Digimon é uma propriedade intelectual bem querida no Japão, aqui no Brasil e em outros países. O desenho é um recorte perfeito do zeitgeist da virada do milênio, uma junção do furor digital, da popularização da internet, e da febre “mon” ocasionada por Pokémon. E embora outras séries tenham sido boladas com elementos desse universo nos anos seguintes, a animação primeirona, Digimon Adventure, de 1999, com seus oito protagonistas, certamente tem um lugar cativo na cultura pop.

Não à toa, sempre que possível, a história desses personagens é revisitada em novas produções. Uma foi menos divertida do que poderia: Digimon Adventure Tri., série de filmes lançada entre 2015 e 2018, em comemoração aos 15 anos do animê, que traz uma nova aventura com Taichi e os outros no Ensino Médio. Outra, foi impecável: Digimon Adventure: Last Evolution Kizuna, de 2020, filme comemorativo de 20 anos, com os digiescolhidos, agora, chegando à vida adulta. E ainda outra foi desprezível: Digimon Adventure: (o “Dois Pontos”), também de 2020, também de aniversário de duas décadas, mas que cria uma nova história (que sai de lugar nenhum para chegar a lugar algum) com os mesmos personagens.

A mais nova peça nesse jogo de nostalgia é o novo filme Digimon Adventure 02: O Início. Sequência direta de Kizuna, o longa traz de volta a direção de Tomohisa Taguchi e o roteiro de Akatsuki Yamatoya. Contudo, em vez de seguir o nível de qualidade do filme anterior (possivelmente, o melhor negócio já feito com a marca), O Início se equipara com “Dois Pontos” (possivelmente, o pior negócio já feito com a marca).

Há dois grandes problemas em O Início. Um deles é “objetivo”. Como filme, ele é ruim, é mal dirigido, com um roteiro esquisito e decisões narrativas pobríssimas. O outro é “afetivo”. Seu enredo, ao tentar justificar de modo mais racional uma premissa básica de Digimon, calha por minar parte da magia que envolve a série, e seu desfecho, basicamente, mata qualquer chance de continuação coerente dali em diante. Essa é uma crítica com spoilers, então se não quiser ter as surpresas estragadas, vá ao cinema assistir e volte aqui depois.

imagem: aviso de alerta de spoiler.

Na trama, dois anos após os eventos ocorridos em Kizuna, um digiovo gigante surge no topo da Torre de Tóquio. Isso causa um temor social, com a população mundial, após tantos problemas envolvendo digimons no mundo real, especulando o que de ruim pode sair dali. Em dado dia, um jovem com um digivice é visto tentando escalar a torre. Seu nome é Rui Owada, e ele alega ser o primeiro digiescolhido em todos. E o digiovo no céu seria de sua parceira, Ukkomon.

Então, os digiescolhidos da geração Zero Dois, Davis, Ken, Yolei, Cody, TK e Kari, vão de encontro ao suposto veterano para saber o que está acontecendo. Ele conta, temos flashbacks do passado, uma luta onde não há um antagonista real, e o filme acaba.

Mas vamos por partes. Rui tem um passado bem ruim. Quando tinha dos seus três para quatro anos, seu pai sofria de uma doença grave, e aparentemente estava em coma dentro de casa, sendo mantido por uma máquina de oxigênio em seu quarto minúsculo. Sua mãe era extremamente violenta, espancando o garoto até que ele ficasse com marcas roxas pelo corpo, e o castigando de maneira cruel por ele frequentemente urinar nas calças.

Em um desses castigos, na noite em que ele completaria 4 anos de idade (ou 1 ano, já que ele nascera no dia 29 e fevereiro), a mãe obriga ele a ficar sem roupa, molhado, na neve. Quando o moleque está prestes a morrer, um digiovo aparece na sua frente, e dele sai a Ukkomon, uma espécie de digimon deus com a habilidade de moldar a realidade. Ela o salva da hipotermia e, de aniversário, transforma a vida de Rui no que ele gostaria que fosse.

imagem: o ukkomon em cena.

Ukkomon | Imagem: Paris Filmes

Agora, seu pai está curado. Sua mãe passa a amá-lo. Quando ele vai para a escola, não sofre na mão de valentões. Mesmo acidentes que poderiam tirar sua vida, como um atropelamento, é interrompido pela digimon. Em seu aniversário de oito anos (ou seu “segundo” aniversário), Rui ainda não tem tantos amigos, de modo que sua festa tem apenas seus pais e alguns poucos vizinhos. Ukkomon, então, decide que, dali em diante, fará com que outras crianças iguais a Rui (digiescolhidos) apareçam no mundo.

Mais alguns anos se passam e a população toma conhecimento dos digimons, dos digiescolhidos e das batalhas que vêm ocorrendo nesse meio tempo (coloquem eventos como a vinda do bando do Myotismon pro Japão e os embates com o Diaboromon na conta). Rui se assusta com a ideia de que digimons e crianças estão sendo colocados em perigo com essas batalhas e se revolta com Ukkomon. Nisso, ele descobre também que sua vida, na verdade, estava sendo moldada para que ele fosse feliz, com seus pais sendo fantoches controlados pelos poderes da digideusa.

Num ato de revolta, ele decide destruir seu digivice com um taco de beisebol, mas o aparelho acaba voando em seu olho e o machucando. Ukkomon, então, retira seu próprio olho e o implanta em Rui. O garoto, ainda mais revoltado, ataca a parceira digimon, que literalmente derrete ao perceber que é odiada pelo seu digiescolhido.

Voltamos ao presente. Novamente, Rui está prestes a fazer aniversário em ano bissexto. Ukkomon retorna, ainda mais poderosa, para tentar, outra vez, “trazer amigos ao Rui”, se transformando em uma árvore gigante com um digiovo para cada pessoa do planeta. Agora, todo mundo será digiescolhido, todos serão iguais ao Rui.

Só que isso pode desencadear grandes problemas. O filme não diz quais, mas diz que é ruim. Então, os digiescolhidos precisam fazer com que Rui converse com Ukkomon e isso seja impedido. Mas há ainda outro problema: se foi a deusa quem criou a relação entre digimons e digiescolhidos, se ela for destruída, isso acabará? Possivelmente não, já que ela já havia sido destruída anos antes e nada aconteceu, mas o filme trata isso como um eventual problema.

imagem: cena com digivice e o texto "que todos deste mundo tenham amigos. que cada um tenha um digimon".

Imagem: Paris Filmes

Um pouco de lore é necessário aqui. Digimon é uma dessas propriedades intelectuais que é tão grande, com tantos braços diferentes que podem ou não conversar entre si, que tem horas que é necessária uma bula para entender o que acontece.

Há informações que vem de materiais extras (novels, mangás, CDs com audiodramas), de descrições de cartas TCG, de enredos de jogos (por exemplo, Digimon Adventure Zero Dois, na verdade, em vez de ser uma continuação direta de Digimon Adventure, é uma sequência para alguns jogos da franquia lançados pro videogame WonderSwan, da Bandai).

Mas tendo assistido aos primeiros animês, e com as informações que são passadas no filme, podemos entender o que deve ser entendido. Pense que, inicialmente, o tempo no Digimundo passa de forma bem mais rápida que na Terra. Quando Taichi é enviado de volta para casa, ele descobre que poucas horas se passaram desde a manhã na qual eles foram enviados do acampamento para a Ilha Arquivo. E quando ele retorna ao Digimundo, meses se passaram.

Posto isso, é entendível que a Ukkomon possa ter vindo para a Terra enquanto o Digimundo ainda vivia sua antiguidade, e que, por ela ser uma divindade, foi justamente ela criar essa conexão entre digimons e digiescolhidos que modificou toda a história do Digimundo.

Rui foi o primeiro digiescolhido, mas não foi ao digimundo. Mais pra frente, rolaram as gerações de digiescolhidos que deram origem aos deuses protetores daquele lugar eras depois, assim como a dos que enfrentaram o Apocalymon. E milênios depois no digimundo, mas coisa de poucos anos na Terra, a turma de Taichi foi ao digimundo, e as consequências dos atos deles juntaram os tempos dos dois lugares.

O ato da Ukkomon, então, serve como uma resposta racional dentro das próprias regras criadas no animê para justificar uma cosmologia que une os dois mundos. E aí, fica aquela questão filosófica de as coisas acontecerem pelo destino, pelos atos de deuses, ou pela interferência das pessoas em seus livres-arbítrios. Por mais que a criação de digiescolhidos tenha sido arbitrária, o que há de verdadeiro ou não nessas relações com digimons? É algo que fica no ar, porque o filme não se presta a desenvolver isso de verdade.

imagem: cena do filme.

Ken e Davis fundem seus digimons. | Imagem: Paris Filmes

A ideia é interessante, mas fica a impressão de que não conseguiram criar uma história minimamente cativante a partir disso. Esse é apenas um de muitos erros no filme. Há problemas de montagem. Por exemplo, logo no início, os digiescolhidos do Zero Dois estão reunidos na casa de lámen onde o Davis trabalha, assistindo ao Rui subindo a Torre de Tóquio pela TV. O garoto cai antes de chegar ao topo, e dá tempo de todos eles saírem de lá, irem até o local, do Ken digievoluir o Wormmon para Stingmon e salvar o moleque antes dele se espatifar no chão.

Há problemas com repetições. Quando eles salvam o Rui de cair, por sabe-se lá o motivo, são abordados pela polícia, mas conseguem fugir (não pergunte como, pois o filme não mostra). Num outro segmento, mais para frente, ele retornam à Torre de Tóquio para levar o Rui para o digiovo gigante. Novamente, são abordados pela polícia. Novamente, fogem sem o filme mostrar como.

Há problemas com a escrita dos personagens. Com exceção da Yolei, que alterna entre registros mais sérios e mais debochados dependendo de com quem seja suas interações, e do Patamon, que mantém sua burrice adorável, todos os outros são cartolinas sem qualquer tridimensionalidade. Davis é um caos infantilizado, que parece não ter amadurecido nada com os anos. E os outros parecem todos iguais em tom e falas, sequer dá para diferenciar subjetividades ali. E é como se quem fez o roteiro sequer conhecesse os personagens. Tem um diálogo particularmente bizarro. Após o Rui contar que a Ukkomon escravizava seus pais, a Kari diz que a vítima, na verdade, é a Ukkomon.

Há problemas com o próprio “contar” da história. Tudo é limitado demais. Como dito, em resumo, é uma sequência de flashbacks, junto de uma sequência de conversas com os personagens parados. Não há uma escala. Não vemos quais as consequências da aparição daquele digiovo gigante no meio da cidade com os moradores além de takes repetitivos de gente filmando com o celular. Não há perigo de verdade, não há urgência.

Mesmo a sequência final não tem sentido. Rui se resolve com Ukkomon, mas ele retorna e diz que, ainda assim, os digiescolhidos precisam atacar ela e destruí-la. E nem é uma luta de verdade, pois eles lidam apenas com tentáculos que saem daquela “vagina” gigante que está parindo digiovos. Sem um antagonista, parece apenas perfumaria para assistirmos às sequências de digievoluções e às técnicas dos digimons sendo utilizadas.

Há problemas inclusive com a dublagem brasileira. A Ukkomon, tratada no feminino na maior parte do tempo, é tratada no masculino no final da rodagem.

imagem: cena do filme.

Imagem: Paris Filmes

Nenhuma das questões mais profundas que são apresentadas pelo roteiro têm resposta. A conexão entre digiescolhidos e digimons é artificial ou realmente existe? Não importa ao filme. Enfrentar a deusa que criou essa conexão para impedir que ela transforme a todos humanos da Terra em digiescolhidos é realmente certo, já que isso pode não só encerrar a parceria deles ali com seus digimons, mas também a parceria de mais de 60 mil digiescolhidos ao redor do mundo que não têm nada a ver com isso? Os personagens não chegam a uma conclusão, só vão. Por que mesmo não é correto deixar todos terem seus parceiros digimons? Isso não é egoísmo dos digiescolhidos, não é um senso de exclusividade de poder ganancioso por parte deles? Fica para a imaginação.

E aí, vem o desfecho que é uma pá de cal. Com a Ukkomon derrotada (mas, como todo digimon, retornando num digiovo), os digivices de todos os digiescolhidos desaparecem. Ou seja, embora digimons ainda possam vir à Terra, essa conexão com os digiescolhidos que lhes dão poder para enfrentar os inimigos já não existirá mais. Isso significa que, dali em diante, não surgirão novos vilões no digimundo e na Terra? E por que só agora isso aconteceu, já que a Ukkomon já havia morrido antes e os digivices seguiram existindo? De novo, fica para a imaginação.

Digimon Adventure 02: O Início é um desastre. Como experiência cinematográfica, tem mais buracos que o peito do Leomon. E como uma expansão dentro da franquia, é um final que mata boa parte da magia da obra.

Diferente de pessoas mais protetoras com as coisas que acompanham há muito tempo, defendo que não existe problema algum em chacoalhar regras, mudar o status quo, levar as obras para outros caminhos. Kizuna faz isso muito bem ao tratar o desaparecimento dos digimons como uma parábola ao fim da infância (o que contradiz o final de Zero Dois). O problema é quando isso é feito porcamente.


Digimon Adventure 02: O Início está em cartaz nos cinemas no momento de publicação desta crítica, com distribuição da Paris Filmes. O texto foi produzido de forma independente, sem envolvimento de cabine de imprensa.


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.