A memória é parte fundamental do que compõe a humanidade. A explicação científica é que ela é a capacidade de guardar informações na cabeça, de um jeito que essas informações possam ser recuperadas, num processo que ocorre por meio de conexões neurais ou células nervosas no cérebro por sinapses.

Já a explicação filosófica é ainda mais interessante. Num artigo científico (leia aqui) chamado “Memória: da filosofia à neurociência”, feito por João Marcos Ferreira Cantarino e Danilo Assis Pereira, é argumentado que a memória não é só recordar, mas também a relação do ser humano com o tempo passado. Seu papel é trazer ao presente aquilo que já passou, e ser a marca do que é vivido agora e virará passado na lembrança. Então, a memória é o próprio passado, porque é a memória que faz o passado existir.

A relação com a memória é não só individual, mas coletiva. Porque o compartilhamento das memórias individuais, e suas comparações com registros evidenciais, são o que criam a história tomada como cânone socialmente. Ou seja, a memória, individual, coletiva, e sua relação com ela, incluindo os sentimentos gerados nisso, são um pedaço da espinha dorsal do que é ser humano. Tanto internamente, quanto na percepção para com os outros.

Por isso, perder a memória talvez seja uma das piores coisas que alguém pode passar. Pois é como perder parte de sua humanidade. E é nessa perda de memória que a autora Yumi Sudo trabalha Confins de um Sonho (Yume no Hashibashi).

O mangá josei do gênero yuri foi publicado originalmente na revista Feel Young entre 2018 e 2020, depois compilado em dois volumes pela editora Shodensha — aqui no Brasil, o título chega pela editora Pipoca & Nanquim em volume único.

imagem: cena com duas idosas conversando "tempo de mais, né, mitchan?", e a outra responde "mas você continua a mesma".

Imagem: Pipoca e Nanquim

Na trama, Kiyoko Ito é uma senhora de 85 anos que sofre de um transtorno neurodegenerativo. Em 2018, ela reencontra uma velha amiga, Mitsu Sonoda, com quem, por acontecimentos da vida, ela nunca pode viver um relacionamento amoroso.

Ocorre que Mitsu falece logo após esse reencontro, de modo que qualquer esperança de que esse amor, enfim, fosse consumado, já não existe mais. A partir disso, Kiyoko entra em uma viagem memorial, na qual ela retoma eventos do passado até, enfim, chegar à adolescência das duas.

Confins de um Sonho é um caso parecido com o do também excelente Complicado (leia o que escrevi sobre ele à época aqui), onde é utilizado um elemento da história para que ela seja contada. Enquanto em Complicado acompanhávamos a história do protagonista por uma biografia montada por outro personagem, aqui, a mangaká utiliza a doença de Kiyoko como um recurso narrativo.

Em vez de acompanharmos uma história em ordem cronológica, com os eventos contados do mais antigo ao mais recente, vemos o contrário. Para representar a degeneração da memória da Kiyoko, os fatos são mostrados em regressão, dos mais recentes aos mais antigos.

Ao mesmo tempo que isso serve para nos mostrar o quão tristemente a cabeça da protagonista vai se deteriorando, temos também uma sensação de crescente agonia com o quanto a vida delas poderia ter sido melhor, caso ficassem juntas em vez de constantemente tolhidas pelo ambiente em volta.

Isso porque a história de amor não vivida por Kiyoko e Mitsu é moldada pela sociedade japonesa através das eras. Elas passam por décadas e décadas, e quanto mais voltamos para trás, mais percebemos elementos dos respectivos zeitgeists que foram prejudiciais a elas.

imagem: cena de mitsu aos 28 anos, e um diálogo da amiga dizendo "fui apresentada a ele no ano passado. filho de um médico conhecido do meu pai".

Imagem: Pipoca e Nanquim

Esse é um mangá extremamente triste, e trágico. Pois se levarmos em conta que a memória, como dito no início do texto, é parte essencial do que nos faz humanos, observar Kiyoko perdendo um pedaço dela a cada capítulo é, por consequência, observar ela perdendo partes de sua humanidade.

E aí chega o fim, de cortar o coração, quando aquela mulher que conhecemos no início do gibi já não existe mais, com a autora nos entregando uma metáfora de uma nova Kiyoko, agora com a Mitsu, enfim juntas no além. Não é um fim sobrenatural esperançoso, sim um delírio causado por uma doença terrível em alguém que nunca pode atingir a felicidade total por conta do meio que a proibiu.

Confins de um Sonho é espetacular, um desses mangás que nos levam para um lugar desconfortável e termina como um soco no estômago. A Yumi Sudo desenvolve a história de uma maneira aterradora. É outro nível de quadrinho. Será que algo melhor foi publicado por aqui esse ano?


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Essa resenha foi feita com base em edição cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim. 


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