Gosto bastante de um texto publicado pelo jornalista Leonardo Sakamoto, em seu blog no Uol, em 2017, intitulado “O inimigo não é quem pensa diferente de você, mas quem não pensa” (leia completo aqui). Nele, há uma meditação a respeito da desumanização de pessoas cujas ideias não são condizentes com as que acreditamos, alertando para os perigos disso, comumente caminhando para a violência, censura e fascismo. Abaixo, alguns trechos:

O inimigo não é quem pensa diferente de você, tem outra ideologia, outra identidade, outra vida. Mas quem não pensa e, a partir desse vazio, ataca a existência de tudo à sua volta que não lhe faz sentido. O seu inimigo não é seu adversário político ou econômico, mas quem repete mantras violentos que lê na internet, ouve em bares ou vê em certas igrejas e não para para pensar qual a origem daquilo e a quem interessa que esse discurso seja assim. É quem promove um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando o outro uma coisa sem sentimentos e, ao fim, pede sua extinção.

Ou, pior: o inimigo é quem terceiriza o pensamento para grupos que manipulam a massa em nome de seus interesses. Massa que, por conta disso, é facilmente conduzida, achando que está em uma cruzada civilizatória. Quando, na verdade, é apenas gado. (…)

Essa violência significa a negação da política, a negação da arena pública em que problemas e divergências são expostos, debatidos e resolvidos, conciliados ou tolerados. Evitando, dessa forma, que nos devoremos. E não estou falando daquela negação da política que é apenas estratégia de comunicação de campanha de políticos que se dizem não-políticos e vendem um discurso extremamente ideologizado travestido de não-ideológico. Mas sim da negação como destruição. (…)

Há aqueles que se utilizam da justificativa da discussão política para poder extravasar seu desejo por sangue e demonstrar toda sua incapacidade de sentir essa empatia pelo semelhante e sua incompreensão com o mundo. Que se sentem confortáveis ao vomitar suas verdades, tachando de “mentira” ou “mal” tudo o que for contra elas. (…)


Em tempos onde a separação entre “nós” e “eles” tem se mostrado cada vez mais tóxica, com discursos de ódio gerando resultados desastrosos não só nacionalmente, mas mundialmente, é interessante que todos façamos o exercício de humanizar aqueles que estão por trás de opiniões político sociais das quais não compartilhamos, lhes atribuindo todo o leque de sentimentos, particularidades, subjetividades e “porquês” que entendemos interferirem em nossas próprias maneiras de pensar. E enquanto isso pode parecer demasiadamente complicado de colocar em prática na vida real, no 9º episódio do anime Radiant, “Aqueles que Caçam Hereges”, disponível na Crunchyroll (assista aqui), é possível observar como, através de roteiro, texto e subtexto, isso pôde ser executado dentro de uma série onde o pano de fundo do tema principal é, basicamente, fascismo.

Radiant é a adaptação japonesa animada do mangá francês Radiante, em publicação desde 2013, escrito pelo autor Tony Valente. Exibida entre outubro do ano passado e fevereiro de 2019 (1ª temporada), ela é produzida pelo estúdio Lerche (Persona 4, Assassination Classroom), com direção de Seiji Kishi, Daisei Fukuoka e roteiro de Makoto Uezu.

Se passando num mundo onde as pessoas, aparentemente, vivem nos céus, a mercê do ataque de Nemesis, criaturas bestiais que surgem de ovos vindos do alto, temos aqui a história de Seth, um jovem que sonha se tornar um grande feiticeiro. Feiticeiros são seres humanos que, ao sobreviverem ao contato com Nemesis, se tornam “amaldiçoados”, sofrendo mutações e adquirindo capacidades mágicas, o que faz com que sejam vistos como párias perante o resto da sociedade, apanhando com preconceitos no dia a dia, fato justificado ainda pelo aparato governamental, que institucionaliza essa segregação através da atuação dos “Inquisitores”, que caçam, prendem e executam feiticeiros considerados potencialmente perigosos – de acordo com parâmetros totalmente particulares dentro de suas crenças.

Inicialmente, a série é bem clara ao “tomar um partido” nessa história. No caso, o lado dos feiticeiros, já que é nele que está seu protagonista. Uma boa parte dos episódios iniciais mostra o quão dura e injusta é a vida deles: um amigo de Seth é proibido pelo pai de se aproximar dele, pois é visto como o garoto problema daquele local, além de correr uma lenda de que, ao tocar num feiticeiro, um humano é amaldiçoado; ele é quase linchado após um acontecimento que perturbou a paz da cidade; um casal de vendedores se recusa a vender itens num mercado para a mestra/mãe de Seth, pois acreditam que ela é uma criatura perversa que sequestra crianças para rituais demoníacos; essa mesma mestra é brutalmente agredida quando resolve o problema que estava perturbando aquele vilarejo, precisando engolir aquilo a seco, pois as consequências seriam piores caso os moradores invocassem os Inquisitores; Inquisitores esses que, mais tarde, prendem Seth sem que o mesmo tenha cometido qualquer infração, apenas por ele ser um feiticeiro.

E o olhar dos humanos “normais” para os feiticeiros se torna ainda ligeiramente hipócrita por, quando surgem as já citadas bestas Nemesis, serem eles os necessários para destruí-las, visto já estarem, de qualquer forma, amaldiçoados pelo contato. A típica relação “só aceitamos quando precisamos deles”, vista em um sem números de sociedades onde há uma divisão de castas. Mesmo quando feiticeiros bandidos aparecem na história, cometendo crimes e fazendo o mal, o mesmo é justificado como um resultado, uma consequência de tudo de ruim que a sociedade lhes mostrou a vida inteira, como um caminho de “troco” quase aceitável e inevitável.

Até aí, é nítida a estrada que o anime parece querer levar o espectador: os feiticeiros são reprimidos pelo regime vigente, precisando resistir, de diferentes modos, à violência daqueles que os enxergam como não-humanos – o que, para aqueles que assistem, é um absurdo, já que, episódio a episódio, vemos o contrário, vemos os feiticeiros sendo humanizados em incontáveis situações. É o combate ao ideal fascista que reina durante a narrativa. Então, é surpreendente quando, no dito 9º episódio, o anime toma uma decisão que pode mudar os rumos da história: humanizar aqueles que estão do lado repressor.

“Aqueles que Caçam Hereges” coloca como protagonista um novo recruta da Inquisição, servindo no navio alado do Capitão Dragunov, o mesmo que prendeu Seth e que, até então, só havia sido retratado como vilão. Sendo novo naquela tripulação, o rapaz vê com desconfiança as atitudes tomadas por Dragunov, bem menos aficionado pelo trabalho e pelo ideal eugenista de “limpeza” de feiticeiros do que ele imaginava alguém tão conhecido nesse meio ser. Dragunov, segundo ele, não se comporta dentro da idealização que ele havia montado antes em sua cabeça. Para completar, ele também não entende o porquê da alta fidelidade demonstrada pelo resto da tripulação perante seu Capitão, que os tratava quase como iguais, inclusive pescando e cozinhando as refeições de todos.

Como alguém que não desperta medo através de comportamentos sanguinários pode liderar um pequeno exército? O recruta se sente frustrado por fazer parte daquilo, por precisar servir a alguém que não compartilha tão fortemente seus desejos, aparentemente, extremistas.

Conforme o episódio vai passando, não só essa primeira impressão quanto ao Dragunov começa a ser mudada na cabeça do recruta, como os pensamentos cegos de gado nos quais ele foi programado começam a ser desconstruídos. E isso ocorre não só através de seu contato maior com o superior e os demais soldados, mas com a adição de um outro componente na história: um personagem que, embora atenda aos ideais visado pelo recruta, acaba por extrapolá-los de forma que, mesmo dentro dessa crença, a situação acabe sendo vista como exagerada.

O Capitão Edmund teve seu navio atacado por um grande Nemesis, que não só quase o destruiu, mas também feriu gravemente boa parte de sua tripulação. A missão do dia para a tropa do Dragunov é consertar os estragos causados pelo embate, para ajudar os soldados companheiros. O recruta, então, se admira com a ferocidade e competência de Edmund, cujo porão está lotado de supostos feiticeiros capturados, enjaulados ali como animais.

Porém, parte dessa magia se esvai quando o velho – e outrora tão corajoso – capitão, ao perceber que o gigantesco nemesis que o derrotou está indo para uma ilha habitada (pois seus desejos de destruição são atraídos por grandes multidões), decide ignorar esse fato, explicando que não lhe faz sentido entrar numa batalha contra uma criatura que ele sabe não poder derrotar apenas para salvar a vida de outros humanos. Isso é confrontado por Dragunov, que entende que sua missão, muito além de caçar feiticeiros que podem fazer mal à humanidade, está em defende-la de todo e qualquer perigo iminente, indo com sua tropa para deter a besta alada.

O ponto final está no retorno de Dragunov com seus homens, resolvendo deter o grupo de Edmund ao constatar que aquelas várias pessoas presas nos porões, na verdade, não eram feiticeiras, sim seres humanos não amaldiçoados, detidos ali injustamente – sendo uma alegoria ao exagero de poder do autoritarismo, pintando como “inimigo” aqueles que lhes convém, sejam lá quais situações seus parâmetros decidirem (comunistas, vermelhos, judeus, hereges, bruxas etc., é só escolher o contexto).

Com isso, Radiant utiliza todo um episódio de modo a mostrar que, acima de ideias, existem humanos em diferentes lados. Que é preciso entender que a redução de pessoas a “coisas” é perigosa. Que existe toda uma complexidade em tal realidade que demanda mais que violência para ser entendida. O ideal quase eugenista pregado pelos Inquisitores ainda é ruim, mas as pessoas que o seguem, por diferentes motivações ao longo de suas vidas, são levadas a acreditar que eles são bons. Ao humanizar esses vilões, o anime pode visar abrir a cabeça dos espectadores, assinalando que talvez esse pensamento seja o inimigo real, não os cidadãos que foram levados a acreditar nele.

Complicado, mas interessante. Ainda mais para uma série assumidamente farofa, cujo foco principal está no entretenimento escapista para o grande público. E ainda há quem diga que não há profundidade em shonens.


Todos os episódios de Radiant estão oficialmente disponíveis com legendas em português através da Crunchyroll (aqui).