Desde que ouvi falar da primeira Comic Con Experience (CCXP), sempre me entusiasmei com a dimensão e ousadia que o evento prometia entregar. De fato, ao longo de oito edições desde 2014 (sendo as de 2020 e 2021, virtual/online), o evento foi se estabelecendo como o maior e melhor do gênero na América Latina, redefinindo o panorama de qualidade para todos os organizadores de feiras desse nicho no país. Esse é um relato de uma pessoa que nunca tinha ido a nenhuma edição anterior deste evento, então vou analisá-lo sob diversos aspectos de minha experiência.

Se traço uma linha do tempo na memória, me lembro de ter ouvido falar pela primeira vez em convenções desta natureza no ano de 1994, quando um evento emblemático nasceu: o Comicmania — Convenção Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro. Nessa “feirinha nerd”, se destacavam alguns convidados internacionais do universo da 9ª arte e vídeo-exibições de séries que estavam em alta no período, como Arquivo X.

Com o sucesso do fenômeno Os Cavaleiros do Zodíaco na TV aberta (sempre eles no rolê, risos), o interesse do público por desenhos japoneses fez surgir vários pontos de encontro (geralmente em bibliotecas) nas grandes capitais onde os fãs se reuniam para conversar (!) e assistir fitas VHS piratas com desenhos inéditos, legendados em inglês ou sem legendas mesmo.

Esse movimento em torno da cultura pop japonesa já existia desde o fim dos anos 80 através de um grupo paulistano chamado ORCADE, mas foi a ABRADEMI (Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações) que promoveu um evento mais emblemático chamado Mangacon, no distante ano de 1996.

A evolução do Mangacon em estrutura e atrações veio com um concorrente chamado Animecon, em 1999. Com o sucesso, vários eventos do gênero proliferaram em todo canto do país no período (como o Animencontro, AnimeRio, Anime Festival e muitos, muitos outros!) mas um chegou para “arrasar o quarteirão” no ano de 2003: o Anime Friends. Com uma dimensão e atrações até então inéditas no país, o AF foi durante anos um parâmetro de qualidade nesse nicho, influenciando o surgimento de variantes que repetiam a fórmula, com leves updates ou downgrades.

Enquanto as convenções no exterior traziam uma ambiência muito mais robusta (com grandes estúdios, editoras, empresas, elenco de séries, produtos licenciados etc.), no Brasil tínhamos um grande evento com público forte que me transmitia uma sensação de organização um tanto amadora — fora a forte presença de conteúdo pirata, numa época em que algumas empresas ainda acreditavam que podia dar certo vender, por exemplo, DVD de animÊ. Repetindo sempre a mesma “fórmula” e ousando pouco no aspecto de acabamento — especialmente quando comparo com eventos tipo a ABRIN (feira do setor de brinquedos) — o que faltava no Anime Friends (do passado) era uma certa suntuosidade que o próprio público começou a questionar o porquê da produção nunca parecer se importar em entregar.

imagem: foto estande da jbc na ccxp.

Foto: Gabriel Rigamonti/JBox.

Com a explosão da cultura geek (graças, principalmente, ao universo cinematográfico da Marvel) em todo o planeta, em 2014 nasceu o que considero o novo marco na evolução nos eventos: a Comic Con Experience. Diferente do AF, que tinha no seu DNA uma valorização da cultura pop japonesa, a CCXP conseguia ser mais plural e dialogar com mais tribos. Sua motivação não era fazer um evento melhor que os que já eram realizados, mas sim trazer um modelo praticado no exterior nas gigantescas comic-cons gringas.

Deu certo.

Hoje, a CCXP é uma espécie de “Meca” para os fãs de cultura pop em geral e proporciona uma experiência imersiva para os fãs, com toda a suntuosidade que o Anime Friends sempre deixou a desejar. Empresas aprenderam mais sobre essa cultura (generalizada como “cultura geek”) e investem bilhões em licenças para inundar o mercado com produtos de diversos tipos — de um simples chaveiro emborrachado a estátuas que custam mais de 10 salários mínimos.

O desejo de consumo do brasileiro por memorabília foi crescendo na mesma velocidade que a internet banda larga e o streaming foram se estabelecendo no país. Se antes tínhamos que importar ou pedir para um parente rico que foi ao exterior trazer algum item que se conecta com nossa memória de infância, juventude ou mesmo vida adulta, agora podemos comprar qualquer coisa no shopping de nichos da cultura pop, que é a CCXP.

 

Uma experiência para poucos

imagem: boneca de round 6 em brincadeira no estande da Netflix,

Foto: Larc/JBox.

Ninguém faz evento porque é fã. Isso pode ser até o gatilho para que comitês de amigos se reúnam e lancem algo no mercado. Mas se o evento não der lucro, ele logo deixa de existir. O grande diferencial técnico da CCXP é o olhar “business” da feira, que atrai dezenas de marcas para ter seus estandes e injetar dinheiro para a coisa funcionar. É nítido como os promotores entendem do negócio e ocupam todo o espaço do São Paulo Expo com atrações lúdicas acompanhadas de uma farta distribuição de material promocional. São várias lojas e empresas com belos estandes para despertar o lado consumista do fã. Me atrevo a afirmar que é praticamente impossível ir para uma CCXP e não sair de lá com uma sacola com algo que você não necessariamente precisa ter para viver.

Isso me levou a refletir sobre o perfil de público que o evento atrai. O Anime Friends nos últimos anos consegue abrir um dia “free” que atrai muita gente de classes sociais mais baixas para seu universo (meio “contaminado” com cultura geek ao invés de exclusivamente “japonês” nos últimos anos) de consumo e diversão. Acho bacana. Já a CCXP não parece se importar com esse tipo de público e isso não é problema algum. O evento é assumidamente um negócio e essa maturidade infelizmente exclui públicos que não podem financeiramente estar ali.

Isso se conecta diretamente com a minha percepção em torno do baixo número de pessoas pretas circulando em todo o espaço do evento. Avistava um bom número como promotores em estandes, mas de consumidores eu achei um tanto desproporcional. Não venham me dizer que preto não gosta de coisa geek e prefere futebol a ver o elenco de uma série.

Em um evento caro, essa percepção apenas traduz uma realidade que uns e outros dizem que é vitimismo. Pretos têm menos poder aquisitivo, então seu dinheiro precisa ser bem administrado. E em evento com um preço absurdo para uma garrafa d’água (R$10,00), é relativamente simples enxergar a maioria do perfil de público. E olha que compreendo que espaços assim possuem preços mais elevados mesmo! Mas acho um tanto abusivo um item tão primordial custar o mesmo que uma lata de refrigerante. Bebedouros com água gratuita existiam, mas não em quantidade suficiente para evitar demoradas e desnecessárias filas.

imagem: foto do estande do prime video na CCXP.

Foto: Larc/JBox

A alimentação em si conta com um número alto de estandes mas a faixa de preço é elevada. Considerando que não existe “nada” ao redor do São Paulo Expo (onde o evento é realizado) para você “fugir”, é inevitável ter que desembolsar uma grana pra comer algo mais “substancial”. Procurando bastante até que achei coisas que valiam a pena — como um “dogão bombado” que valeu as 40 pilas investidas.

As pessoas reclamam de filas imensas, mas isso é mais que esperado em qualquer megaevento. Paciência precisa ser uma virtude bem trabalhada se você pensa em ir na próxima edição. Mas te afirmo que valerá a pena — ainda mais indo com roupas confortáveis.

Uma das atrações mais elogiadas da CCXP (e realmente digna de todos os seus elogios) é o Artist’s Valley. Os autores independentes brilham com tanta intensidade na CCXP que mereciam um evento só pra eles com B2B (“business to business”) integrado — que massa seria uma loja de departamento com camisetas licenciadas de um artista genuinamente brasileiro ao invés de uma estampa genérica sem graça do Batman. Observei que havia um álbum de figurinhas para ser completado pelos visitantes com cromos de trabalhos dos autores. Achei o máximo!

 

Nem tudo que reluz…

imagem: cosplay de defteros na ccxp 2022.

Foto: Gabriel Rigamonti/JBox.

Por mais maravilhosos e impressionantes que fossem os estandes, existe um ponto muito sensível que foge completamente da organização da CCXP: o entendimento do mercado sobre o que é relevante para o público e a maneira que esse mercado “ativa” seus conteúdos.

Começando pelo Globoplay, a única menção que vi ao sucesso de Digimon e Dragon Ball no estande da empresa foi uma vinheta em uma das telas de propaganda. Compreendo que “vender” a novela exclusiva do streaming é uma estratégia mais que óbvia, mas ignorar os conteúdos “geek-raiz” que se destacaram no serviço não me parece muito inteligente. Um painel com algum influenciador especialista ou reunir um elenco de dubladores de algum desses hits, tornaria o estande mais movimentado — provavelmente.

Tentei conversar com alguém da Amazon Prime Video no Brasil, mas a agência que estava representando-os estava mais preocupada com a presença do humorista Gabriel Lourchard fazendo brincadeiras do Comedy Central no palco. Tubos de grana foram gastos para The Boys, Senhor dos Anéis, Jack Ryan e nem um centavo para o pobre Kamen Rider Black Sun. Até parece que  o reboot do Kamen Rider Black não é uma série original deles. Será que eles sabem disso em nosso país? Não tive a oportunidade de descobrir…

Dos streamings no país, a Netflix é a que, de longe, mais entende do negócio quando o assunto é “presença em feiras”. A arena que divulgava suas obras envolvia produções de diversos países, com destaque para Round 6. Perto dela, o estande da HBO Max parecia uma caixa de sapatos com todos os tons “sombrios” das produções da DC tentando trazer alguma personalidade.

A Crunchyroll marcou presença, mas seu estande estava tímido se comparado com outros. Tudo bem que a cultura pop japonesa não é o foco do evento, mas esperava algo igual ou melhor do que no Anime Friends. Nesse ponto, a JBC entregou algo mais divertido —  mesmo em um estande mais modesto se comparado com o AF — com aquela plataforma giratória que se tornou moda nos stories do Instagram esse ano.

imagem: telão anunciando dubladores de chainsaw man no palco bentô.

Foto: Gabriel Rigamonti/JBox.

A Panini viu seus mangás evaporarem das prateleiras (acho que pelo simpático brinde do Pochita, de Chainsaw Man, que distribuíram de brinde, ou o avental de Sakamoto Days) enquanto a NewPOP deu as caras representada pela zoneada loja Comix (com seu tradicional estande destoando de tudo no evento). Senti falta de um estande da Pipoca & Nanquim, mas talvez o evento seja caro demais para uma editora que ainda tá “começando”.

O Palco Bentô era o espaço para quem queria consumir “Japão” na CCXP. O problema é que ele estava desproporcional a qualquer outro espaço mais “Geek” no evento. Já existiram em outras edições um espaço maior para cultura pop japonesa, e penso que as empresas ligadas ao assunto poderiam se fazer mais presentes. Seria maravilhoso um estande da Bandai (pulverizada em diversos produtos licenciados “escondidos” em várias lojas, como a Tamashii com a Iron Studios), Hasbro (Power Rangers) ou mesmo da VIZ em uma CCXP. Tudo bem que eles possuem mais “relação” com o Anime Friends, mas considerando que o AF ainda não tem essa pegada “tão interativa” como a CCXP…

Quase todas as lojas tinham em seu catálogo produtos licenciados de algum animê. Naruto possui um uma presença gigantesca (por isso ter a VIZ aqui vendo isso poderia ser interessante!), mas outras séries também tinham seu espaço. Ter um Funko exclusivo de One Piece (e outros animês), mostra que as empresas estão atentas ao que é sucesso quando o assunto é Japão.

imagem: foto de bonecos do naruto sendo vendidos.

Foto: Larc/JBox.

Ironicamente, a maioria dos staffs contratados para as lojas no evento não fazia muito ideia do que vendiam. Quando trocava uma ideia sobre lançamentos com alguns representantes do marketing de certas empresas, muita inconsistência era dita, me fazendo pensar como seria legal um treinamentozinho antes de participar de eventos para esse tipo de público tão específico. A sorte dessas lojas é que “as marcas vendem por si”.

Se por um lado a coisa mais “japonesa” pra se ter uma experiência era o estande do Cup Noodles da Nissin (que me pergunto até hoje por quê não lançam “miojos” com personagens de Naruto e One Piece como a gente vê nas lojinhas do bairro da Liberdade), por outro era possível sair abarrotado de memorabília de algum animê popular entrando em alguma loja. Destaque para Piticas, Iron Studios (uma das lojas com os itens mais caros do evento, mas que vendiam, ainda assim, MUITO!) e Zona Criativa — com uma linha de action figures inédita por preços bem abaixo do padrão da feira.

Não fui esperando muita cultura pop japonesa, mas confesso que senti falta de atrações mais orientais e de… Cosplayers! Juro que pensei que fosse ver muito mais cosplayers e no fim me pergunto se a prática não acabou culturalmente muito vinculada a eventos de animê ao longo da história. Uma pena.

 

Foi épico, afinal?

imagem: foto de duas pessoas brincando de lutinha no estande do cup noodles.

Foto: Gabriel Rigamonti/Larc/JBox.

Imagino que ao fim de cada edição exista um árduo trabalho para análise de resultados e pontos positivos e negativos. A mídia em geral aponta que essa edição foi morna, mas eu não tenho parâmetro algum para afirmar isso. Umas pessoas próximas me disseram que as atrações foram divulgadas muito “em cima” e por isso o evento não estava tão cheio.

Outros falaram que a Copa do Mundo atrapalhou o interesse do público no evento. Bem, acho que talvez um pouco de tudo possa ter sim influenciado no resultado final de alguma forma. Mas fiquei com a impressão de que na CCXP tudo é grandioso demais. Dos preços às filas, ao jeito de como as coisas são apresentadas, até o caos que era a hora de ir embora no fim do evento. Se foi épico? Prefiro ir em outra edição para ter certeza. Mas impressões boas não faltaram. Programa de dezembro já salvo na agenda!

Leia também:

Confira os anúncios de mangá e animê na CCXP 2022

Coluna: Participação na CCXP22 evidencia novo momento da JBC, já com ‘a cara’ da Cia das Letras

Foto da capa: Rodrigo Chinchio/Woo Magazine.

O texto presente neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.