Existem alguns produtos que não devem ser tão levados a sério nas considerações “científicas” que propõem. Caso contrário, seu valor de entretenimento vai pelo ralo em prol de um checklist de críticas tecíveis quanto a regras seguidas corretamente ou não ao longo de sua duração. Vale para tudo: filmes, livros, quadrinhos, séries.

No filme de terror Um Lugar Silencioso, de 2018, por exemplo, temos um mundo pós-apocalíptico onde a humanidade vive à mercê de criaturas demoníacas com audição muito apurada, precisando se manter em silêncio o quanto puder a fim de sobreviver. Uma maneira de jogar todo o entretenimento possível dum plot assim pelo ralo? Defender a tese de que, mesmo num silêncio sepulcral, tais bestas conseguiriam escutar os batimentos do coração das pessoas escondidas. Mas pra que ser chato assim?

O mesmo para Lucy, de 2014, filme de ficção-científica onde ‎Scarlett Johansson vive uma personagem exposta a uma droga que, na teoria, desperta toda sua capacidade cerebral, permitindo que ela alcance níveis absurdos de inteligência e habilidades físicas sobre-humanas contra uma porção de vilões malvados. Como estragar isso? Deixar todas as possibilidades de uma fantasia cinematográfica de lado e se ater a conversas como “mas isso de o ser humano não usar 100% de sua capacidade cerebral não é cientificamente correto”. Novamente: pra que ser chato assim?

Isso posto em mesa, também é necessário um esforço de suspensão de descrença para curtir Dr. STONE, animê com direção de Shinya Iino pelo estúdio TMS Entertainment (MegaloboxSaint Seiya: The Lost Canvas), bastante comentado dentro do nicho no ano de 2019. O desenho é baseado no mangá de mesmo nome, publicado desde março de 2017 na revista Shonen Jump, da editora Shueisha, com argumento de Riichiro Inagaki (conhecido por Eyeshield 21) e arte do sul-coreano Boichi (Sun-ken Rock), reunindo 13 volumes encadernados até o momento dessa publicação. No Brasil, o mangá sai pela Panini e já conta com 8 volumes disponíveis.

Na história, a Terra passa por um misterioso fenômeno, que transforma a humanidade (e andorinhas) em pedra. Milhares de anos se passam, até que um extraordinariamente inteligente estudante do Ensino Médio chamado Senki Ishigami, que se manteve consciente durante todo o período que permaneceu petrificado, consegue “acordar”, encontrando um mundo totalmente consumido pela natureza – onde as interferências humanas de outrora quase não são mais perceptíveis. Nessa nova “idade da pedra”, Senku decide usar o poder da ciência para reerguer a civilização que ele conheceu, investigando os recursos ali disponíveis, o que levou a sua despetrificação e, a partir disso, construindo um soro milagroso com a capacidade de salvar outros de suas condições de estátuas. Para isso, ele conta com seu super-musculoso amigo de infância Taiju Oki, que acordou meses depois dele, numa iteração “cérebro + músculos” que pode ser ideal para suas ambições. A partir daí, as coisas vão escalonando em proporção, com novas pessoas sendo despertadas, um cara com pretensões ditatoriais vindo nessa e até uma sociedade “primitiva” sendo “descoberta” pelo protagonista.

A melhor maneira de curtir Dr. STONE é ignorando elucidações científicas mais aprofundadas e se deixar levar pelo teor fantástico da narrativa. Mesmo porque, as partes mais expositivas de experimentos e explicações por trás deles, narrativamente, são o que de pior o desenho pode proporcionar. Detalhes demais que nem os auxílios visuais, geralmente puxados para a comédia, conseguem abafar o tom “aula prática chata de escola”. A boa notícia é que essas não tomam tanto tempo de tela durante os episódios, então assisti-los é bem mais legal do que cansativo.

E é legal por vários, vários motivos. Em suma, pelo próprio roteiro ter um maior enfoque em entregar uma boa aventura shounen que qualquer outra coisa que se levasse mais a sério. Os conceitos científicos, num geral, são usados somente como engate para as tramas, com os trajetos tomados para conseguir executar um plano, ou a maneira como os experimentos já prontos são usados dentro da história, sendo o verdadeiro momento de brilho aqui.

Por exemplo, em dado arco, Senku precisa conquistar a confiança da tal tribo de humanos “descoberta” por ele. Para isso, ele decide curar a doença que assola a sacerdotisa desse povoado, preparando um remédio “cura tudo”, cuja fórmula ele sabe de cabeça. No entanto, para conseguir tal feito, são necessários diversos materiais refinados, os quais ele não tem em mãos. Dessa forma, ele e seu grupo de amigos se envolvem numa porção de segmentos para, passo a passo, reunirem esses materiais, com toda a trama sendo tecida no que parece uma grande quest de RPG: um item é buscado, conquistado, usado para buscar outro item, que é conquistado, e utilizado para atingir outro, assim sucessivamente.

E nesse meio tempo, uma porção de subtramas bacanas de assistir aparecem como consequência. Gosto bastante duma envolvendo uma lança com a ponta revestida de prata, uma fonte de gazes ácidos e uma “sereia”; A do recrutamento de um ancião artesão musculoso da vila é muito divertida; E outra, que envolve a construção de um par de óculos e uma das personagens enxergando nitidamente pela primeira vez é particularmente emocionante.

Mais para frente, muitas outras assim rolam, fazendo dessa uma experiência “episódica quantitativa” muito válida a longo prazo. Adoro toda a bobagem de construírem uma máquina de algodão doce para auxiliar na confecção de fios; o mini dungeon para coletar pedras preciosas; como eles acabam conquistando uma usina hidrelétrica por acidente, a árvore de natal, os avanços tecnológicos que vão ajudando na vida dos moradores da tribo e tudo mais envolvendo isso.

Sobretudo, é muito bonito ver como a narrativa constrói o amor pela ciência que o Senku tem desde criança como algo forte, épico, profundo, através de cenas que o ressaltam bem em incontáveis momentos, seja inserindo uma trilha sonora grandiosa em dadas conquistas suas, ou caprichando no texto daqueles que o rodeiam em prol de justificar o quão importante ele é e do quão melhores suas vidas ficaram através de seu auxílio, ou montando longos segmentos contando seu passado. Segmentos esses que não caem tanto em clichês, brincando com não-linearidades, construindo a história como um quebra-cabeça que recebe novas informações de acordo com os pontos de vistas de quem está vivendo.

Com isso, é impossível não se emocionar com uma cena tão forte quanto a que eles, enfim, conseguem acender uma lâmpada pela primeira vez, levando a luz à toda escuridão que assustava um dos personagens, utilizando de todos esses artifícios ideais para montar um grande momento (trilha sonora, iluminação, closes etc.), sendo talvez o ponto mais alto de toda a primeira temporada. Todo o segmento dos astronautas também é bem bonito, o do aniversário do Senku também, e o deles ouvindo música pela primeira vez… Dr. STONE é um animê muito bonito em quase sua totalidade.

Ele também é caprichado em seus questionamentos políticos-sociais, caso interpretações mais pertinentes à atualidade queiram ser buscadas. O embate entre os ideais do Senku e do Tsukasa podem ser lidos como uma boa ilustração ao conflito entre a democracia e regimes ditatoriais (nazismo, sobretudo). Senku defende que a ciência seja usada para salvar toda a humanidade petrificada, de modo a restaurar o mundo para todos, em iguais oportunidades. Tsukasa vai por outro lado, tentando impedir os avanços científicos do inimigo com a justificativa de que salvar a humanidade em sua totalidade implica em dar poder a outros que, antes, eram prejudiciais a ela. Que adultos, ricos, levarão a sociedade à ruína, pois não aceitarão o mundo como um novo local livre, que só alguns escolhidos devem ser despertados para que o mundo seja bom. E é claro que, no meio disso tudo, ele estaria no poder, comandando a humanidade segundo suas regras, com sua mão de ferro, ditando o que é certo, errado, não podendo ser contestado por ninguém (ora, na teoria, ele é o ser humano mais forte por ali, tanto que matou leões com as próprias mãos quando despertado).

Dr. STONE é um ótimo produto de entretenimento quando consumido corretamente. No fim, é a aventura shounen que se propõe ser, divertindo quando os episódios utilizam ideias interessantes somente como ponto de partida para o comum confortável de ver. Os defeitos são pequenos e a experiência, ao fim, é muito mais positiva que negativa. Ótimo animê e com uma pá de possibilidades a serem queimadas.

Um adendo incômodo

O animê, num geral, não apresenta momentos de ecchi tão explícitos, é até bem mais inocente em traços anatômicos e posições das personagens femininas do que eu imaginei que seria inicialmente. Então, não é à toa que fiquei bastante espantado com a cena onde, enfim, o Senku dá o remédio à sacerdotisa da vida, absurdamente sugestiva. Ela não faz sentido nenhum dentro do estilo de narrativa visual que a série vinha construindo até então, sendo uma bola bem fora do esperado ali, até confusa de assistir. Tirou bastante da importância da cena para dar luz a uma eroticidade incongruente desnecessária – e estupidamente bocó.

Segundo essa matéria no Mais de Oito Mil (oi, Mara), o mangá segue uma proposta mais ecchi que o animê vinha suavizando. Deviam ter suavizado essa cena também, pois fui um dos troços mais patéticos que assisti nos últimos anos.


Esse texto tem como base a primeira temporada da adaptação em animê de ‘Dr. STONE’. A série está disponível oficialmente aqui no Brasil através do serviço de streaming Crunchyroll (assista aqui), com áudio original em japonês e opção de legendas em português.