26 de maio de 2017. Roberto Schwarz abria o evento de homenagem a Antonio Candido, que havia falecido no dia 12 do mesmo mês, com uma fala apoteótica a respeito do legado deixado pelo professor e crítico literário. “A morte de Antonio Candido mexeu com as pessoas” – foi assim que Schwarz iniciou o que seria o mais belo discurso que poderia ter feito em memória de um dos mais brilhantes estudiosos da cultura brasileira. Parafraseando o autor de Um mestre na periferia do capitalismo, digo que a morte de João Gilberto mexeu com as pessoas. Comigo, mexeu muito.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, o sol da música brasileira, foi o responsável por modernizar o que se conhece hoje como canção popular comercial – brasileira – num momento chave do desenvolvimento do país: o final da década de 50. Nosso leitor deve estar se perguntando por que um site como o JBox, cuja atenção é voltada para assuntos relacionados à chamada cultura pop japonesa, como animes e mangás, dedicaria um texto ao músico que nos deixou no último dia 6. A resposta é mais simples do que parece. Isto porque o característico canto baixinho e a inovadora batida do violão, que reduziu a escola de samba a quatro dedos da mão direita e foi inaugurado no seu primeiro LP (Chega de Saudade, 1959), não conquistou apenas a admiração da juventude brasileira do período JK (já saturada das letras carregadas acerca do fracasso amoroso que davam o tom ao gênero que antecedeu a bossa nova, nas rádios, o samba-canção): alçou voo muito maior ao iniciar o que seria a mais significativa reorganização da música brasileira e que, além do grande sucesso atingido nos EUA, país em que João viveu uma parte importante de sua vida, entre 1962 e 1979, chegaria ao Japão como objeto de grande prestígio, assim como ocorreu em todo canto do mundo.

Reprodução: Arquivo / Estadão Conteúdo

Depois do Brasil, estima-se que o Japão é o país que mais consome música brasileira. A falta de dados precisos acerca da venda de discos nos impossibilita de afirmar, no entanto, que a bossa nova, rótulo comercial pelo qual a obra de João Gilberto é conhecida por inaugurar (embora o próprio João tenha preferido chamar de samba a sua música), tenha sido um sucesso absoluto no distante arquipélago japonês.

Entretanto, invés das cifras que teriam sido levantadas com os LPs e CDs do cantor e compositor de Juazeiro, prefiro outros números que considero mais significativos: 2 e 5. Porque foi numa turnê, na Terra do Sol Nascente, que o nosso João encantou milhares de japoneses que foram assistir aos seus shows, em 2003. E em um deles, em 12 de setembro daquele ano, o expoente maior da música brasileira recebeu, ao fim da performance costumeira (apenas voz e violão), cerca de 25 minutos de aplausos da plateia, sendo, provavelmente, uma das apresentações mais ovacionadas da história. O show resultaria ainda num material precioso: o disco In Tokyo, lançado em 2004, que chegou ao Brasil pela Universal Music e eternizou o que é, até então, a última gravação (em álbum) inédita de João Gilberto.

João Gilberto voltaria ao Japão outras vezes – sempre recebido com casa cheia. Em novembro de 2006, duas apresentações renderiam, ainda, outro marco na sua obra: a última gravação, dessa vez em blu-ray, lançada em vida, em maio do presente ano. No Brasil, no entanto, não há previsão para a chegada do material, que reúne clássicos como “Ligia” (Antonio Carlos Jobim), “Corcovado” (Antonio Carlos Jobim), “Águas de Março” (Antonio Carlos Jobim), “Garota de Ipanema” (Antonio Carlos Jobim), “Chega de Saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), “Bim Bom” (João Gilberto), “Samba da Minha Terra” (Dorival Caymmi), “Desafinado“(Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça) e tantas outras canções sublimadas pela voz e pelo violão de João.

A música de João é um tesouro para o mundo. Bach, Mozart e Chopin deixaram as suas partituras escritas, e, por isso, milhões de pessoas podem interpretar perfeitamente suas obras. João vai deixar suas músicas gravadas e prontas, mas quem será capaz de tocar e cantar exatamente como ele faz? Quero que seu trabalho seja eterno Hideki Nakajima, autor de João Gilberto Complete Transcription.

https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=-LKPKIeA1No

E qual seria o motivo para um país de cultura tão distinta da nossa, fundado numa tradição de outra ordem, isto é, uma tradição pertencente ao lado oriental do globo, com todas as especificidades decorrentes da sua formação enquanto país e nação, portanto, gostar tanto da nossa música a ponto de um dos maiores difusores da obra de João Gilberto ser um japonês – o músico independente Hideki “Verve” Nakajima, responsável por transcrever simplesmente todas as gravações registradas por João?

A fala de Nakajima, em entrevista ao jornal O Globo, em setembro de 2006, talvez explique bem a relação dos japoneses com a realização estética de nosso músico maior: “A música de João é um tesouro para o mundo. Bach, Mozart e Chopin deixaram as suas partituras escritas, e, por isso, milhões de pessoas podem interpretar perfeitamente suas obras. João vai deixar suas músicas gravadas e prontas, mas quem será capaz de tocar e cantar exatamente como ele faz? Quero que seu trabalho seja eterno.

Da esquerda para a direita: Tião Neto, Tom Jobim, Stan Getz, João Gilberto e Milton Banana, reunidos para a gravação de Getz/Gilberto. 1963 / Reprodução

O trabalho de Nakajima é o que melhor traduz o modo como o público de fora, não só o japonês, recebeu a canção feita aqui. E não foram poucos os episódios envolvendo a recepção da música de João Gilberto no exterior. Um dos feitos mais comentados da biografia de João é a conquista do Grammy de Melhor Álbum do Ano, por Getz/Gilberto, disco em parceria com o saxofonista estadunidense Stan Getz e a cantora Astrud Gilberto, responsável pelos vocais em inglês de parte das músicas – The Girl From Ipanema, composição de Tom Jobim que abre o disco e ficou marcada pela voz de Astrud, por exemplo, também foi premiada no Grammy de 1965, na categoria Gravação do Ano. Os troféus são um marco não só na carreira do músico baiano, mas na história da música latino-americana, pois João foi o primeiro artista não-norte-americano a levar o Grammy na categoria mais importante da premiação (i. é., “Álbum do Ano”).

Embora seja significativo que João Gilberto tenha sido, ao lado de Astrud, o único brasileiro a ganhar a premiação máxima do Grammy – que, em 2000, criou uma edição latina para conceder à segunda divisão do continente a oportunidade de ser premiado, já que, como no Oscar, os que não nasceram ou viveram na parte de cima não têm trabalhos à altura de disputar com os inigualáveis yankees –, é difícil que qualquer troféu, por mais importante que seja, possa ser equiparado a uma vida toda dedicada a ouvir, estudar, decifrar, organizar e publicar algo da dimensão do livro de Nakajima. O autor de João Gilberto Complete Transcription, que revelou ter trabalhado no material por cerca de 12 anos, não apenas prestou enorme contribuição à cultura brasileira, mas deu à obra de João um presente à altura de sua grandeza.

João Gilberto partiu deixando, de uma ponta a outra do mundo, o sentimento que a canção inaugural marcada pela sua límpida voz queria suprimir – a saudade. Mas não foi sem deixar, também, como verdadeira herança à subjetividade tão disforme e achincalhada do homem brasileiro, a sofisticação e a dignidade de uma música bem acabada, dotada do mais moderno projeto estético já realizado na esfera da canção popular (brasileira ou não), capaz de reduzir qualquer gênero ou estilo a uma voz e um violão, sem perder sua complexidade. Pelo contrário: a música de João sempre acresce valor à composição que ela toca seja ela do gênero que for; daí vale a menção da italiana Estate, de Bruno Martino e Bruno Brighetti, o jazz S’Wonderful, dos estadunidenses George e Ira Gershwin, e o bolero “Besame Mucho, da mexicana Consuelo Velázquez, gravadas para o álbum Amoroso, de 1977. Diante dessa canção propriamente brasileira, importada – da periferia – pelos grandes centros do capitalismo global, coube ao Japão, notadamente um dos países mais desenvolvidos do mundo, sobretudo no campo da tecnologia, instaurar o silêncio de quem aprecia uma autêntica obra de arte e debruçar-se sobre ela como se debruça ao professor o bom aluno. E como numa troca justa ou equivalente (pra aproveitar um pouco o gancho da área de interesse mais cara a este site), demos aos japoneses a oportunidade de escutar um João Gilberto. E eles nos retribuíram com a possibilidade de imitar nosso maior patrimônio o mais próximo possível do original, ajudando-nos a eternizar uma obra que extrapola os limites do tempo e da efêmera vida humana.

João Gilberto em show, no Ibirapuera, em agosto de 2008. Tuca Vieira / Folhapress.

 


*Para os que se interessarem pela obra de João Gilberto, indico sobretudo a leitura dos trabalhos de Walter Garcia, autor dos livros Bim Bom (Ed. Paz & Terra), João Gilberto (Ed. Cosac & Naify) e outros textos a respeito da música de João; o documentário Tim Tim por Tim Tim: a Música de João Gilberto, de Paulo da Costa e Silva; e os livros Chega de Saudade (Companhia das Letras), de Ruy Castro, e Música Popular Brasileira Cantada e Contada por… (Melhoramentos), de Zuza Homem de Mello; além de outros textos publicados em livro e em jornal que valeriam mencionar.