Em algumas boas coisas antigas na cultura pop, para que se obtenha um aproveitamento coerente do que é consumido, é necessário um esforço mental de adaptação ao pensamento da época de sua produção, das limitações que cerceavam aqueles que as produziam e do quão vanguardistas elas foram ao inovar em conceitos que, se hoje já são comuns aos seus respectivos cenários, começaram a partir dali.

Jonny Quest (1964-1965), desenho sci-fi clássico da Hanna-Barbera, pode parecer lento e mal animado hoje. No entanto, foi inovador para o estúdio ao trabalhar com um estilo de traço mais “realista” em comparação ao cartunesco contemporâneo. Ainda assim, seu roteiro se calcava numa série de estereótipos eurocêntricos que, hoje em dia, já não fazem mais sentido. As belíssimas histórias do autor Carl Barks com o Pato Donald a partir dos anos 1940, que estavam em publicação pela editora Abril antes da quebra aqui no Brasil este ano, talvez pareçam óbvias quando lidas atualmente. Porém, delas vieram fórmulas que serviram de moldes para demais roteiros e takes de criações posteriores – uma das cenas mais populares de Os Caçadores da Arca Perdida (Steven Spielberg, 1984) é inspirada por um segmento de As Cidades de Ouro (1954).

E é tendo esse pensamento em mente que A Nova Ilha do Tesouro se torna realmente divertido. Sendo uma das primeiras obras do lendário Osamu Tezuka (é tido como seu primeiro trabalho fechado, embora ele mesmo diminua esse crédito por conta das várias interferências editoriais ocorridas, como cortes de páginas, mudanças de texto e desenhos), o mangá foi lançado originalmente em 1947, chegando aqui no Brasil este ano pela NewPOP. À época, contexto de pós-guerra, foi um best-seller, com mais de 400 mil cópias vendidas, servindo de porta para o autor nesse meio.

Nele, temos o garoto Pete como fio condutor de uma aventura fantástica quando, ao achar um mapa para um tesouro numa ilha nos pertences de seu falecido pai, decide buscar ajuda de um capitão conhecido. As coisas começam a desandar quando um dos membros da tripulação se revela um pirata, com o navio sendo atacado por bandidos que também querem tal tesouro marcado. Tendo isso como engate, Tezuka usa as páginas seguintes para misturar perigos dos sete mares, ícones do aventureiro cinematográfico e imaginação infantil num bom gibi de entretenimento visual.

Num bom gibi de entretenimento visual de mais de 70 anos atrás, claro.

Como dito, para tirar um melhor aproveitamento de A Nova Ilha do Tesouro, é necessário considerar uma porção de pontos que tornam o pacote todo datado – seja na forma como a história é contada, seja nos preconceitos embutidos na sociedade em tais tempos. Embora rolem umas duas viradas de mesa, o enredo é tão simples quanto precisaria ser. A história vai de um ponto a outro, com os envolvidos acompanhando isso, sem se aprofundar ou desenvolver tantos subtextos, camadas, críticas. Nisso, rolam duas exceções mais aparentes. Uma muito boa, ao fim, quando um dos personagens explica, de maneira pessimista, o porquê de a história precisar ser encerrada ali. Outra bem ruim, quando nativos negros são retratados de maneira animalesca enquanto um caucasiano, mais ou menos na mesma situação, é retratado como um herói civilizado. Anacronismo, eu sei. Para entender, é preciso ver como um produto de sua época.

Ainda assim, independentemente de quando foi feito, algumas coisas no tanko são lindíssimas de serem lidas, atemporais. Todo o primeiro segmento, com a “câmera” abrindo e fechando o quadro, indo em diferentes ângulos, de modo a atribuir movimento ao carro, ao garoto correndo e ao barco, é impressionante. Uma cena em quatro quadros onde os piratas são atacados por animais, com a imagem fechando na cara desesperada do capitão, também é bem bonita. Na verdade, há uma boa utilização desse esquema de quatro quadros empilhados, com alguns deles se juntando de modo conveniente para criar a impressão de amplitude e profundidade em alguns momentos. Bem, é o Tezuka.

A Nova Ilha do Tesouro se junta a outros grandes mangás do Osamu Tezuka em catálogo aqui no Brasil, carregando os prós e contras comuns em boa parte deles. Entretém como uma história desse tipo deve entreter, impressiona por conta das inovações presentes, mas necessita de uma certa boa vontade – ou ingenuidade – para aceitar maneirismos já datados. Com isso na mesa, é necessário que você, leitor, descubra se tais obras são o tipo de coisa que lhes vale a pena o investimento.


Capa da edição brasileira.

Essa resenha foi baseada na edição nacional de A Nova Ilha do Tesouro, publicada no Brasil pela editora NewPOP, com tradução de Fábio Sakuda, diagramação e tratamento de Caio Cezar, revisão de Débora Tasso, Thiago Nojiri e edição de Junior Fonseca. Com preço de capa por R$26,90, o mangá vem em formato 15 x 21 cm, com capa cartonada, orelhas, miolo em papel offset e conta com 240 páginas, sendo mais de 50 delas compostas por extras, com um diário de início de carreira do Osamu Tezuka, focando no período pertinente à obra.