido por essas explicações extras, então, se possível, a tradução também não deve ter.

E é aí que está o problema: quando você adiciona uma piadinha extra em uma dublagem, dependendo do contexto da cena em questão, você está mudando a experiência da obra. Se você insere uma piada onde originalmente não tinha nenhuma, você transformou uma cena não engraçada em (idealmente) engraçada; você trocou o propósito dela, refez a intenção. Agora, se o novo público conversar com o antigo público sobre essa cena, a comunicação será “atrapalhada”.

Falando assim parece uma coisa abominável – e às vezes é – mas, sinceramente? Não é tão grande coisa assim. Não é como se essas piadas fossem adicionadas à trágica cena da morte de um personagem, por exemplo (não em… maioria); em maior parte, na prática, são perfeitamente inofensivas e não afetam o divertimento de, pelo menos, maior parte das pessoas. Bom, dependendo da qualidade ou ruindade da piada em questão, claro.

Mas memes de internet são um caso à parte. Uma frase como “rapadura é doce mas não é mole, não” tem uma longevidade comprovada; é uma expressão antiga, porém ainda reconhecível, e mesmo se você nunca a tiver ouvido antes, dá para ter uma ideia do que ela queira dizer. Isso é importante para uma dublagem, porque muitos títulos só têm uma dublagem que segue sendo distribuída por anos, senão décadas a fio, e uma gíria que envelhece mal os prejudica.

Imagem: Garota de 'Nozaki-kun'.

Reprodução: Doga Kobo.

Por exemplo: a dublagem original de A Dama e o Vagabundo, filme animado da Disney, usava repetidamente a palavra “broto” – significando “garota bonita” –, hoje em completo desuso e capaz de confundir uma criança que assistisse ao filme. Desde então, ele foi redublado, e o termo antiquado, substituído.

E esse é o grande problema com os memes de internet – eles são muito, muito passageiros. Alguns até perduram – o “mais de oito mil” já deve ter passado dos dez anos de idade a esta altura – mas a maioria é mais passageira do que até a mais passageira das gírias, porque a cultura de internet é rápida e momentânea. O meme do momento de hoje pode se tornar vergonhoso em menos de uma semana. Então, um risco de se botar memes em dublagens é que isso pode data-las instantaneamente, e esse é o caso muitas vezes.

Imagem: Pikachu "fazendo a Macarena".

Reprodução: OLM.

Um exemplo “pré-meme” disso se deu na primeiríssima temporada de Pokémon. Em um dos primeiros episódios, o Ash, enquanto tenta decifrar as mímicas do Pikachu para entender o que ele queria comunicar, chuta que ele está “dançando a Macarena”.

Para quem talvez não saiba, a Macarena foi uma música popular dos anos 90 acompanhada de uma dancinha igualmente popular, mas que definitivamente não é de conhecimento geral para as crianças de hoje em dia que podem estar vendo Pokémon nos streamings. Dito isso, isso não foi culpa da nossa dublagem, tendo sido uma piada adicionada pela licenciante americana 4Kids, mas serve de bom exemplo.

Outro problema é que há alguns diretores/dubladores que meio que… não entendem os memes? Acho que o caso mais bizarro para mim disso foi na dublagem de Dragon Ball Super, realizada no estúdio Unidub, em que o Vegeta repentinamente comenta em uma conversa séria que o poder do vilão Goku Black é “de mais de oito mil”. A utilização disso na cena foi um combo de tudo que há de errado no uso de memes em dublagem.

Primeiro, era uma cena originalmente séria, e ao inserir isso, ela deixou de ser séria por alguns segundos. E segundo, talvez esse comentário do “mais de oito mil” fosse fofinho em um anime não-Dragon Ball, mas este é um animê de Dragon Ball, e o “mais de oito mil” existe no contexto do anime – o número é um exemplo da medição de energia de luta que os soldados do vilão Freeza utilizavam, e logo, significa algo para a série. E esse “algo” está bem ultrapassado – o próprio Freeza já tinha mais de um milhão de poder de luta, e Super se passa tão após esse momento da história que “oito mil” é um valor irrisório para todos os envolvidos.

Conclusão? Bem, eu pessoalmente aconselharia a só usar memes em uma tradução se eles também forem utilizados no original (o que acontece! Os japoneses têm seus próprios memes!)… mas não sou uma grande autoridade para dizer o que se deve ou não fazer em uma localização.

Em geral, o ideal é só usar piadas que já tenham provado a sua longevidade. Claro que todo tipo de arte é temporal, incluindo dublagens, mas qualquer coisa que possa atrapalhar o aproveitamento da obra para futuras gerações e que possa ser evitado… deve ser evitado, eu diria. Mas eu sou só um homem – quero ouvir a opinião de vocês. Gostam de memes na dublagem? Odeiam? Conseguem lembrar de um de que gostaram muito? Conseguem lembrar de um bem “cringe”? Soltem aí nos comentários e nos vemos na próxima!


NOTA DA EDITORIA: As colunas do Sahgo são mensais mas, esta edição acabou atrasando por problemas técnicos do JBox. O texto foi entregue dentro do mês de abril, quando deveria ter sido publicado.


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