Ao menos por esse início, deixemos um pouco de lado aquelas fórmulas de texto onde o autor se coloca mais afastado e intocado, pois quero opinar como um fã de obras japonesas que fala para outros fãs de obras japonesas. Meu entusiasmo para conferir animes que são considerados “clássicos intocáveis” que ainda não assisti (ou que não revi depois de adulto) andava baixo. Talvez por uma série de experiências não tão satisfatórias assim com vários desses nos últimos tempos.

Às vias de fato: só assisti Fullmetal Alchemist: Brotherhood (2009-2010), por exemplo, no ano passado. Sendo um dos animes melhor avaliados em sites de “rankeamento” do gênero, imaginei que estaria diante de uma as maiores perfeições em termos de animações seriadas em todos os tempos. Depois de quase uma centena de episódios, a única certeza que tive foi a de que a adaptação anterior (Fullmetal Alchemist, 2003-2004, que passou aqui no Brasil pelo Animax e pela Rede TV!), que eu havia reassistido semanas antes, comportava melhor a história em seu tom sombrio – com um desfecho bem mais interessante a partir do momento em que o roteiro passa a ser original, até. Opinião impopular, eu sei. Não espalhem, ou me crucificarão.

Também nisso de “novas versões”, Hunter x Hunter, adaptação 2011-2014, era outra obra que eu estava me devendo, só conseguindo assistir mesmo no início deste ano. Adorei quase tudo nela, mas confesso ter pulado o arco nas quimeras, tão chato e arrastado que estava aquilo. Outro desenho, inspirado numa outra obra do mesmo autor, Yu Yu Hakusho, 1992-1994, quase me matou de tédio durante o interminavelmente arrastado arco do Torneio das Trevas, certamente uma das piores coisas que me obriguei a assistir na vida. Mas não levantem suas tochas e lanças, adorei todo a temporada inicial e o run com o Sensui.

Mas por que todo esse preambulo justificativo correndo atrás do próprio rabo? Bom, para relatar que, quando anunciaram que a Netflix colocaria Neon Genesis Evangelion em seu catálogo, com uma nova dublagem e tratamento de luxo, imaginei que me decepcionaria com mais uma obra “clássica” que não desceria bem comigo.

Felizmente, me enganei. E muito, pois Evangelion é nada menos que uma obra prima da história das animações japonesas em todos os tempos. Quase irretocável, mas disso eu falo mais pra frente.

Neon Genesis Evangelion é um anime original, de 26 episódios, lançado entre 1995 e 1996, produzido pelos estúdios Gainax e Tatsunoko, e dirigido pelo Hideaki Anno. Aqui no Brasil, foi exibido em diferentes versões (leia mais aqui), nos canais Locomotion e Animax.

Ele conta a história de um futuro pós-apocalíptico, com a Terra sendo invadida por criaturas gigantes, “Anjos”. Nesse cenário, a organização paramilitar japonesa NERV é a única capaz de deter tais bestas, utilizando misteriosos robôs gigantes, os EVAs, controlados por adolescentes nascidos depois de um evento conhecido como “Segundo Impacto”, um desastre de proporções mundiais causado pelo contato com um desses anjos.

O grande lance aqui é não só o que o anime conta, partindo de uma premissa interessante que possibilita uma porção de desenvolvimentos bacanas nela, mas também como o anime conta isso. Evangelion é absurdamente rico em explorar os artifícios possibilitados pela falta de amarras em animações. Tudo é muito bonito e bem detalhado. Desde os designs de personagens: diferentes uns dos outros, com características próprias em seus visuais que ajudam a montar suas personalidades; até a construção de mundo através dos cenários, como tudo sendo retratado em proporções enormes e inventivas, de modo que é maravilhoso ir descobrindo como tal sociedade foi inserindo a tecnologia no dia a dia: as salas de aula com chats em notebooks nas mesas; os prédios que entram no subterrâneo e ficam “pendurados” no teto; os EVAs e suas armas surgindo de prédios; os pilotos submersos num líquido que injeta ar diretamente pelo sangue deles, como se estivessem num útero etc.

Essa riqueza não fica só nas ideias bem boladas, mas se espalha nos quesitos técnicos de como a obra é feita. O anime abusa (no bom sentido) de ângulos interessantes, com a “câmera” pegando os personagens e cenários de maneiras pouco usuais em animes de TV. Ela vem de baixo, cima, lado, em close ups, focando em um objeto em primeiro plano enquanto os personagens estão ao fundo, fechando em algo no cenário enquanto apenas ouvimos o que está acontecendo (tem uma cena de sexo extremamente sensual onde não vemos nada do que está rolando) e por aí vai. Ele também usa a diferença de escala entre os personagens e o cenário para explicitar como, em alguns momentos, eles são pequenos e indefesos perante o que está acontecendo ao redor (rolam uns diálogos pessimistas enquanto personagens descem uma escada rolante gigantesca, que são muito bem bolados nesse sentido; também tem uma cena logo no início, bem apelativa nisso de “somos menores e indefesos”, com o Shinji se recusando a pilotar o EVA e quase chorando enquanto é diminuto perante a cabeça do mecha, então chega a Rei, toda quebrada, tendo que cumprir seu dever assim mesmo).

É incrível como usam seus próprios artifícios de linguagem para contar o que rolou com aquele mundo, mas sem exposições óbvias e artificiais. Não tem aquilo de um personagem sentar com outro e falar, “puxa, tá tudo perdido pois isso, isso e isso”. Essas informações vão sendo passadas organicamente, conforme a história vai pedindo. Por exemplo, somos melhor situados de como o planeta está abalado através das falas de um professor numa aula de história, que acontece em segundo plano enquanto a cena principal foca nos alunos interagindo no chat da turma e descobrindo que o Shinji é o piloto de um dos EVAs. É contar sem contar de verdade.

Na verdade, isso de mostrar em vez de contar é muito bem feito ao longo da série. Destaco alguns outros momentos assim. Por exemplo, durante uma convenção de segurança onde era Tóquio, tomamos ciência do que ocorreu para que a cidade ficasse naquele estado, entendemos o tanto de conflitos de interesse que rolam por ali, com a segurança mundial sendo posta na balança contra o lucro que isso geraria, e como o machismo ainda impera em tal sociedade através das atitudes que acontecem num debate. Em outro episódio, enquanto um comboio de navios da marinha transporta pro Japão mais um EVA, podemos observar as reações descrentes, por exemplo, de militares quanto aos investimentos financeiros (e de confiança) dos governos na NERV e em crianças para cuidar do mundo. Ainda nesse episódio, temos um deslumbre da destruição mundial através das cenas aquáticas, que mostram que cidades estão submersas naquele grande mar.

Há uma porção de episódios isolados que são muito bem construídos e exuberantes, ricos em seus roteiros e execução. Gosto muito do 2º, que omite durante bastante tempo o resultado de uma batalha, focando nos desdobramentos surgidos após ela, sem que saibamos até quase seu fim o que de verdade aconteceu. Aquele onde os personagens utilizam uma música para treinar uma “coreografia de batalha sincronizada” também é bastante criativo nessa premissa e ao mostrar como eles enfrentam coisas que estão fora de sua realidade futurística (usar escadas num apagão, por exemplo). O 18º deve ser meu favorito, brutal em construir uma cena final super agressiva em tela, mas também por conta da reação do protagonista, único a não saber quem é o verdadeiro novo piloto de EVA que entrou na equipe. A tensão é muito bem construída, sendo quase angustiante observar o caminho trágico que aquilo irá tomar. O 20º é uma bela viagem de ácido, que mescla o surrealismo do plot do episódio com uma loucura em tela animada.

Também é muito interessante como eles mostram como são importantes os momentos em que os personagens separam para se divertir. Pois é necessário se divertir, espairecer, mesmo em meio à contagem para o fim do mundo. São pequenos respiros na narrativa que não deixam que ela se torne pesada.

E tudo isso não seria possível sem o bom leque de personagens, bem criados e desenvolvidos através de ótimos plots e textos. Não há espaço para limitações unilaterais. Os “tons de cinza” são muito bem empregados, de modo que pessoas diferentes podem enxergar um mesmo indivíduo como vilão ou herói, dependendo de suas experiências de vida. É muito fácil se identificar ao menos com um em tantos deles.

O protagonista, Shinji, é um garoto estranho, solitário, introspectivo, que carrega mágoas deixadas pela ausência de seu pai. Ele que vai crescendo durante a narrativa conforme interage com os outros e adquire autoconfiança. Esse pai do Shinji, presta ou não? Vilão ou herói? Por que ele é tão respeitado fora de casa, mas tão odiado pelo filho? Por que o abandonou? Quais suas motivações reais? Asuka encarna bem o papel de tsundere do grupo, sendo mandona, agressiva e colocando-se como superior aos outros em poder, habilidades e maturidade. Só que, frequentemente, tal arrogância é podada através de algum fracasso, alguma frustração, o que libera suas inseguranças, seus traumas vividos. Rei é uma figura envolta em mistérios. Aparentemente subserviente à causa, quase cega ao seguir ordens e se desassociar de qualquer individualidade. Mas os motivos disso são bem mais profundos. Misato interpreta muito bem o papel de “sensei em shonen”, como a mestra cheia de habilidades, que exala autoconfiança e dispõe de uma paciência bem grande para ajudar os outros em seus devaneios adolescentes.

O bom trabalho em caracterização do anime entra novamente aqui, com os visuais dos personagens sendo utilizados para anabolizar os arquétipos que eles aparentam defender. Shinji ser baixinho e mirrado fortalece a sensação de indefesa nele; o cabelão ruivo (loiro?) da Asuka fortalece sua imagem de estrangeira mandona que não segue os estereótipos sociais japoneses; o corte assimétrico de cabelo da Rei fortalece a impressão dela ser alguém que não se encaixa ali; o guarda-roupa “bad girl militar fashion” da Misato contribui para que a enxerguemos como um mulherão que irá resolver tudo.

Mesmo os secundários são bem explorados aqui. Dentro da NERV, a Ritsuko funciona bem como comparsa de motivações dúbias, que vai se revelando cada vez mais importante e profunda em suas motivações conforme a série passa. O professor Kozo Fuyutsuki surpreende nisso de seu background ser bem mais importante pro todo que o imaginável. O Ryoji Kaji faz legal o papel do cara galanteador que, num primeiro momento, parece um babaca, mas se revela mais interessante conforme os episódios passam. Entre os alunos, Toji é perfeito naquilo de valentão-zoeiro da turma com profundidade em seus atos e motivações. Mas o melhor de todos é o Kensuke, que começa como um nerd positivamente interessado nas coisas, mas se revela um invejoso discriminador quando não tem suas expectativas atendidas.

Até os anjos são bem feitos e diferentes entre si. Distintos em formato, habilidades e no como causarão dificuldades para os heróis ao longo dos episódios. Isso permite que a narrativa “robôs gigantes enfrentando monstros episódicos” não se torne repetitiva de maneira alguma, pois eles podem variar de, vá lá, peixes e humanoides enormes até buracos interdimensionais e vírus que se multiplicam. Tudo inesperado.

Neon Genesis Evangelion, em sua quase totalidade, preenche todos os requisitos de um anime perfeito. É rico em sua animação, bem detalhada, construída e certeira ao tocar a história para frente. É rico em seu roteiro, com um texto ótimo e arcos narrativos que constroem bem os personagens na trama e o universo montado. É competente nas cenas onde o drama deve imperar, fazendo o mesmo nos momentos de humor, nonsense e ação. As batalhas são intensas, os inimigos são criativos, as pequenas resoluções episódicas são certeiras. Ele casa bem conceitos artísticos mais ousados dentro de uma narrativa, sem exagerar a ponto dela se tornar maçante dentro de tais inventividades. Afinal, o lance aqui é contar uma boa história. Com um apuro técnico e uma sensibilidade artística muito maior que o esperável numa produção animada de TV (em OVAs, aí a história é outra), sim, mas isso tudo, novamente, sendo usado para contar uma boa história.

Uma pena toda essa riqueza não ser utilizada nos 2 episódios finais da série de TV. Contextualizando, à época da produção do anime, não houve verba para animar o roteiro original que daria final ao desenho. De modo a remediar isso, o autor entregou nos episódios 25 e 26 algo totalmente diferente em clima narrativo, tom e qualidade do resto da obra. Ambos são horríveis em execução. Seria compreensível o uso de cenas reaproveitadas, frames congelados e até materiais de rascunho para encher os espaços vazios, caso o roteiro fizesse algum sentido. No entanto, o que vemos na dupla final é um quase dadaísmo sem qualquer sentido, pretensioso, estranho demais e insanamente desconfortável de assistir.

Rola uma mesma fórmula neles: levar a trama para dentro da cabeça dos personagens e resolver seus arcos dramáticos através de divagações. No entanto, o modo com isso é feito é ruim demais de assistir, com repetições irritantes que se tornam piores cada vez que relembradas (“eu sou tal personagem, eu sou tal personagem pela percepção da minha cabeça, eu sou tal personagem pela percepção da cabeça de tal outros personagem” e por aí vai). A cena final, com o elenco todo dando parabéns ao Shinji (que se tornou meme), é particularmente indigesta. Essa é uma vacilada bizarra que deixa um gosto final muito amargo na boca, quase comprometendo a percepção da série toda – não é a toa que Evangelion tem tantos haters.

A boa notícia é que essa besteira dupla pode ser ignorada, visto, no ano seguinte, ter rolado um longa-metragem (The End Of Evangelion, também disponível na Netflix) que, enfim, anima o roteiro original dos episódios 25 e 26, colocando um fim à história, aí sim, coerente com o que estava sendo contado, satisfatório e divertido de assistir.

Ignorando esse empecilho, Neon Genesis Evangelion é uma obra prima. Certamente, um dos melhores animes de todos os tempos, valendo cada hype, divulgação apaixonada de fãs e toda a fama que conquistou ao longo dos anos. Icônico em ambientação, trama, personagens e execução. Certamente, vale a conferida. Ainda mais agora, na Netflix, acessível para o grande público de forma oficial.


Esse texto toma como base apenas os 26 episódios de Neon Genesis Evangelion e o longa-metragem The End Of Evangelion, que estão disponíveis oficialmente aqui no Brasil através da Netflix. Os animes foram assistidos nas versões dubladas em português do estúdio Vox Mundi, que toma como base o original em japonês. Não tenho ideia se a adaptação está melhor ou pior em comparação às duas que já rolaram aqui no Brasil utilizando a tradução norte-americana, pois não conferi as versões dos estúdios Master Sound (a que passou na Locomotion) e da Álamo (no Animax).

Isso dito, consegui entender tudo o que se passava e, como toda boa dublagem, nem percebi que estava sendo feita. A única reclamação que tenho dela foi a escolha que fizeram para a versão mais nova da Asuka, cujo sotaque era carregado demais e muito diferente do modo como a Asuka adolescente falava.


Mais sobre Neon Genesis Evangelion na Netlix: