Uma carruagem transporta, de algum lugar para sabe-se lá onde, uma mercadoria bem valiosa em determinada terra. Humanos. De diferentes tamanhos, pesos, formas, tipos. Escassos em tal local, certamente renderão uma grana bem apetitosa para tais mercadores, que devem vendê-los como iguarias para outros seres que estão acima na cadeia alimentar – ou acima na cadeia social, isso pode ser enxergado como bem preferirem.

Contudo, no meio do caminho, numa floresta, o comboio tomba, todos ali, mercadores ou mercadorias, morrem no acidente. Com exceção de uma menininha, talvez jovem demais para entender o que estava acontecendo. Ao sair dali, ainda acorrentada e com os trapos de escrava que utilizava, tendo que encarar um mundo que tem tudo contra ela, sua primeira reação para o primeiro ser que a aborda, um golem, é um sopro de inocência mesclado a, quem sabe, um surto de autopreservação. “Papai!”, ela chama por ele. E nesse momento, a história começa a mudar. Não só a dela, mas a do golem que a encontra e de todos que cruzam seu caminho.

Somali and the Forest Spirit tem a admirável habilidade de destacar, através de suas ferramentas narrativas, o que de melhor a vida naquele universo parece oferecer. Nele, a protagonista Somali, como toda criança, encontra nas situações mais simples viradas que lhe permitem se divertir, explorar, se encantar e se satisfazer. Pode parecer clichê, mas isso deve ser observado levando em conta todos os empecilhos dispostos ante a ela.

Somos apresentados aqui a um mundo onde existem criaturas, divididas em clãs, com todo tipo de figura mitológica possível. Bruxas, oni, dragões, animais falantes, etc., habitando ambientes que, em nossa realidade, seriam tomados por humanos. Ao contrário: humanos nessa realidade são minoria absoluta, sendo caçados para servir como alimento. São uma subespécie, dominada, não dominante. E Somali é uma humana, uma criança humana, sem qualquer capacidade própria de se defender nessa panela de óleo quente que joga contra ela a todo tempo.

Quando é encontrada pelo golem, que se auto intitula “protetor da floresta”, os dois saem em busca de informações sobre outros humanos. Para ela, essa é só uma aventura que ambos viverão, bastante divertida, onde poderá conhecer o mundo junto com seu novo pai. Para ele, as coisas vão um pouco mais a fundo.

Reprodução: Crunchyroll

Ocorre que golens da floresta possuem um tempo determinado de vida, então começam a perder suas funções vitais, até que enfim param de se mexer. Portanto, encontrar humanos que acolham Somali se torna questão de sobrevivência à garota. Tudo isso precisando disfarçá-la como uma minotaura, pois ninguém pode descobrir sua verdadeira identidade.

Isso em pauta, o animê utiliza essa jornada como engate para abordar uma porção de temas espinhosos, mas sempre com uma enorme leveza. É uma estrutura parecida com a de outras obras onde “um cavaleiro solitário carrega uma criança e descobre sentimentos” que têm ficado populares nos últimos tempos, como a série Mandalorian, da Disney+, e os mangás A Menina do Outro LadoThe Ancient Magus’ Bride – esse último, também com um animê, lançado entre 2017 e 2018.

Aqui, o golem se descreve como uma criatura desprovida de sentimentos, racional. Ele toma decisões como se seguisse um algoritmo de zero e um, o que supostamente não lhe permitiria desenvolver subjetividade. Supostamente.

Ao ter contato com Somali, o golem passa a se questionar e questionar coisas, a se importar. E isso pode ser entendido como um resultado do aprendizado que ele tem a partir das ações dela. São vários os segmentos em que ele assimila reações e sentimentos que são verbalizados ou executados por ela. Vão desde sua confusão com hipérboles até a reunião de fatos prévios para entender que ela pode ficar doente quando submetida a determinadas situações.

O modo como o roteiro traz intensidade para isso na medida em que é necessária maior ou menor importância narrativa é bem eficaz. Há uma cena bem bonita na qual o golem deixa a racionalidade um tiquinho de lado e sai em busca de um remédio, por exemplo. Ainda mais quando entendemos que ele não se despiu totalmente da racionalidade ali, mas usou a racionalidade para tomar a melhor decisão guiado pelos sentimentos.

Na cena, após uma aventura escondida no subterrâneo de uma cidade, Somali tem febre e não consegue sair da cama. Para ajudá-la, o golem gasta uma boa parte do dinheiro reunido no trabalho que estava fazendo naquela cidade, já que era necessário um remédio bem mais caro que o normal, que servisse para todos os clãs e não para um específico. Ele não poderia revelar que ela é uma humana. Optou então por ter mais trabalho em função da segurança. Sentimento com racionalidade.

Reprodução: Crunchyroll

Muitas são as discussões que podem ser levantadas a partir das tramas dispostas em Somali. A realidade a qual dá luz é narrada de modo a tomar os humanos como minoria, mas o próprio enredo apresenta tanto faces que, de fato, subjugam tal raça – prevalecendo sobre ela a força e a ferocidade das demais criaturas, – quanto mostra pontos de vista que colocam os humanos como verdadeiros vilões, retratando-os como naturalmente preconceituosos, covardes, desprezíveis, que só se sentem verdadeiramente confortáveis quando destroem aquilo que consideram diferentes.

Humanos classificam toda a sorte de espécies como “grotesca” e isso é bastante significativo não só para o desenvolvimento interno da série, servindo de munição justificável ante aos humanos da parte das demais criaturas, mas também pode nos servir como um triste paralelo com a realidade fora do animê. Racismo, xenofobia, classicismo. São muitas as leituras permitidas utilizando isso como uma alegoria.

Inclusive, vale também uma interpretação livre de escolhas políticas mais vulgares. A história coloca como protagonista uma criança humana e nos leva a pensar se ela necessita pagar pelos pecados dos antepassados e dos adultos contemporâneos sem ela mesma ter feito nada de mal, nada preconceituoso, nada agressivo contra os outros clãs.

Por outro lado, isso deve obrigar os outros clãs a aceitá-la? Eles não têm o direito de ainda se sentirem magoados, assustados e com ódio de alguém de tal espécie? Um roteiro um tiquinho mais dentro da casinha assinalaria algumas escolhas mais comuns sem pestanejar. Mas Somali nos tira da zona de conforto, não é rasamente polarizado, não recorre à obviedades. Mostra que não há respostas fáceis nesses tipos de discussões. Vejo a Somali como uma metáfora às pontes que podem ser construídas entre diferentes espectros de embates políticos. Talvez.

Reprodução: Crunchyroll

A Somali é como um avatar da inocência infantil necessária para levar a vida em seu melhor. A cada novo local que ela e o golem chegam, as pessoas ao redor são mudadas de alguma forma, passam a encarar a realidade de modo mais livre, fresco, despreocupado.

Toda a direção de arte contribui para que essa sensação positiva seja elevada através de um detalhamento estupendo dos cenários, de um cuidado com a fotografia e com a trilha sonora para que tudo fique mais radiante, colorido, grandioso, místico. É como se enxergássemos aquele mundo pelos olhos da Somali.

Essa impressão fica ainda mais evidente no ato final. Quando ela e demais personagens chegam numa cidade mais afastada e perigosa, percebemos uma quebra nesse elementos quando ela não está em tela. E a partir do momento chave em que ela precisa deixar um pouco dessa inocência pueril de lado, as inserções mais sombrias crescem mesmo com ela presente.

Somali and the Forest Spirit é um slice of life espetacular. Ele não se deixa cair em armadilhas “artísticas” e entende que é necessário encantar o espectador ao mesmo tempo que o proporciona entretenimento. É engajante, bonito em sua estética, temática e desenvolvimento. Usa dos elementos narrativos disponíveis para contar uma história que pode abrir bastante discussão dependendo do modo como é interpretada. Encantador do começo ao fim, certamente é um dos grandes destaques de 2020.


Somali and the Forest Spirit está oficialmente disponível para streaming através da Crunchyroll (assista aqui). 


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.