Ainda dá tempo de falar de um dos melhores lançamentos do ano passado?

Há uma interseção interessante entre o cenário interiorano e narrativas de fantasia que é capaz de proporcionar grandes histórias. É como se o afastamento das modernidades, dos avanços, do progresso de cidades grandes funcionasse como um engate para que temas mais insólitos fossem explorados. Longe da “civilização”, o véu ao insólito, muitas vezes visto como religioso até, parece ser mais fino.

Nem é necessário ir longe para exemplificar. Dentro do cenário brasileiro de revistas em quadrinhos: pense em como, na Turma da Mônica, histórias com o Chico Bento dão margem a personagens presentes no nosso folclore, como a Mula Sem Cabeça, o Saci, o Curupira, dentre outros, além de divindades de panteões indígenas, como Tupã, Iara e a Vitória Régia. E quando a lente foca no personagem Papa-Capim, essas figuras mitológicas/religiosas são ainda mais presentes.

Recentemente, a editora JBC lançou no Brasil o mangá Escamas Azuis: O Segredo da Cidade de Areia (Aoi Uroko to Suna no Machi), da autora Youko Komori. Essa é uma obra originalmente publicada na revista josei You, da editora Shueisha, entre 2013 e 2014, que se fecha em dois volumes. E Escamas Azuis se finca nesse conceito de “fantasia rural” para entregar uma história bastante bonita que lida com abandono, trauma, luto, crescimento e aquele conflito entre levar ou não a sério tradições, religiosidades e folclore.

Na trama, uma menininha chamada Tokiko Aoyama se muda com seu pai para a cidade natal de sua mãe, que já não mora mais com eles. Eles são de Tóquio, estavam acostumados com um estilo de vida mais caótico, cosmopolita, onde não havia muito espaço, muito silêncio, e agora estão na casa da avó materna de Tokiko, bem maior, em uma cidadezinha praiana pouco habitada, onde todos se conhecem, e o máximo de barulho presente é proporcionado pelo bater das ondas.

Foto: Igor Lunei/JBox

A mãe de Tokiko abandonou a família sem dar muitas satisfações. O pai, então, acredita que, ao se mudar para a casa de sua sogra, eles terão mais chances de encontrá-la, já que ela poderá voltar para lá algum dia. Mas essa não é a primeira vez de Tokiko ali. Ela já havia visitado o local quando tinha quatro anos. Nessa ocasião, ocorreu um evento traumático: na praia, sem que a mãe prestasse atenção nela, a menina foi para o mar e quase se afogou, sendo salva por o que ela acredita ter sido uma sereia.

Tokiko então precisa se adaptar ao estilo de vida mais calmo da nova cidade, à ausência da mãe que a abandonou, à uma nova escola, fazer novos amigos, tudo isso com a dúvida de se há ou não sereias naquela cidade. Moradores mais velhos dizem que sim, mas algumas crianças, principalmente o menino Yousuke Narumi, por quem ela parece desenvolver um sentimento mais forte que amizade, defendem que isso são só histórias.

Yousuke é mais que apenas uma contraposição às crenças de Tokiko. O garoto carrega uma melancolia difícil para alguém de sua idade, fruto do luto que ele sente pela morte de seu irmão, anos atrás, levado pelo mar numa situação bem pouco explicada pelos adultos.

A mangaká parte dessa premissa para localizar Tokiko como a outsider daquela cidade, sendo o nosso avatar naquele lugar. A partir de seus olhos infantis, exploramos aquele lugar por vezes inóspito, bucólico, de cenários deslumbrantes e locais cercados de mistérios. Os limites entre realidade e fantasia não são tão estabelecidos, pois vemos tudo pelo ponto de vista de uma criança.

Graficamente, a autora aproveita o bucolismo, os sentimentos da protagonista e a finesa do véu da realidade a partir dos olhos da menina no modo como a história é desenhada. Vários quadros são dedicados a mostrar o quão bonito, radiante e grandioso aquele cenário pode ser. Há cenas e cenas de Tokiko andando, descobrindo os pontos da cidade. E em muitos desses ela é colocada numa escala menor, enquanto o cenário cobre a maior parte do espaço.

Mas em passagens onde ela precisa lidar com temas mais sérios, como a separação dos pais, o abandono da mãe, e a ponte de comunicação entre ela e o pai, o desenho fica mais simples, com os personagens preenchendo a tela em espaços de fundo praticamente vazios. E quando a fantasia entra em foco, vemos deuses, sereias e figuras bestiais aparecendo, não existindo uma separação tão marcada de se estão na realidade, ou se são parte da imaginação dos personagens.

Foto: Igor Lunei/JBox

A premissa é interessante e o estilo que a autora dá à história é instigante, mas o maior trunfo está, propriamente, nessa história. O que começa como um slice of life bonitinho ganha camadas a cada capítulo, com uma trama que envolve um segredo dos moradores da cidade e um festival que ocorre anualmente para um deus dos mares.

Os capítulos finais, onde esse festival enfim acontece, são alguns dos mais afiados que li nos últimos tempos. Nesse festival, é costume que todas as crianças da cidade fiquem trancadas durante a noite, pois há a lenda de que, caso elas apareçam na rua após o por do sol, elas serão levadas por sereias como oferendas ao deus no mar. Tokiko e os colegas de classe precisam dormir no centro social da cidade. E por lá as coisas já começam a ficar estranhas.

Tokiko cochila e sonha com uma cerimônia bizarra envolvendo as sereias, esse deus, e moradores dali. Toda a passagem parece retirada de uma viagem de LSD. Quando ela acorda assustada no meio da madrugada, precisa ir ao banheiro. O problema é que o único banheiro do local fica do lado de fora do prédio. Yousuke a acompanha, e eles descobrem que os adultos colocaram uma lona que cobre a visão de todo o caminho e das janelas do banheiro.

Mas calha de o moleque conseguir olhar por uma frecha que se soltou, percebendo que todas as luzes da cidade estão apagadas e que é um grande clarão vindo do oceano. Os dois saem escondidos e seguem o clarão, indo por um túnel cuja entrada é proibida, pois, supostamente, ele é assombrado por um monstro que come crianças. Quando entram lá, Tokiko e Yousuke descobrem algo que muda a vida deles para sempre. O desfecho é de cortar o coração e ainda martela em minha cabeça desde que terminei de ler.

Escamas Azuis: O Segredo da Cidade de Areia é um mangá espetacular. A autora mistura o tema à narrativa gráfica e conta por ela uma história muito mais emocionante do que a sinopse parece expressar. Não sei se já é tarde para listas de melhores do ano, mas esse aqui, pessoalmente, empataria num ranking meu em primeiro lugar com Confins de um Sonho, que saiu pela Pipoca e Nanquim, como melhor mangá publicado no Brasil em 2023.


Galeria de fotos

Confira no álbum abaixo algumas fotos da edição brasileira.

Volume 1

 

Volume 2

 

 

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imagem: capa naciona do primeiro volume de escamas azuis.

Capa do volume 1. | Divulgação: Editora JBC

Volume 1 | Volume 2


Essa resenha foi feita com base nas edições cedidas como material de divulgação para a imprensa pela editora JBC.


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