Completando 10 aninhos, Puella Magi Madoka Magica (ou Mahou Shoujo Madoka Magica) estreou em 2011 fazendo muito barulho com o público otaku, dando espaço para uma série de outras animações com garotas mágicas e uma pegada mais “dark”. Chegando na Netflix, apenas com legendas, alguns anos depois, a série atingiu um público ainda maior, e foi sem dúvidas o mahou shoujo mais… maduro, digamos, de muitos.

Isso popularizou a noção de que Madoka seria uma espécie de reinvenção da roda, uma desconstrução do gênero “garotas mágicas”. Mas será isso mesmo? Esse é o assunto da coluna Café & Matchá desta semana, mas já adianto que discordo.


Primeiramente, para sabermos se Madoka é desconstrução de gênero precisamos entender o que exatamente é desconstrução de gênero. Aqui, irei utilizar o provavelmente nada científico conceito descrito no site TV Tropes: desconstrução, na ficção, é quando se desmonta clichês de forma a mostrar suas contradições inerentes, comumente comparando como tal clichê aparece na obra em questão em relação a outros clichês ou ideias.

Imagem: Madoka, seu pai e seu irmão acenando, dando tchau para a mãr (que foi trabalhar).

Reprodução: Aniplex.

Um dos jeitos mais comuns de fazer isso, ainda segundo o TV Tropes, é por meio da conexão com a realidade: “qual seria o impacto disso no mundo real?”.

Um exemplo dado pelo texto é Dungeons & Dragons: quando um clérigo atinge o nível 50, ganha a habilidade de criar água e comida. Uma desconstrução provavelmente exploraria como a sociedade reagiria a isso, algo normalmente ignorado.

A descrição ainda ressalta que, apesar de muitas vezes tornar uma obra mais pesada e cínica, isso não é obrigatório.

Também esclarece que ser sombrio, pesado ou realista não é, per se, desconstruir. Por fim, a desconstrução de gênero narrativo, nosso assunto específico, é quando se aplica tudo isso a um gênero, um conjunto de clichês. Aqui, ainda adicionam que o gênero todo muda para sempre pois leva à reconstrução.

Em suma, a descrição coloca a desconstrução como uma espécie de comentário produtivo sobre o gênero. E é exatamente isso que Madoka não faz — e não há nada errado em não fazer. O que a série faz é articular os clichês de uma forma diferente, conectando coisas que, “tradicionalmente”, não teriam esse tipo vínculo, como a relação entre garotas mágicas e bruxas.

Apesar de trazer consequências para elementos que, muitas vezes, não têm consequências, os dispositivos utilizandos para montar todo o cenário não fazem comentários sobre o gênero, não questionam os clichês em si, apenas dão uma roupagem diferente para eles. Isso não é uma desconstrução, é uma subversão.

Imagem: Homura com sangue na cara em 'Rebellion'.

Reprodução: Aniplex.

Subversão é quando um clichê é colocado de forma diferente do esperado pela audiência.

Para tanto, são necessárias duas coisas: criar uma expectativa de que algo vai seguir da forma usual, e aí quebrar essa expectativa, trazendo um “resultado final” totalmente diferente do esperado.

Madoka passa 2,9 episódios ambientando uma trama de um jeito extremamente clichê e batido (e chato, muito chato!), apenas para chocar o espectador ao final do 3º episódio com uma mudança de tom que só tem graça se todo mundo for pego desprevinido.

Depois disso, a trama segue brincando com as expectativas. Quem lembra daquelas piadas de que passamos a série inteira esperando a Madoka virar uma garota mágica, mas quando isso está prestes a acontecer, começamos a torcer contra? A série é montada toda na ideia de tentar subverter expectativas a todo momento.

Madoka sabe introduzir muito bem uma roupagem mais “sombria” em uma trama aparentemente simples e boba, talvez a capacidade de subversão seja um de seus maiores méritos, pois chega um ponto em que já não se sabe mais o que esperar. Um final que, de outro modo, talvez parecesse injusto se torna uma conclusão até um tanto acalentadora (considerando apenas a série para TV, o final do Rebellion é outra conversa).

Em outras palavras, a obra tem muitas qualidades, entre elas, a habilidade de trair o espectador — particularmente, está entre as minhas séries favoritas. Porém, descontruir gênero não está entre elas e não ser uma “grande desconstrução do gênero” também não é demérito algum.

A confusão parece ter relação com 3 fatores:

  1. Madoka atingiu em peso um público fora do nicho de garotas mágicas;
  2. Existe uma grande confusão sobre o conceito de “desconstrução” num geral;
  3. A série apresenta uma intertextualidade divertida com o gênero.

Acredito que os pontos 1 e 2 sejam fáceis de entender, mas vou me ater um pouco mais ao terceiro: a trama explica como funcionaria o “sistema” das garotas mágicas desde a Antiguidade, fazendo referência inclusive a figuras históricas. Com isso, a série brinca com a suposição “e se todas as histórias de mahou shoujo se encaixassem nisso?”.

Imagem: Sayaka lutando contra a bruxa Elsa Maria em 'Madoka'.

Reprodução: Aniplex.

Apesar de fazer um paralelo com a realidade e conversar com o gênero num geral, a obra não trata das contradições, apenas cria suas próprias explicações para elementos que, para muitos, simplesmente estariam dados na história, sem necessidade de maior detalhamento — contudo, não é também a primeira série a criar significados para esses elementos.

E nem mesmo é a primeira a trabalhar com uma trama mais “madura”, embora, talvez, seja a primeira para muitos espectadores.

Aliás, na realidade, antes mesmo de Sailor Moon, não faltavam histórias de garotas mágicas com eventos e finais pouco felizes (afinal, uma das pioneiras na moda de reencarnar depois de morrer atropelado por um caminhão foi a Minky Momo, na década de 1980… tome essa, Urameshi!).

Inclusive, a própria trama de Sailor Moon não é lá muito “flores” assim. Claro, não é o drama mais pesado do mundo, mas também passa longe da Terra de Oz. Aliás, se pensarmos bem, Sailor Moon, que deveria ser a referência de muitos ao assistir Madoka, também não é exatamente clichê… porque na época não exisitam séries de garotas mágicas como essa.

A obra de Naoko Takeuchi é o marco de um “novo modelo” do mahou shoujo, trazendo, principalmente, a dinâmica de grupo em um esquema meio tokusatsu (que a Toei amou desde então). Pode ser clichê em outros aspectos, mas não naqueles que ela própria inventou os parâmetros.

Imagem: Madoka segurando o 'Kyubey'.

Reprodução: Aniplex.

Enfim, saindo dessa digressão, os clichês em Madoka funcionam perfeitamente como em qualquer outra série “comum” da garotas mágicas, apenas recebem uma roupagem mais “sombria”, com retoques de intertextualidade, e algumas mortes inesperadas ao longo do caminho (e choro, muito choro, inclusive de quem assiste).

Respondendo de forma mais clara: Madoka não é desconstrução de garotas mágicas. Independente de serem as almas das garotas, as Soul Gems funcionam do mesmo jeito que em outras séries, a luta contra as bruxas em prol da proteção da humanidade também e por assim vai.

A série não mexe de verdade nos clichês que estruturam o gênero, apenas pinta as paredes de uma cor diferente. Apesar de subverter expectativas, é, no fim das contas, um mahou shoujo como qualquer outro… só que com um mascote psicopata (literalmente, saído de uma página do CID ou DSM) servindo de antagonista.


O texto presente nesta coluna é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.