É impossível não politizar animês, pois animê é arte. E arte é política. Também é forma, também é expressão, também é uma válvula escapista, também é interpretação do que a faz e daquele que a recebe. E isso tudo também é política. Escolher falar ou escolher se isentar de algum assunto em voga é um ato político. Não falar de política é um ato político. Animê também é política. Pois, sobretudo, é arte.

Como a literatura, como o cinema, como a indústria fonográfica, o universo de animações japonesas é repleto de obras que, ainda que seguramente distanciadas, utilizam contextos históricos e políticos dentro de suas tramas para alegorizar aquilo que é contado.

Problemas sociais envolvendo diretamente as feridas deixadas após a Segunda Guerra Mundial podem ser obviamente percebidos em longa-metragens como Túmulo dos Vagalumes (1988), Gen Pés Descalços (1983) e Vidas ao Vento (2013). Ainda que não sejam o fio central, segregações religiosas na história nipônica podem ser referenciadas em séries como Samurai Champloo (2004) e Samurai X (1996). E abrindo mais a mente figurativamente, é bem fácil ler Code Geass (2006) como um grande “e se” voltado à colonização britânica ocorrida na Ásia.

E animês também tratam de fascismo. É, fascismo, a palavra “tabu” do momento, tão proferida por simpatizantes de diferentes lados do confuso espectro político da nova década, mas ainda bem pouco definida, explicada e discutida a sério. Tão assustador, cruel, mortífero e indefensável em todas as suas variadas execuções ao longo da história, o fascismo foi efetivamente “criado” na Itália, através da figura de Benito Mussolini, com seu Partido Nacional Fascista, que tomou o poder após a Marcha Sobre Roma, evento onde simpatizantes dos ideais fascistas de vários pontos da Itália se reuniram e, bem, forçaram politicamente a vitória para seu líder, que se tornaria primeiro-ministro do país, governando-o por mais de duas décadas dali em diante.

Seus ideais são específicos dentro do contexto italiano pós-primeira grande guerra (a economia estava quebrada, a vida em cidades e campos era caríssima, havia fome, pobreza extrema e vontade de expandir seu território), mas não fogem aos de outras formas de governo totalitárias em outros países e outros períodos de tempo, como o nazismo de extrema-direita da Alemanha de Hitler ou as ditaduras militares ocorridas aqui no Brasil. Alguns são os pontos de destaque, como o ultranacionalismo, exaltando não só a nação, mas enxergando a “raça” acima do “indivíduo” (e quem não se enquadrar nisso que lute); a figura da liderança ditatorial, que impõe restrições econômicas, sociais, culturais; e a supressão da oposição, a ausência do diálogo e de pontos de vista que possam divergir daquilo que é posto como o correto. Esse parece um mundo bacana de viver?

Fato é que a indústria cultural, as artes, jogam luz sobre isso há décadas. Ela cutuca, critica, incomoda, nos ajuda a enxergar através desse mundo de imaginação o que de pior existe no mundo de realidade. Seja em quadrinhos do Spirou na Bélgica, no cinema de Bernardo Bertolucci na Itália ou nas canções interpretadas por Elis Regina aqui no Brasil. Seja em animês, como os 7 da lista abaixo (com alguns spoilers, já aviso), que tratam de fascismo em suas histórias, de maneira mais óbvia e facilmente entendível, ou mais alegórica, o que frequentemente gera equívoco em suas interpretações.


AKIRA

(Katsuhiro Otomo, estúdio TMS, 1988)

A obra-prima do escritor e cineasta Katsuhiro Otomo pode (e deve!) ser lida como muitas coisas: um divisor de águas dentro da indústria da animação nipônica no que diz respeito à sua expansão internacional; um dos pilares da ficção-científica cyberpunk na cultura pop contemporânea; um pico de êxtase no cinema de animação como “forma” de confecção; um dos melhores filmes a capturarem os problemas atemporais da adolescência em todos os tempos; a lista segue válida. E Akira também pode ser entendido crítica ao fascismo, tantos são os ícones desse ideal que são retratados nele.

Na NeoTóquio construída aqui, o comando político é tomado por um chefe militar, que desacredita na capacidade da equipe de figurões no poder para lidar com o problema que está assolando a cidade em tal momento, mandando assassiná-los para que não o atrapalhem em sua ambição defensiva. Essa defesa, no entanto, só é necessária por um problema que o próprio governo, do qual ele fazia parte, criou e desenvolveu às escondidas por anos. A repressão popular, entretanto, não está por baixo dos panos, com a polícia atirando todo seu poder de fogo num homem e numa criança, antes de se perguntar se aquilo era necessário, no meio da rua, em frente a todos. Essa mesma violência é reprisada ante manifestações populares ou expressões religiosas. E esses movimentos religiosos, no caso, fitam um eventual herói messiânico, que mesmo tendo explodido a cidade 30 anos antes, ressurgirá supostamente para lutar contra o status quo. E quando ele enfim surge, questionar sua veracidade implica em represálias violentas daqueles que antes concordavam entre si.

Tão pungente quanto atual, Akira é como um espelho da realidade – mas não pelas evoluções tecnológicas, infelizmente.

Disponível via streaming na Netflix e no Telecine Play.


FULLMETAL ALCHEMIST

(Seinji Mizushima, estúdio Bones, 2003-2004)

O animê de 2009, com direção de Yasuhiro Irie, dispunha de mais material de base e é mais coerente com o que a mangaká Hiromu Arakawa tinha em mente, eu sei. No entanto, ainda que traga uma conclusão final confusa, a versão de 2003 de Fullmetal Alchemist, dirigida por Seinji Mizushima e com um roteiro que precisou se expandir por outros lados também muito interessantes, consegue ir ainda mais fundo no pavor que é uma realidade ditada por um governo militar fascista em suas muitas consequências mortíferas àqueles que, de alguma forma, se opõem a isso. É claro que a trama trabalha bem as matizes de cinza através dos personagens (sobretudo, dos protagonistas, os irmãos Elric), com o exército não sendo inteiramente formado por pessoas ruins, mas sua crueldade institucionalizada fica evidente conforme os episódios vão passando e o que rola nos seus bastidores vai sendo revelado.

O chefe do exército aqui, King Bradley, recebe o mesmo título que Adolf Hitler na Alemanha nazista: Führer. E as alegorias nazistas continuam em outros momentos, como no segmento retratando o massacre da cidade de Ishval, por exemplo. Antes uma nação própria, essa população do deserto foi anexada ao país de Ametris (onde se passa a trama), posteriormente sendo quase que inteiramente dizimada por tropas do exército durante uma guerra civil, cujas motivações acabam sendo bem mais escusas que o imaginável: as milhares de vidas foram sacrificadas numa transmutação para adquirir a Pedra Filosofal. Seus sobreviventes, se escondem, vivem em guetos, sofrem repressão, não estão enquadrados do conceito de “raça” imposto. E esse plano ainda seria repetido mais tarde, na cidade de Lior, vista como problemática, com conflitos nela sendo implantados. E o que acontece quando um oficial competente e realmente empenhado em fazer o bem dentro do exército descobre que a alta cúpula nele é aliada com uma organização criminosa? Também se torna um alvo, pois não deve atentar contra os bons costumes.

Como questionar algo quando o poder está nas mãos de quem deveria proteger o Estado e não governá-lo com suas próprias regras? E tem quem queira isso hoje em dia…

A série está disponível via streaming na Netflix e o filme que lhe serve de conclusão está na Crunchyroll.


DEATH NOTE

(Tetsurou Araki, estúdio Madhouse, 2006-2007)

Diferente do costumeiro em obras do tipo, o thriller investigativo shounen neo-noir idealizado por Tsugumi Ohba inverte os papéis, dando o protagonismo ao grande vilão da história. Light Yagami é um adolescente de Ensino Médio, apontado como um dos maiores e mais inteligentes estudantes do Japão. Seus problemas começam quando ele encontra um caderno preto, o Death Note, que lhe possibilita tirar a vida de qualquer um que ele saiba o nome e a aparência física, e da maneira que ele bem entender. Daí em diante, o rapaz, sob a alcunha de “Kira”, decide “dar cabo” de uma porção de criminosos pelo país, fazendo disso algo midiático e atraindo a atenção das autoridades, que colocam no caso o detetive particular “L”, especializado em inquéritos de evidentes complicações psicológicas.

Como nos filmes Dirty Harry, Death Note exemplifica bem o aspecto “nós contra eles” de ideologias autoritárias, onde a figura de um “herói” é levantada contra a de “vilões” que precisam pagar com sangue por seus pecados. É claro que a interpretação de pecado é dada por quem detém o poder. Kira é visto por parte da população no animê não só como um herói, mas como um deus: inquestionável, irretocável, possuidor da sabedoria e justiça. Quem ousar problematizar suas atitudes, será atacado socialmente, ou mesmo executado por ele. Os paralelos com figuras que entraram para a história por fazerem crueldades parecidas são claros. A identificação com a ideologia “bandido bom é bandido morto” também. Contudo, tal como acontece na nossa sociedade, a interpretação do que é ser um herói é distorcida por muitos ao assistir isso aqui. Light é um assassino frio, um psicopata travestido de guardião da paz, mas é visto como o “mocinho” por muitos fãs do animê.

Disponível via streaming na Netflix e no Claro Vídeo.


KILL LA KILL

(Hiroyuki Imaishi, estúdio Trigger, 2013-2014)

Assim como dito mais acima, no parágrafo de AkiraKill La Kill é uma daquelas animações que podem ser lidas de muitas formas. O diretor Hiroyuki Imaishi utilizou todo o capricho visual que se tornou a marca do estúdio Trigger para expandir aos olhos o que o meio poderia nos proporcionar, não se “comportando” nisso, ajudando a influenciar outras séries que viriam mais tarde. Também fez isso com ao modo como a premissa foi executada, apresentando uma história divertida de heróis e vingança, onde uma menina com uma espada em forma de tesoura vai em busca do assassino de seu pai, mas esticando os limites de gênero do ecchi até o máximo possível, a fim de fazer de tudo uma grande paródia que ainda causa confusões nas cabeças dos espectadores.

Mas Kill la Kill é também sobre fascismo, também sobre um sistema opressor que divide pessoas em castas, dando mais poder aos que são considerados “superiores” de acordo com seus parâmetros, e que castiga aqueles que resolvem se opor a isso, ainda que das maneiras mais caricatas possíveis. A moda e a beleza aqui, junto de todo o poder que isso acarreta e de como a falta disso ataca a população, são boas alegorias sociais, puxando pro humor uma série de questões que, na vida real, infelizmente não têm essa saída como escapatória.

Disponível via streaming na Netflix e na Crunchyroll.


FOOD WARS! SHOKUGEKI NO SOMA

(Yoshitomo Yonetani, estúdio J.C. Staff, 2015-2020)

O fascismo é conversado até mesmo em séries que tem como fio condutor o ambiente culinário. A partir da terceira temporada de Shokugeki no Soma (ou Food Wars!), “San no Sara”, o animê de estudantes de cozinha com ânsia por duelos toma um rumo bastante inusitado ao que estava sendo construído até então, mas estranhamente interessante de assistir e definitivamente claro em sua mensagem antifascista. Um grupo com os 10 maiores alunos da instituição dá um “golpe de Estado” contra seu atual diretor, destituindo-o para elevar ao poder um ex-aluno banido, mudando totalmente o intuito por trás da escola. Enquanto o ideal original pregava por um local onde pudessem desenvolver seus talentos às suas maneiras, exercendo a criatividade, fornecendo o aparato para que eles se tornassem chefs únicos, o plano desse novo diretor, dos alunos que contribuíram com o golpe e de uma organização por trás de tudo isso vai totalmente ao oposto, pré-estipulando receitas, modos de preparo e de ensino que os alunos devem seguir. Agora, os estudantes não devem pensar, não devem criar, devem apenas obedecer ao que foi ditado.

O roteiro aprofunda ainda mais essa questão, mostrando que o plano é não só modificar por completo a cabeça de todos naquela escola, como “limpar” todo o Japão de restaurantes que não sigam esses ideais. O vilão orquestrador disso tudo tem em sua cabeça que toda a comida que não é altamente refinada (com parâmetros totalmente individuais) deve ser erradicada, funcionando apenas como ração para animais. Aponta que perspectivas diferentes estão erradas, que todos devem obedecê-lo por ele ter um conhecimento “maior” que o resto. Para forçar seus ideais, usa estratégias políticas junto do apoio de pessoas com interesse nisso (o grupo de alunos citado), tenta moldar o pensamento popular a seu favor em discursos atrativos, ou simplesmente executa ações repressivas contra os adversários, como extinguir diferentes clubes dentro do campus que pesquisam culinárias diversas e efetivamente castigar aqueles que se opõem com expulsões ou torturas em praça pública.

Disponível via streaming na Crunchyroll.


RADIANT

(Seiji Kishi, Daisei Fukuoka, estúdio Lerche 2018-2020)

Dessa lista, talvez Radiant seja o que traga o roteiro mais sutil e cheio de camadas interpretáveis. Se passando num mundo onde as pessoas, aparentemente, vivem nos céus, à mercê do ataque dos “Nemesis”, criaturas bestiais que surgem de ovos vindos do alto, temos aqui a história de Seth, um jovem que sonha se tornar um grande feiticeiro. Feiticeiros são seres humanos que, ao sobreviverem ao contato com Nemesis, se tornam “amaldiçoados”, sofrendo mutações e adquirindo capacidades mágicas – o que faz com que sejam vistos como párias perante o resto da sociedade, apanhando com preconceitos no dia a dia. O fato é justificado ainda pelo aparato governamental, que institucionaliza essa segregação através da atuação dos “Inquisitores”, que caçam, prendem e executam feiticeiros considerados potencialmente perigosos – novamente, de acordo com parâmetros totalmente particulares dentro de suas crenças.

Inicialmente, a série é bem clara ao “tomar um partido” nessa história. No caso, o lado dos feiticeiros, já que é nele que está seu protagonista. Inclusive, uma boa parte dos episódios iniciais mostra o quão dura e injusta é a vida deles. E o olhar dos humanos “normais” para os feiticeiros se torna ainda ligeiramente hipócrita por, quando surgem as já citadas bestas Nemesis, serem eles os necessários para destruí-las, visto já estarem, de qualquer forma, amaldiçoados pelo contato. A típica relação “só aceitamos quando precisamos deles”, vista em um sem números de sociedades onde há uma divisão de castas. Mas Radiant ainda guarda espaço para “humanizar” o outro lado, dedicando outros episódios a mostrar que, acima de ideias, existem humanos em diferentes lados. Que é preciso entender que a redução de pessoas a “coisas” é perigosa. Que existe toda uma complexidade em tal realidade que demanda mais que violência para ser entendida. O ideal quase eugenista pregado pelos Inquisitores ainda é ruim, mas as pessoas que o seguem, por diferentes motivações ao longo de suas vidas, são levadas a acreditar que eles são bons. Ao humanizar esses vilões, o animê pode visar abrir a cabeça dos espectadores, assinalando que talvez esse pensamento seja o inimigo real, não os cidadãos que foram levados a acreditar nele.

Disponível via streaming na Crunchyroll.


DR. STONE

(Shinya Iino, estúdio TMS, 2019)

Outra série recente originada de uma revista shounen (e de muito sucesso) a tocar em temas mais espinhosos é Dr. STONE. Nele, acompanhamos as aventuras de um grupo de jovens que tenta sobreviver num mundo “pós-apocalíptico” onde a humanidade foi petrificada por uma misteriosa luz do céu. Tendo a realidade permanecido assim por milhares de anos, as coisas começam a mudar quando o menino Senki Ishigami, um gênio da ciência sem precedentes, consegue “despertar” da petrificação e usa seus conhecimentos para criar um soro milagroso que salva outros colegas desse estado. O grande problema aparece quando, para se livrar de uma situação de perigo, Senku desperta Tsukubasa, um lutador com capacidades físicas sobre-humanas, cujas crenças geram uma série de conflitos entre os personagens, evoluindo para o que pode vir a ser uma guerra civil em tempos onde a humanidade deveria se unir em prol da própria espécie.

O embate entre os ideais do Senku e do Tsukasa podem ser lidos como uma boa ilustração ao conflito entre a democracia e regimes ditatoriais (nazismo, sobretudo). Senku defende que a ciência seja usada para salvar toda a humanidade petrificada, de modo a restaurar o mundo para todos, em iguais oportunidades. Tsukasa vai por outro lado, tentando impedir os avanços científicos do inimigo com a justificativa de que salvar a humanidade em sua totalidade implica em dar poder a outros que, antes, eram prejudiciais a ela. Que adultos, ricos, levarão a sociedade à ruína, pois não aceitarão o mundo como um novo local livre, que só alguns escolhidos devem ser despertados para que o mundo seja bom. E é claro que, no meio disso tudo, ele estaria no poder, comandando a humanidade segundo suas regras, com sua mão de ferro, ditando o que é certo, errado, não podendo ser contestado por ninguém (ora, na teoria, ele é o ser humano mais forte por ali).

Disponível via streaming na Crunchyroll.


Para esse texto, foram usados como fonte esse vídeo sobre “Formas de governo nos animes” e esse sobre “Religião em animes”, do canal Bunka Pop; esse vídeo sobre “Mussolini e o Fascismo”, do canal reVisão; esse texto do jornalista Roberto Sadovski, para o UOL, sobre o fascismo retratado no cinema e esse texto da revista Piauí, que passeia pelas diferentes significações dadas à palavra “fascismo” quando entoada em determinados contextos. São bons meios de partida para o assunto.


Para mais sobre política dentro do universo otaku no JBox, você poder ler esses textos se aprofundando mais nas interpretações antifascistas em Shokugeki no Souma (aqui) e em Radiant (aqui), o recente artigo da colega Laura Gasseruto sobre política em Cavaleiros do Zodíaco (aqui) e o do Rafael Jiback a respeito da representatividade falha da mudança de gênero do Shun na adaptação de Cavaleiros do Zodíaco da Netflix (aqui).