Geralmente quando pensamos em uma dublagem “ruim”, a primeira coisa que vem à cabeça são as vozes – se são “mal interpretadas” ou “mal dirigidas”, se são dissonantes com o personagem, se soam naturais… e, sim, isso faz bastante sentido: as vozes são a principal coisa em que prestamos atenção enquanto vemos algo dublado. Mas essas não são as únicas coisas que compõem o processo, e muitos de nós acabam ignorando dois outros fatores bem importantes para ele.

O primeiro é a mixagem: o áudio das falas está baixo demais comparado com o resto do produto? Alto demais? Tem falas que foram acidentalmente deletadas nesse processo? Quando um personagem fala com um efeito na voz, o efeito é bem colocado, é usado só nas horas certas? Sim, são coisas relativamente menores, mas fazem uma enorme diferença para quem está ouvindo; afinal, dublagem é um trabalho de áudio, e se o áudio não é bem trabalhado, todo o resto é prejudicado junto.

E o segundo, e tópico desta coluna, é o texto. Ele foi bem adaptado? Soa natural? Consegue diferenciar o texto de personagens mais ou menos formais? Ele leva em consideração as pausas da interpretação japonesa? Ele é consistente, mantendo as terminologias iguais entre o episódio 1 e o episódio 150? Eu sei que tem bastante gente que não liga pra isso e diz que a dublagem de Patlabor é perfeita, mas, pra gente como eu, um texto ruim se destaca forte e horrivelmente, não importa o quão bom seja o ator lendo aquele texto.

E, se tinha uma coisa que eu adorava fazer nos fóruns de animê da era paleolítica da Internet, era apontar pra esses defeitos de texto e rir deles (eu era um adolescente, era descontrolado, não tinha limites). E agora, tantos anos depois… bom, resolvi voltar às origens nesta coluna. Vamos apontar umas “falhas de texto” (tradução, em maior parte) em dublagens de animês, rir um pouco e, no fim, aprender com elas.

Mas antes de começarmos, aviso importantíssimo: isso não é um insulto aos tradutores e adaptadores desses textos. Eu também sou tradutor e já cometi erros tão crassos quanto estes, senão piores – é um trabalho bem ingrato com prazos apertados e, em muitos casos, material de apoio de baixíssima qualidade (quando tem!). Errar é humano, e rir dos erros é humano, mas insultar quem errou é só cruel, e somos melhores que isso. Além de que, muitas vezes, a culpa é de quem está mais acima na cadeia alimentar de produção — sempre culpem eles antes de culpar quem está em baixo. Estamos entendidos? Ótimo. Bom, com qual começo…

 

O Ken?

A dublagem de Cavaleiros do Zodíaco da Gota Mágica, exibida na extinta Rede Manchete e traduzida da dublagem do espanhol latino, era bem famosa pelos seus inúmeros erros de texto (e umas trocas aleatórias de dubladores). A maioria deles eram simplesmente os dubladores errando o nome de um personagem, signo, golpe ou confundindo duas palavras parecidas (e a direção não notando)… mas, às vezes, apareciam umas coisas bem mais gritantes.

Vendo um vídeo no YouTube compilando os erros daquela dublagem, me deparei com um momento dela que me chamou bastante a atenção. Uma cena do episódio 73, o último da Saga do Santuário, em que o vilão Saga está atacando Seiya enquanto os demais Cavaleiros (e Saori) se direcionam ao palco da batalha. Durante seus ataques, Saga exclama para o cavaleiro de bronze: “Traga o ken para a ilusão e a luz!”. Oi?

Esse erro de manter a palavra “ken” (significa “soco” ou “punho”, em japonês) era bem recorrente na dublagem (e veio da versão latina, logo, não foi culpa nossa), então, até aí, “tudo bem”. Mas… “trazer para a ilusão e a luz”? Definitivamente é bem poético, mas o que raios o Cavaleiro de Gêmeos queria dizer com isso?

Primeiro eu conferi a versão japonesa só para ver qual foi a “fonte de tudo”, e, lá, a fala traduz para algo como: “Vejamos se você aguenta meus incontáveis socos na velocidade da luz”. Ah, isso explica algumas coisas, dá para ver de onde saiu o “ken” e a “luz”. Mas e o resto? Bom, a resposta devia estar na adaptação que nós adaptamos, então, por fim, conferi a versão latina dessa cena: lá, essa fala (aos meus ouvidos) era: ¡Trega la ken en la velocidade da luz!”, ou “Entregue o ken na velocidade da luz!”. Então, é, a versão latina também estava bem erradinha, a culpa foi muito dela.

Dito isso, parece que a pessoa que traduziu a nossa versão confundiu “velocidade” com “ilusão” (eram os anos 90, o áudio era péssimo), e se virou pra tentar ligar essas palavras, e o resultado deu no que deu. Ah, eu adoro aprender essas coisas, e você?

 

A mais bocuda

Pulando vários anos para frente, vamos dar uma conferida em Yu-Gi-Oh!, o animê de cartinhas do ano 2000 que sempre sofreu de vários tropeços de tradução (e nunca parou de sofrer). Dentre eles, indiscutivelmente, o meu favorito foi um que ocorreu logo no início do arco da Batalha da Cidade. O irritante duelista Weevil, antagonista da primeira temporada, voltou aqui, e, durante seu duelo contra o Joey, ele invoca sua carta marca registrada, a Grande Mariposa… só que, desta vez, com um nome novo em português: a Grande… Boca.

imagem: ilustração da carta great moth de yugioh.

Reprodução: K.

A fonte da confusão é óbvia: nós traduzimos em cima da versão americana, aparentemente, de ouvido, e a encarregada claramente confundiu “moth” (“mariposa”) com “mouth” (“boca”) – mantendo em mente que Yu-Gi-Oh! teve múltiplos tradutores no decorrer da dublagem, alguns com mais tropeços do que outros.

Dito isso, ainda é um negócio bem surreal, porque a mariposa não é mencionada só uma vez, mas sim, dezenas e mais dezenas de vezes… e, toda vez, virou “boca”, criando um episódio que parece tentar fazer um “gaslight” no telespectador, convencendo ele de que chamar um inseto de “boca” é normal e todo mundo faz. É um grande momento da TV brasileira.

E, claro, a parte mais engraçada é que tanto a tradutora quanto o diretor viam o inseto por todas essas cenas, e não acharam estranho ele se chamar “boca”. Minha teoria é que todos os envolvidos estavam naquela mentalidade de “bom, desenhos japoneses são esquisitos assim mesmo…” [nota da editora: vale a leitura de nossa entrevista de 2006 com Fernando Janson, que trabalhou na tradução da série].

 

As fotos da festa ficaram ótimas

Voltando à Toei, existe um outro erro relativamente famoso, desta vez, em seu famoso animê “mon” que deu início a toda uma longa série de animês “mon”: Digimon Adventure (“Digimon 1”, para os íntimos), de 1999. Esse se passa já no segundo episódio da história: as crianças, agora já tendo aceitado que estão bem longe de casa e que precisarão se virar sozinhas, fazem um balanceamento de quanta comida elas têm. Durante o cálculo, o mais velho do grupo, Joe, comenta na nossa dublagem que “[Nossas] rações de emergência para três dias valem uma festa. Nossa festa tem seis pessoas…”.

Espera… “festa”?

Naturalmente, comecei com a fonte, a versão japonesa, e a fala original nela traduz para algo como: “As rações de emergência geralmente duram três dias. Nosso grupo tem seis pessoas…”. OK, houve uma confusão na ordem de informações da primeira frase… mas de onde saiu essa “festa”?

Acho que os falantes do inglês dentre vocês já devem ter sacado: a palavra “party”, em inglês, significa “festa”, mas também pode significar “partido” ou “grupo”. Essa confusão não existe na palavra usada na versão original (nem na dublagem em espanhol, que eu me lembre), então, claramente, o script foi traduzido do inglês. Mas… espera, nós recebemos a versão americana de Digimon?

Não, não recebemos, nossa versão foi a japonesa mesmo. Mas ela foi traduzida a partir de “scripts internacionais” que a Toei fornece para agilizar a tradução em outros países, e eles vieram em inglês (e, às vezes, em espanhol… parece que foi uma salada doida). Aliás, na versão americana eles nem usam a palavra “party” aqui! Esses scripts da Toei também têm a fama de serem bem confusos e mal organizados — não duvidaria que essa frase também se encaixasse nesse descritivo. Daí, “festa”.

O próximo exemplo não é exatamente um erro famoso, mas é um que me marcou profundamente quando vi pela primeira vez, portanto, quero compartilhá-lo com vocês. Esse vem de InuYasha — mas não o animê, e sim, um dos quatro filmes da série, que foram dublados vários anos depois e disponibilizados em streaming por aqui.

 

Cão farejador

InuYasha: A Espada que Domina o Mundo é o terceiro filme da série, uma história expandindo o passado do pai do nosso protagonista e que conta com muita, muita ação. Em uma dessas cenas de ação, Inuyasha usa um de seus ataques, a Ferida do Vento, furtivamente no vilão do filme, que estava lutando contra o irmão do nosso protagonista, Sesshoumaru; instintivamente, Sesshoumaru se esquiva do ataque, o que faz Inuyasha, na nossa dublagem, comentar o maravilhosamente confuso: “Como sempre, farejou que o seu golpe é ainda mais ligeiro, pois estava planejando unir-se a uns irmãos”.

Essa é uma das frases mais aleatórias que eu já ouvi em uma dublagem de animê e eu fiquei mesmerizado por ela. É completamente nada a ver com nada. Ele “farejou que seu golpe é ainda mais ligeiro”? Eu sei que esses youkais cachorros têm bons olfatos, mas o que raios isso quer dizer? E que papo é esse de “unir-se a uns irmãos”? É “irmão” no sentido de “brother”? Ele ia se unir com uns “bródis” dele?

Conferir a versão japonesa revela que a fala era para ser: “O seu olfato está aguçado como sempre. Você farejou a minha Ferida do Vento, não foi?”. E… é, sinto que pra esse eu nem preciso falar nada, existe tão pouca relação entre as duas falas, é espantoso. Digo, a versão da dublagem manteve as palavras “como sempre” e, sendo bem flexível, “golpe” (já que pode se referir à Ferida do Vento). Mas, de resto? É como se tivesse sido tudo inventado. E o mais louco é que eu não achei nenhuma outra dublagem que cometeu um erro parecido nesse trecho, foi só a nossa. Sinto que vou indagar como isso aconteceu até o meu último suspiro, cara…

imagem: inuyasha com a tessaiga.

Reprodução: S.

Falando em InuYasha, uma curiosidadezinha a mais: a espada do Inuyasha, a Tessaiga, é erroneamente conhecida como “Tetsusaiga” na localização norte-americana. Isso aconteceu porque confundiram o caractere “っ”, que indica intensidade consonantal (neste caso, o “ss” de “Tessaiga”), com o “つ”, “tsu”.

Eu menciono isso porque já vi alguns brasileiros se deparando com esse “Tetsusaiga” na Internet e achando que ele que é o certo, e que foi a nossa dublagem que cometeu o erro. Só para desmentir isso, não, nós estamos certos e a galera lá de cima está errada.

 

Ser ou apenas estar

Existem também erros de tradução que são tão básicos, tão difíceis de se achar por aí, que só me deixam estupefato quando rolam. Esse foi o caso da já esquecida dublagem do já esquecido Blue Dragon, animê de 2007 adaptando o (também já esquecido) RPG da Mistwalker lançado para o Xbox 360. Entre aqueles que se lembram dela, o que mais chama atenção nela não é o texto, mas, sim, o tenebroso trabalho de dublagem realizado em Miami.

Mas o texto também existe, e conta com um dos erros mais surreais que eu já vi na vida. Logo no primeiro episódio, a vila de Shu, o protagonista da história, é atacada por robôs chefiados por forças malignas. A melhor amiga do Shu, Kluke, revela-se uma aficionada por máquinas (e robôs em particular) e fica extasiada ao ver os malignos invasores… e a primeira coisa que ela fala é:

“Estão essas coisas robôs?”

Mano.

Assim, o erro de tradução é bem óbvio até para quem só sabe o básico do inglês (Blue Dragon foi dublado em cima da versão estadunidense do animê): em inglês, os verbos “ser” e “estar” são o mesmo (to be), e a pessoa que traduziu confundiu um sentido pelo outro, usando “estar” onde devia ser “ser” (“Essas coisas são robôs?”).

Mas esse é um erro de tradução que eu jamais vi nenhum falante do português cometer. É uma coisa tão óbvia – claro que aqui seria “ser”, porque é impossível alguém “estar” robô, é uma colocação completamente absurda… a menos que você esteja se referindo a alguém estar frio e “mecânico”, mas, mesmo aí, o certo seria “robótico”. E só pelo contexto é óbvio que isso não caberia!.

E eu fico besta que isso aconteceu. Acho que um tradutor absurdamente cansado (e um pouco auxiliado por tradução automática, mesmo talvez nem tradução automática daquela época sendo capaz de um erro desses) escrever isso é plausível; digo, todos já fizemos coisas bem absurdas devido à falta de sono, não é mesmo? Eu consigo dar essa trégua. Só que depois isso passou por um diretor e uma dubladora… e ninguém pegou o erro mais óbvio do mundo? Vendo isso só consigo pensar: “Cara, Miami é inacreditável”.

 

Um castor feiticeiro

E, pra fechar, vamos a uma escolha infeliz de tradução de uma certa terminologia recorrente no animê inteiro. Fate/stay night, de 2006, foi a primeira das muitas adaptações da famosa visual novel epônima, e foi exibido dublado por aqui pelo Animax em 2009. E, mesmo eu não sendo grande fã da franquia, sou “antenado” o bastante pra saber que essa dublagem é meio infame entre os fãs — especialmente por suas escolhas de tradução.

O universo de Fate gira em torno de pessoas que firmam contratos com guerreiros sobrenaturais (“servos”), personificações de diversas figuras históricas e mitológicas, para lutar numa guerra pelo Santo Graal. No animê, esses servos não são chamados por seus nomes de verdade, mas sim, pela sua classe — por exemplo, a serva do protagonista se chama Saber, tem outro que se chama Archer, outro que se chama Lancer, e por aí vai.

A dublagem decidiu traduzir todos esses nomes de classes, o que é perfeitamente compreensível… mas as escolhas de tradução foram bem peculiares. Vão do normal, como “Sabre” para Saber e “Arqueiro” para Archer, ao bem estranho, como “Mística” para Rider e “Viking” para Berserker. É até possível defender essas escolhas com muita licença poética, mas que são bem incomuns, são.

Só que nenhum deles se compara ao exemplo ao qual quero chegar: um dos primeiros adversários que Sabre enfrenta no animê é uma moça encapuzada e usuária de magia da classe “Caster”, que, via de regra, provavelmente seria traduzido como “Feiticeira” ou “Maga” em outra instância. Ou o certo, que seria “Conjurador” (tem gente da classe Caster que nem usa magia). A nossa dublagem, contudo, resolveu optar pelo cômico, hilário, maravilhoso…

“Castor”.

Assim. Eu consigo entender (mais ou menos) que, em uma primeira sessão de brainstorming, isso poderia parecer uma boa ideia. Quando eu pensei bem nessa palavra, me lembrou que há uma vilã do universo dos super-heróis da Marvel chamada “Enchantress” que é conhecida no Brasil como “Encantor”. O primeiro reflexo mais comum seria traduzir o nome original dela como “Encantadora” ou “Feiticeira”, mas acho que quiseram optar por algo mais diferente, mais único, para a personagem – daí, Encantor. Consigo imaginar que o negócio de “Castor” nasceu nessa mesma via.

A diferença, claro, é que Encantor é 100% uma palavra inventada, enquanto que “castor” é uma palavra bem conhecida do português. Ela, na verdade, tem múltiplos significados (uma estrela da constelação de Gêmeos, um material usado na cerâmica), mas a esmagadora maioria da população brasileira associa à palavra ao animal, castor, o adorável roedor famoso por construir represas nas águas da América do Norte.

O resultado são diversas falas chamando a elegante guerreira de “castor”, sem hesitação, como se fosse um insulto ou um apelido estranhamente conhecido por todo o elenco do animê. Escolhas de terminologia são sempre as que requerem mais delicadeza — uma fala isolada como aquela loucura do filme de Inuyasha só entra e sai, é fácil de esquecer, diferente de uma escolha que é recorrente por diversos episódios (digo, lembram do “furyokú” de Shaman King 2021?)

E, agora, é hora do fim abrupto da coluna, porque acho que tá bom por hoje — eu nem dei tantos exemplos assim, mas ainda consegui passar das 2500 palavras! Talvez a gente volte a este poço numa outra coluna. E, para caso isso aconteça, é claro que eu preciso perguntar: tem algum erro de tradução que você sente que DEVIA estar nesta coluna? Seu favorito, o mais engraçado, o mais absurdo? Alguma terminologia que você acha que ficou muito “off” na dublagem? Sejam educados nos comentários (releiam o aviso no começo!) e nos vemos na próxima!

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