Tempos atrás, havia uma expressão popular nos bueiros online onde comentavam produções nerd: “Bikini Girls With Machine Guns“. O termo vem da música de mesmo nome da banda The Cramps (ouça aqui), lançada em 1989, e costumeiramente era utilizada para descrever personagens femininas com uma alta carga sensual e que lutavam bem, portavam armas, etc.

O universo de animês, desde muito tempo, utiliza em suas histórias esse arquétipo da femme fatale. Chuto que a Motoko, de Ghost in the Shell (1995), talvez seja a referência mais fácil que surge à cabeça. Contudo, esse formato feminino ganhou contornos e adaptações conforme os anos passaram e novas estéticas se tornaram mais proeminentes.

A imagem de personagens femininas armadas e perigosas transitou da figura de adultas sensuais para a de adolescentes (Angel Beats!, 2010, Kill la Kill, 2013-2014), pré-adolescentes (Madoka, 2011) e até crianças (Youjo Senki, 2013), tão mortíferas quanto.

Lycoris Recoil, animê da A-1 Pictures que foi ao ar na mais recente temporada de verão, apresenta ainda outra atualização desse arquétipo de garotas armadas e perigosas. Dessa vez, adicionando ainda mais camadas de interpretação às personagens e um subtexto político, social e amoroso que torna tudo bem mais interessante de confabular. O resultado é uma das grandes produções de 2022 até então.

imagem: as duas protagonistas se abraçando.

Reprodução/Crunchyroll

Primeira direção de Shingo Adachi, esse é um animê original em 13 episódios. Na trama, acompanhamos um projeto governamental fascista intitulado Lycoris, onde garotas são criadas como assassinas para se livrarem, por baixo dos panos, de criminosos e terroristas que possam ameaçar a segurança do Japão.

Ocorre de justo a integrante mais talentosa, Chisato, por motivos ligados a uma operação famosa no passado, ter decidido “se aposentar” desse papel de assassina e ido trabalhar no LycoReco, um café de faixada montado pela Lycoris para atender a problemas menores naquele bairro onde ele está instalado. Takina, outra das meninas, após desobedecer ordens e colocar suas colegas de missão em perigo, é rebaixada e obrigada a ir para o LycoReco.

A partir do contato com Chisato, Takina descobre uma nova maneira de levar a vida, que envolve mais positividade, empatia e um respeito maior pelos outros. E descobre também sentimentos que ela ainda não havia experimentado em sua pouca idade.

Lycoris Recoil é um desses produtos que conseguem ser excelentes em, basicamente, todos os pontos em que se propõem. Enredo, roteiro, trabalho de animação, subtexto político, críticas sociais, construção de romance: tudo é executado com um primor impressionante. Há muito talento em quem dirigiu e escreveu isso aqui.

imagem: as meninas em foto de celular.

Reprodução/Crunchyroll

A história de uma “policial má” sendo obrigada a conviver com uma “policial boa” e aprendendo sobre outra qualidades da vida pode ser manjada (foi usada até em Miss Simpatia 2, 2005), mas serve de ponto de partida para um ótimo desenvolvimento de personagens. Somado ao background político, podemos interpretar a interação entre Takina e Chisato como um conflito alegórico de ideias sociais.

São dois lados que podem ser nomeados das mais variadas formas: “direita” contra “esquerda”, “sistema” contra “humanitarismo”, “mecanização” contra “humanidade”. Pois Takina inicia sua jornada totalmente embebida nas ideologias da organização que a obrigou a treinar durante toda a infância para “servir à causa”. Ela acha um absurdo ter sido rebaixada e sua punição ser trabalhar na paz do LycoReco. Em contrapartida, Chisato dedica sua vida a essa paz, à antiviolência num geral.

Embora seja a agente mais talentosa em todas, Chisato opta por usar uma arma não letal, com balas de tinta em vez de munição real. Em vez de usar suas habilidades para assassinar, sem um julgamento justo, bandidos, ela prefere melhorar o mundo a partir de atos que ajudem os cidadão no dia a dia. E através desse contato é que Takina começará a questionar seus atos, e também questionar se os ideais que ela carrega são, de fato, dela, ou adicionados pelo entorno que a moldou.

imagem: chisato e takina.

Reprodução/Crunchyroll

É tudo montado com sutileza, sem cenas expositivas óbvias ou vilões unidimensionais para fazer o contraponto. Os protagonistas e coadjuvantes têm atitudes mais dúbias, complexas. É difícil (no bom sentido) entender de cara os caráteres de personagens como o Mika, chefe do LycoReco, Fuki Harukawa, agente que teve um contato anterior tanto com a Chisato, quanto com a Takina, a chefe da Lycoris, Kusunoki, ou o estranhíssimo Shinji Yoshimatsu, que guarda suas reais intensões até os últimos momentos.

O animê, de início, é quase trabalhado como um slice of life, onde o empenho está mais em mostrar o rotina da dupla, até que as coisas realmente comecem a esquentar quando os perigos reais surgem. E é interessante demais que, no fim, o grande vilão é, justamente, a tentativa de obrigar elas a saírem do estilo de vida pacífico e não mortífero escolhido pela Chisato. É o fascismo se esforçando para limar possibilidades diferentes de pensamento.

E quando chega o momento dele explodir em ação e entregar todos os elementos que um clímax de animê de ação necessita, isso ocorre, com operações grandiosas, batalhas recheadas de sequências que tiram o fôlego, viradas de roteiro e por aí vai.

Lycoris Recoil é excelente. Entrega tudo o que precisa entregar, e faz isso sem precisar recorrer a fórmulas ou caminhos narrativos tão óbvios. É um animê que consegue ser delicado na mesma proporção que energético. E nos mostra que, no fim, a vida é melhor quando optamos pelo lado do amor em vez da violência.


Lycoris Recoil foi exibido pela Crunchyroll com legendas em português de forma simultânea com o calendário japonês, e também em versão dublada em português, estando ainda disponível no catálogo. A empresa fornece ao JBox um acesso à plataforma.


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