Acho que todo fã de animê que era ativo nos anos 2000, em algum momento, conheceu a sinistra lenda do bicho papão oficial dos animês. Uma imponente e ardilosa entidade responsável por (gasp!) censurar nossos animês favoritos, pular episódios, trocar nomes… simplesmente, “infantilizá-los” em geral! Uma entidade de crueldade inimaginável! Maligna! Sinistra! Gringa! E, mesmo após seu (praticamente) fechamento há tantos anos, ainda mantém essa fama, inclusive entre as mais novas gerações de fãs. Sim, estou falando dela… a 4Kids Entertainment.

 

Quando tudo era mato

imagem: pôster de thundercats.

Divulgação: WB.

A 4Kids Entertainment, Inc., inicialmente conhecida como Leisure Concepts, Inc., era uma empresa de produção, distribuição e localização de mídias para crianças (daí o nome, “for kids”), nascida em 1970, sendo muito mais antiga do que a maioria de nós acredita.

Isso porque, originalmente, ela só era responsável por criar “pontes” entre produtoras e distribuidoras de desenhos, com sua maior conquista nessa área sendo ligar o artista Ted Wolf à produtora Rankin/Bass para juntos produzirem um pequeno desenho chamado ThunderCats.

Foi só em 1992 que a 4Kids criou sua subsidiária novaiorquina de produções para televisão (intitulada, bem apropriadamente, de 4Kids Productions), que permaneceria em uma fase de “pré-produção” até adquirirem seu primeiro projeto cinco anos depois, em 1997 — um projeto que, francamente, moldou todo o futuro da empresa.

Se tivesse sido um desenho qualquer da época — sei lá, As Múmias Vivas, por exemplo — dificilmente a empresa teria crescido tanto quanto cresceu em tão pouco tempo, seria só mais uma entre tantas outras. Mas o projeto não foi um desenho qualquer: foi a localização do animê de Pokémon.

Na sua época de Leisure Concepts, a 4Kids foi responsável por distribuir alguns produtos licenciados da Nintendo, e, como já tinha esse contato com a gigante dos games, não foi surpreendente a 4Kids ter sido escolhida para distribuir a série de um de seus novos jogos nos EUA.

Como todo mundo que lembra de 1998-1999 bem sabe, Pokémon explodiu imediatamente — explodindo um pouco antes nos EUA –, viciando milhões de crianças nos personagens e monstrinhos, levando elas pro cinema para assistir ao primeiro filme da série e movendo muita, mas MUITA bugiganga, o que encheu os bolsos de uma muitíssimo satisfeita Shogakukan-Shueisha Productions (ShoPro) e também de uma muitíssimo animada 4Kids Entertainment.

imagem: Ash abraçando seu Pikachu.

Reprodução: ShoPro.

A localização de Pokémon da 4Kids é bem diferente se comparada às futuras localizações da empresa (e futuras temporadas do próprio Pokémon): quase todas as trilhas de fundo japonesas foram mantidas (apesar da típica troca da abertura e encerramento), com novas trilhas somente sendo usadas em cenas originalmente sem música; os diálogos eram, em maior parte, fielmente traduzidos; muitas das coisas que a 4Kids não permitiria em futuros projetos, como referências religiosas, à morte e, até certo ponto, conteúdo sexual, ficaram, em maior parte, intactas… até os títulos dos episódios costumavam ser traduções diretas dos títulos japoneses. Isso nunca aconteceria de novo.

Um dos motivos para isso é porque, nos Estados Unidos, a primeira temporada de Pokémon foi distribuída no sistema de “syndication”, como já expliquei em outra coluna — a prática de vender “pacotes” de episódios para qualquer emissora local que mostrasse interesse para exibir no horário que ela quisesse. Esse esquema era bom nesse sentido, pois impunha menos limitações sobre o conteúdo dos programas se comparado a uma exibição nacional em uma grande emissora… que seria o destino de Pokémon muito em breve. Chegamos já nisso.

A ShoPro (e as demais envolvidas na produção do animê) decidiu, então, usar a localização americana da 4Kids como base para todas as localizações fora da Ásia, provavelmente por ser mais fácil (e barato), e as amenizações de conteúdo diminuírem a dificuldade do produto de entrar em mercados mais sensíveis. Aliás, esse, provavelmente, é o caso para todas as outras localizações que mencionarei nesta coluna, então… mantenham isso em mente.

 

Um novo sucesso

Imagem: Yami Yugi em pôster de 'YuGiOh!'.

Divulgação: Gallop, Konami.

Enfim, a 4Kids se manteve perfeitamente satisfeita com o sucesso estrondoso de Pokémon por três anos, sucesso esse que provavelmente facilitou muito a aquisição de futuras propriedades que pudessem expandir a empresa (coincidentemente, justamente quando a popularidade estrondosa de Pokémon estava caindo para uma popularidade-bem-grande-mas-não-mais-tudo-isso). Em 2001, a 4Kids, então, finalmente lançou seu novo grande título para acompanhar Pokémon… e, apesar de não ter sido a febre avassaladora que Pokémon foi, foi uma febre bem forte.

Esse novo título era Yu-Gi-Oh! Duel Monsters, ou só “Yu-Gi-Oh” nesta localização, um animê que, assim como Pokémon, girava em torno de criaturas, mas estas atreladas a um card game simultaneamente inspirado e “sinergizado” com o animê. Não que isso afetasse muito a qualidade ou a popularidade da animação por si só, porque, assim como Pokémon, foi um fenômeno de audiência e merchandising que ia além das cartinhas. Em outras palavras, esta segunda aquisição, tal como Pokémon, foi fortíssima para a empresa, e garantiu a longevidade dela até segunda ordem.

E, juntamente com Yu-Gi-Oh!, veio também uma demonstração de que a 4Kids não pretendia virar uma localizadora só de animê, porque, no mesmo ano, ela também localizou o coreano desenho Cubix para servir como o “irmão mais inocente” de Yu-Gi-Oh! — isto é, um desenho para um público mais novo que aquele. E, claramente, um que também foi escolhido seguindo a “filosofia” de Pokémon: um desenho em que os jovens protagonistas eram acompanhados por prestativos (e marketáveis) robôs.

imagem: pôster americano de Cubix.

Divulgação: Cinepix.

Cubix está bem esquecido no Brasil hoje em dia, mas ficou em exibição nos EUA por um bom tempo, especialmente por ser um dos poucos conteúdos “educativos” que a 4Kids podia usar para cumprir uma lei que exigia a exibição de tais programas. Em outras palavras, também foi um sucesso, mas Yu-Gi-Oh! definitivamente foi a estrela que brilhou mais forte.

Voltando a Yu-Gi-Oh!, a localização do animê foi bem diferente do que observamos em Pokémon, e serviria como o modelo utilizado por todo o resto da vida útil da empresa.

Por um lado, diferente de Pokémon, o nome de vários personagens ficou inalterado da versão japonesa (possivelmente uma exigência das produtoras, mas isso é só um palpite meu), o que parece bem respeitoso… mas, por outro, todo o resto da localização foi bem mais intrusiva: os diálogos não eram mais adaptações muito menos fiéis dos diálogos originais, detalhes do enredo e caracterizações eram radicalmente alteradas e toda a trilha sonora foi trocada por composições americanas desta vez.

Também pôde-se observar mais alterações visuais; parcialmente por Yu-Gi-Oh!, sendo a adaptação de um mangá da revista Shounen Jump, simplesmente ter mais violência que Pokémon, além do ocasional elemento de ocultismo… mas, ao mesmo tempo, certas edições pareciam mais severas que as observadas em Pokémon, como violência leve (que era permitida lá) e referências religiosas (que, na época, também eram permitidas lá). Isso além de cortes que eram puramente “diretoriais” – cenas em que nada de ofensivo ou sensível ocorria, mas que eram cortadas ou reordenadas para encaixar melhor com o diálogo alterado da adaptação. Como eu disse, um processo bem mais intrusivo.

 

A “era de ouro” e as alterações

imagem: logo do 4kids tv.

Divulgação: 4KIDS.

Yu-Gi-Oh! e Pokémon foram exibidos (e, provavelmente, parcialmente financiados) pelo braço infantil do canal The WB (o equivalente do nosso Warner Channel, mas muito mais acessível nacionalmente), apontado como responsável por muito dessa maior severidade em cima do conteúdo dos animês.

Mas a relação entre a 4Kids e o canal da Warner seria limitada – em 2002, após a Disney comprar a Saban e basicamente arruinar a Fox Kids (que, diferente da do Brasil, era um bloco de desenhos do canal da Fox nos EUA, majoritariamente produções da Saban, não um canal), a 4Kids firmou um acordo com o canal Fox para ser a nova “dona” do bloco infantil dele. Esse bloco inicialmente se chamava FoxBox, mas, posteriormente, teria seu nome trocado para o extremamente egocêntrico “4Kids TV”.

Agora com um bloco inteiro de programação infantil para preencher, e com os bolsos cheios do sucesso de Pokémon e Yu-Gi-Oh!, a 4Kids tinha todo o incentivo e recursos do mundo para produzir e adquirir mais programação, e foi aqui que ela parou de ser “comedida” e saiu licenciando uma penca de coisas – especialmente animês, já que seus maiores sucessos eram tal (e porque já deviam ter boas relações com várias produtoras japonesas àquela altura).

Essa foi a era de Kirby, Músculo Total, Sonic X, As Super Gatinhas… foi realmente o momento em que a 4Kids entrou no radar da esfera “otaku” de fãs mais “sérios” de animê — ela estava pegando títulos de peso e não era mais tão fácil de ignorar. E, antes de chegarmos ao elefante na sala que todos sabemos que está vindo, é bom ressaltar que, mesmo nesta era, a 4Kids tentava expandir além de animê… e os resultados eram bem estranhos.

Por exemplo, a 4Kids foi a responsável por produzir uma das raríssimas dublagens americanas de um tokusatsu, com a exibição de Ultraman Tiga em seu bloco, em 2002, aproveitando a vontade da produtora Tsuburaya de distribuir sua nova era de Ultraman mundo afora.

Mas isso veio com um monte de asteriscos, nenhum deles bom — além dos esperados cortes de conteúdo e trilha sonora alterada, a dublagem americana de Ultraman Tiga era praticamente uma paródia da obra, com os personagens soltando piadinhas frequentes, quebrando a quarta parede, referenciando a cultura pop da época (incluindo Pokémon, claro) e constantemente ignorando o enredo da série.

Só para deixar claro, essa não foi a versão que nós recebemos em 2000 e que foi exibida na Record, aquela era uma dublagem direta da versão japonesa. Inclusive, há um bocado de localizações da 4Kids que não vieram para cá (F-Zero GP Legend, Clube das Winx, Shaman King, Magical DoReMi…). Mas, nos EUA, foi um produto bem bizarro que até hoje não sei como a Tsuburaya permitiu. Felizmente (?) não foi um enorme sucesso de audiência e a localização está bem esquecida hoje em dia, mas, na minha interpretação, serviu como o primeiro sinal de que a 4Kids detinha esse “aval” para não respeitar seus produtos adquiridos se não quisessem… como foi repetidamente provado nos anos seguintes em seu bloco.

Foi aí que a 4Kids realmente firmou seu estilo (que então seria adotado por temporadas mais avançadas de Pokémon e Yu-Gi-Oh!). As versões, via de regra, não eram traduções fiéis da versão japonesa, com quase todo o diálogo reimaginado em algum nível, geralmente simplificados e mais carregados de trocadilhos e piadas extras, além de bastante diálogo vazio para preencher momentos de silêncio.

Isso não era consistente, diga-se de passagem: em algumas das localizações, como Sonic X, muito do diálogo original foi mantido (pelo menos nos primeiros episódios…), em contraste com outras como As Super Gatinhas (Tokyo Mew Mew), em que tanta coisa era reescrita que até detalhes do enredo eram alterados. Eu não saberia dizer exatamente por que isso acontecia. Acho que das duas uma: ou eles julgavam determinado animê como “já adequado para o público” (logo, não necessitando de muitas alterações), ou a licenciante japonesa impunha isso. Vai saber.

Como eu disse antes, toda a trilha sonora era alterada também, e, depois que você consome várias dublagens da 4Kids, é bem fácil reconhecer o estilo dela. Basicamente, animês, via de regra, têm trilhas sonoras abrangentes o bastante para serem reutilizadas em múltiplos contextos — a “música triste de Naruto, por exemplo, não é exclusiva a uma só cena ou personagem, sendo aplicável a toda e qualquer cena triste da obra. Essas músicas raramente são alteradas, sendo uma porção de composições fixas (que costumam, então, serem lançadas sozinhas posteriormente.)

Já a filosofia americana de trilhas sonoras para desenhos é um pouco diferente, porque é inspirada em coisas como Tom & Jerry e os clássicos curtas dos Looney Tunes — em que a animação era feita para acompanhar a música, ou vice-versa (isso é popularmente conhecido como “Mickey Mousing”, porque, sim, a Disney também é famosa por isso).

Claro que, no ritmo de produção de desenhos para TV, isso não costuma ser praticável, mas ainda é aplicado, de certa forma. Aqui, os desenhos têm diversas composições que são maleáveis e adaptáveis, com a produção podendo acelerar, desacelerar, tirar instrumentos etc., para dar a “ilusão” do Mickey Mousing, só que de forma mais econômica e rápida. Pense em Bob Esponja, por exemplo, em que dá para reconhecer as composições de fundo, mas elas nunca são idênticas nas cenas em que são usadas.

Por que eu estou falando disso? Bom, porque a 4Kids tentava desesperadamente seguir essa filosofia quando compunha novas trilhas pros seus animês, com suas melodias (produzidas por “programas simuladores de orquestras”, como muitos outros desenhos de TV) sendo moldadas para acompanhar o movimento dos personagens.

O quanto isso dá certo é uma questão de opinião pessoal, mas eu, pessoalmente… acho que não só não funciona, como fica horrível. O típico animê infantil, por si só, não é feito para ter muito movimento, ou cenas curtas, ou cortes frequentes: Mickey Mousing jamais funcionaria com um animê como Dragon Ball Z, por exemplo, que tem tantas cenas de personagens 100% parados se encarando por vários segundos.

E isso se aplica a muitos dos animês da 4Kids, e, pelo menos para mim, qualquer tentativa de fazer uma trilha sonora que acompanhe cada mínimo movimento só fica muito esquisito com animês. Uma forma bem fácil de perceber se uma trilha sonora de animê é americana é quando algumas notas tocam quando o personagem suspira ou tropeça ou algo assim – é um toque radicalmente americano em algo que não é americano, e, por isso, acaba causando uma dissonância.

A 4Kids também era famosa por “maquiar” o máximo de cultura japonesa que conseguia, apagando caracteres japoneses sempre que possível, tirando referências ao Japão em diálogos e, em casos extremos, apagando comidas japonesas e trocando-as por comidas ocidentais (como observado em Pokémon, One Piece e As Super Gatinhas) – táticas que vão de engraçado a desrespeitoso, dependendo de para quem você pergunta.

Mas até isso é meio variável — por exemplo, as adaptações de Pokémon e Super Gatinhas trocaram todo nome e sobrenome japoneses de personagem, enquanto que as de Yu-Gi-Oh! e Shaman King eram mais meio-a-meio. Sem falar que Shaman King é uma história com um elenco internacional de personagens e, portanto, não tiveram escolha senão deixar o “setting” japonês intacto lá. Acho que dependia de quanta “escolha” a 4Kids tinha no dia.

 

Para todas as idades

imagem: à esquerda a versão original da cena de yu gi oh com pessoa apontando arma para a cabeça do pegasus, e à direita a versão da 4kids, sem a arma.

Reprodução.

E, claro, a alteração mais óbvia e, portanto, mais conhecida em animês da 4Kids: violência e conteúdo sexual. Apesar de todos os animês licenciados pela 4Kids serem, no máximo, para um público pré-adolescente, eles ocasionalmente apresentavam esses elementos mais questionáveis, e eram sempre alterados pela distribuidora. Sangue, armas de fogo, agressão física, nudez, roupas curtas demais nas meninas — todos elementos que se viam diante de edições digitais (de alta qualidade, para a época) para, idealmente, não chatear nenhuma emissora deste lado do atlântico.

Mas, sim, até isso era meio variável. Por exemplo, em Yu-Gi-Oh!, todas as armas de fogo eram apagadas (dando origem às infames imagens de personagens apontando seus dedos uns para os outros), enquanto as mesmas eram mantidas intactas em Sonic X (apenas ganhando “sons de laser”). Todo o (raro) sangue de Yu-Gi-Oh! era apagado, mas muito do (raro) sangue de Shaman King foi mantido sem problemas. Yu-Gi-Oh! era contratualmente proibido de mencionar o conceito de morte, mas Pokémon e Músculo Total podiam, nas raras vezes em que brotava. E assim por diante.

Eu sei que já falei isso em outras colunas, mas vou repetir: para mim, essas são as alterações mais inofensivas da 4Kids. Sim, cortar os golpes mais impactantes de, sei lá, Músculo Total tira um pouco do peso de certas cenas — uma opinião que eu ecoo hoje em dia sobre Dragon Ball Super, inclusive –, mas não descaracteriza a obra, não afeta ela em sua essência, como troca de diálogos e trilha sonora afeta. Apagar o decote dos monstros femininos de Yu-Gi-Oh! é completamente banal à história da obra, não vale a pena se estressar muito com isso.

Mas aqui quero lembrar vocês de uma coisa: não era só a 4Kids que fazia essas edições de violência ou conteúdo sexual. A Saban (Shinzo, Os Cavaleiros de Mon Colle, Super Pig) também fazia, a Viz Media (MegaMan NT Warrior, Zatch Bell!) também fazia, e a Nelvana (Medabots, BeyBlade) também… mas, por algum motivo, é a 4Kids que é vista como o ícone supremo de censura de animê, como sinônimo da prática. Vocês já pararam para pensar por que isso? O que teve esse impacto tão grande que fez essa noção ser tatuada nas mentes de tantos?

É, hora de falar um pouquinho sobre One Piece.

 

O pirulito do pirata

imagem: sanji segurando um pirulito.

Reprodução: 4Kids/Toei.

Para o choque de muitos, em 2004, a 4Kids licenciou o extremamente popular animê One Piece, que já estava em seu quarto ano de exibição no Japão. O choque se deu porque One Piece é, indiscutivelmente, muito mais violento do que tudo com que a 4Kids trabalhou antes ou depois (mesmo sendo visto como um animê bem “para toda a família” no Japão), do que todos os outros desenhos no seu bloco infantil, e do que 90% de todos os desenhos na TV infanto-juvenil americana na época.

Muitos acreditam que a 4Kids foi “forçada” a adquirir One Piece pela Toei, um caso de “licenciamento de pacote” — eles teriam que levar One Piece se quisessem Ojamajo Doremi (uma das localizações da 4Kids que não vieram para cá). Eu não acredito nessa teoria, pessoalmente, especialmente porque somente a primeira temporada de Ojamajo foi adaptada, enquanto que a versão da 4Kids de One Piece chegou a admiráveis 104 episódios.

Sou da teoria de que a 4Kids ficou mesmerizada com os números que One Piece fazia no Japão na época (e segue fazendo até hoje, quase 25 anos depois) e resolveu que valia a pena fazer o que fosse preciso para colocar o animê na TV, mesmo se tivessem que gastar muitas, mas muitas horas removendo digitalmente elementos indesejados do desenho do pirata que estica.

E, como sabemos, não valeu muito a pena; eles perderam a licença e, hoje em dia, One Piece é lançado sem cortes em vários países, incluindo o nosso. Dito isso, eu sinto que foi One Piece que realmente colocou a 4Kids “no mapa” e a transformou no maior vilão da indústria — era um “combo” do fato de One Piece ser popular (mesmo que menos que hoje em dia) e das edições serem tão extensas, tão frequentes e tão óbvias que era impossível de ignorar.

Se não te contassem, você não saberia que a 4Kids cortou um tapa da Misty no Ash no primeiro episódio de Pokémon; mas mesmo se você nunca tivesse visto One Piece na vida, era óbvio que aquela estranha marreta-com-gatilho do Helmeppo era para ser uma arma de fogo.

E é fácil acreditar que One Piece foi o principal fator por trás do fim da 4Kids, mas a realidade é que ele provavelmente foi o menor deles. Enfim, hora de falarmos sobre quando a 4Kids finalmente começou a morrer (ou desaparecer, se a menção de morte irritar os patrocinadores).

 

O fim se aproxima

imagem: ash chorando em pokemon.

Reprodução: ShoPro.

A verdade pura e simples é que nenhuma das propriedades adquiridas pela 4Kids pós-Pokémon e Yu-Gi-Oh! fizeram tanto sucesso quanto Pokémon e Yu-Gi-Oh!.

Algumas chegaram perto — Sonic X trouxe bons números, uma vantagem de ser baseado em uma franquia de tamanho sucesso, e As Tartarugas Mutantes Ninja, segunda adaptação animada do famoso “sentai” anfíbio americano, co-produzida pela 4Kids e pela Mirage Studios, vendeu muitos produtos e ficou no ar por sete temporadas inteiras…

Mas as demais licenças, não. Ojamajo Doremi passou sem deixar cheiro. As Super Gatinhas foi deixado pela metade. Shaman King tentou engrenar uma série de jogos e produtos nos EUA, sem sucesso. F-Zero: GP Legends só teve 13 episódios (de 52) exibidos. G.I. Joe Sigma 6 foi um fracasso. Futari Wa Pretty Cure foi licenciado mas nada foi feito com a propriedade. A lista continua.

Eu sinto que o começo do fim da empresa realmente foi a perda de Pokémon. Em 2005, por motivos não muito claros, a Pokémon Company (a empresa responsável por tudo Pokémon, que na realidade é uma aliança entre três empresas: Game Freak, Creatures, Inc. e Nintendo) revogou os direitos sobre o animê da 4Kids e comprou de volta a pequena parcela que a 4Kids tinha das ações de Pokémon, passando a distribuir o animê por conta própria, sem nenhum laço remanescente com a distribuidora.

Eu fico imaginando o desespero que isso causou à 4Kids. Pokémon era o carro-chefe da empresa, foi o que colocou ela no mapa e o que a trouxe tão longe, e, mesmo após períodos de perda de popularidade, era uma propriedade confiavelmente lucrativa… e, agora, estavam sem ela. Ainda lhe restava Yu-Gi-Oh!, mas essa era outra propriedade que mostrava queda nos lucros e, somando isso a todas as licenças malsucedidas previamente listadas… a situação não estava boa.

Também devemos destacar o simples problema de que… o boom dos animês estava acabando rápido. Por exemplo, em 2006 (o ano em que a 4Kids perdeu Pokémon), o Cartoon Network americano tinha pouquíssimos animês na programação, e o único que realmente dava audiência era Naruto. A bolha do mercado de DVDs de animê estava a um triz de estourar, com um modelo de distribuição que demorava demais para acompanhar os avanços da Internet… em outras palavras, a 4Kids perdeu Pokémon justamente no pior momento para animês nos EUA, o que não deve ter ajudado nada.

Entretanto, a faca que realmente marcou que os dias da empresa estavam contados viria de um local bem inesperado: Yu-Gi-Oh!. Não, não porque a licença foi revogada, como Pokémon… foi bem pior: em 2011, a 4Kids foi processada pelas produtoras da franquia!

imagem: capa de dvd americano de yu-gi-oh.

Divulgação: 4Kids, Funimation.

A localizadora foi acusada de ter firmado acordos com a Funimation (para a distribuição dos animês em home video) que não explicitavam os lucros que a 4Kids adquiria com isso e, portanto, permitia que ela não pagasse as produtoras de Yu-Gi-Oh! devidamente. O processo foi bem-sucedido. Logo após isso, a 4Kids acionou um pedido de recuperação judicial com base no Capítulo 11 do Código de Falências Americano, que… bom, é bastante juridiquês, mas, basicamente, se resume a um pedido de “tempo” para a empresa continuar ativa no mercado enquanto tenta negociar com aqueles a quem ela deve. A 4Kids tinha falido, e esse era seu pedido de “só mais um tempinho, por favor”.

Enquanto não falia, a empresa sofria várias mudanças: a Fox resolveu abrir mão de seu bloco infantil dominado pela 4Kids, o que fez a empresa voltar para a The WB (que agora havia se transformado na The CW) e chefiar não só um bloco infantil de desenhos, mas o último bloco infantil de desenhos em um canal americano “aberto”. É quase admirável, na verdade.

Esse bloco, chamado “The CW4Kids” (e, mais tarde, “Toonzai”) foi o lar das últimas licenças da 4Kids: Yu-Gi-Oh! 5D’s e a primeira temporada de Yu-Gi-Oh! Zexal (mesmo durante o processo com as produtoras, eles mantiveram os direitos sobre Yu-Gi-Oh!), Dinossauro Rei (Kodai Ouja Kyouryuu King DKidz Adventure), a co-produção Japão-Coreia Tai Chi Chasers e o desenho pré-escolar russo GoGoRiki (KikoRiki).

É um detalhe pequeno, mas eu quero apontar: para a minha enorme surpresa, a versão americana de Dinossauro Rei fez algo que a 4Kids não fazia há MUITOS anos — manteve parte da trilha sonora japonesa! Não foram muitas das trilhas, mas, ainda assim, pareceu uma forma até poética de terminar a relação da empresa com animês — fazendo algo com um de seus últimos que ela fez com o seu primeiro.

Também é interessante apontar que o The CW4Kids/Toonzai também participou na veiculação do mais recente (e, possivelmente, último) grande sucesso de um animê na TV norte-americana para o público infanto-juvenil: Dragon Ball Z Kai. Eles não licenciaram a propriedade (a Funimation licenciou, como licencia tudo de Dragon Ball por lá), mas foram responsáveis por editar o conteúdo para os padrões do canal. Só para constar, foi, indiscutivelmente, bem menos editado que One Piece.

 

Outras frentes

Imagem: Pôster de 'Shaman King'.

Divulgação: Xebec.

Antes de chegar ao fim da empresa (nossa, tô adiantando esse óbito faz tempo já, hein?), também quero comentar rapidamente sobre algumas tentativas falhas da 4Kids de expandir para além do mercado infantil.

Em 2004, após anos de queixas de fãs sobre as edições realizadas em seus animês, ela tentou emplacar, em parceria com a Funimation, uma linha de lançamentos “uncut” (sem censura) em DVD, com seus animês sem edições ou alterações de trilha sonora e com novas dublagens mais fiéis ao original, além de oferecerem a opção de áudio japonês com legendas.

Apenas duas séries receberam esse tratamento — Yu-Gi-Oh! e Shaman King — e ele não deu muito certo, durando só poucos volumes. Shaman King foi um simples caso de superestimar a popularidade do título, mas, com Yu-Gi-Oh!, eu sinto que teria dado certo se tivessem esperado uns anos, até os fãs crescerem o bastante para ficarem nostálgicos pelo título. Enfim, só podemos imaginar as possibilidades…

E, por fim, em 2006, a 4Kids também lançou uma nova subsidiária chamada 4Sight, que seria destinada a licenciar e localizar propriedades para públicos mais velhos, possivelmente para jogar no mesmo espaço que empresas como a Funimation e a (então-ainda-viva) ADV Films. Isso não levou a absolutamente nada, e, após seu anúncio, a 4Sight não fez nada até o fim da empresa.

 

A morte iminente

imagem: pikachu desmaiado após golpe.

Reprodução: ShoPro.

Em agosto de 2012, com tantos problemas financeiros e legais nas mãos, a 4Kids fechou todas as suas subsidiárias, incluindo a 4Kids Productions, responsável pela localização de tantos animês por mais de uma década. No mesmo ano, a recém-renascida Saban (especificamente, a Saban Capital Group), em associação com outras empresas, adquiriu os direitos sobre vários dos títulos e do bloco infantil da 4Kids na The CW (que foi renomeado “Vortexx” e não durou muito), deixando a empresa com, essencialmente, nada.

Após todas essas perdas, a 4Kids Entertainment se rebatizou de 4Licensing Corporation e anunciou planos para superar seu processo de falência e perdas… e não o fez. Após quatro anos de total silêncio, em 2016, a 4Licensing Corporation, o último resquício do que um dia foi essa enorme licenciadora e distribuidora de animês, fechou as portas.

Apesar de tudo isso, a 4Kids deixou algumas “sombras” para trás, que permanecem vivas até hoje. Por exemplo, pode-se ver as operações da Pokémon Company com o animê de Pokémon como simples continuação do que a 4Kids já vinha fazendo com ele — as alterações de trilhas sonoras, retoques nos diálogos, mudanças de nomes… essas coisas continuam até hoje.

Já a outra sombra é bem mais direta: após o fechamento da 4Kids Productions, a Konami, produtora e distribuidora do card game de Yu-Gi-Oh!, comprou seu espaço de operações para continuar a localizar os animês de Yu-Gi-Oh! do mesmíssimo jeito que a 4Kids fazia, e a empreitada segue ativa até hoje. Essa subsidiária inicialmente se chamava “4K Media” (“quase 4Kids”, podemos dizer), mas, posteriormente, foi rebatizada como Konami Cross Media NY.

Eu sei que é tentadora a vontade de soltar fogos e sambar no túmulo da 4Kids (e eu fiz muito isso!), mas… esses anos todos me deram uma nova perspectiva em cima de tudo isso. Aos jovens olhos de um jovem fã de animês, claro que a 4Kids parece uma enorme vilã — ela fornecia versões pioradas dos produtos que tanto amamos, e não fazia quase nenhum esforço para disponibilizar a versão original junto. O jeito como ela via animês era cínico e puramente corporativo: desenhos japoneses “estranhos” que precisavam de “adequações” para alcançar o devido sucesso.

Mas… por bem ou por mal, ou muito mal, isso funcionou, por um tempo. Durante um período em que a TV americana estava ficando cada vez mais “chata” com o conteúdo infantil na TV (algo que não parou até hoje e só tende a piorar), a 4Kids conseguiu levar animês a um público amplo e fazê-los ter sucesso, algo de que nenhuma produtora dos animês que ela licenciou pode reclamar (e, até onde sei, nunca reclamou… quer dizer, uma reclamou que poderia estar contratualmente recebendo mais dinheiro).

É engraçado — com a explosão dos animês no ocidente nos anos 2000, é fácil de acreditar que xenofobia é coisa do passado, que todos já estamos condicionados a aceitar animês do jeitinho que são, com todas as suas idiossincrasias e particularidades e esquisitices… mas a verdade é sempre um pouco mais complexa que isso.

Isso quer dizer que a 4Kids fez o “certo”? Rá, claro que não! A empresa genuinamente não mostrava muito amor pelos seus produtos. Durante uma entrevista sobre Sonic X, Michael Haigney, dublador e diretor de dublagem da empresa, declarou, por exemplo, que via a troca de trilha sonora como sendo “inofensiva” e “o mesmo que dublar as falas em outro idioma” — se isso não mostra uma falta de sensibilidade artística para com as obras trabalhadas, eu não sei o que mostra.

Mas funcionou, e se funcionou, é porque muita gente, pelo menos até certo nível, pensava igual. Só quero dizer que é meio inocente demais ver a 4Kids como essa grande empresa do mal que aterrorizou inocentes aldeias em seu castelo demoníaco. Não, ela era só uma manifestação do mercado da época, e morreu porque esse mercado mudou.

Ufa. Bom, enfim chegamos ao fim deste meu ensaio de faculdade sobre a empresa que transformava bolinhos de arroz em sanduíches. Bom, hora do “call to action”: quais animês (ou Cubixes) da 4Kids você lembra de ter visto? Qual alteração você lembra de ter sido a mais estranha ou engraçada? Você acha que bolinhos de arroz parecem biscoitos com recheio de geleia, dependendo do ponto de vista? Soltem suas opiniões nos comentários e nos vemos na próxima coluna!

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