A Netflix estreou na última quinta-feira (17) o animê Record of Ragnarok (Shuumatsu no Valkyrie). Essa é uma produção da Warner Bros. Japan e do estúdio Graphinica (de Hellsing e Arslan Senki), com direção de Masao Okubo, adaptando o mangá seinen de mesmo nome em publicação desde 2017 na revista Comic Zenon.

plot é interessantíssimo: irritados com o caminho destrutivo que a humanidade tomou no planeta Terra, os deuses (vários deles, de diferentes crenças) se reúnem numa assembleia e decidem extinguir a raça humana. Contudo, numa última tentativa de salvar as pessoas, um grupo de valquírias desafia os deuses a enfrentar os humanos num torneio intitulado “Ragnarok”. Se os deuses vencerem, continuarão com o plano original de extinção, se perderem, darão uma esticada de mais mil anos de vida para a humanidade.

Calha que os deuses aceitam a proposta. Então, as valquírias juntam 13 grandes guerreiros de toda a história da humanidade para enfrentar 13 deuses escolhidos para o torneio. O time que vencer 7 batalhas primeiro ganha. Nesses dois times, estão envolvidos divindades e figuras míticas que passam por diferentes culturas: Grécia antiga, Roma antiga, o panteão nórdico, hinduísmo e cristianismo.

Imagem: Uma mão esquerda segurando uma maçã.

Adão, o nº 00000000001 | Reprodução: Netflix Brasil

Há quem possa considerar Record of Ragnarok uma blasfêmia por usar essas figuras divinas como personagens de uma história de ação. Eu, no entanto, considero Record of Ragnarok uma blasfêmia por todo o resto. Pois é uma miscelânea de tudo o que de pior pode haver numa série animada. Animação, escolhas narrativas, roteiro, execução de proposta: quase nada se salva.

Como disse, a ideia é muito interessante. Jogar uma porção de crenças e folclores num caldeirão blasfêmico e remodelar isso num formato tão deliciosamente clichê ao mundo dos animês como o de “torneiros de poder” (presente numa porção de obras, tipo Hunter X Hunter, Dragon Ball, Pokémon, Yu Yu Hakusho, Cavaleiros do Zodíaco e segue lista) é legal demais.

Além disso, também é uma interpretação bem pop nipônica da lenda do ragnarok, onde uma série de eventos envolvendo deuses nórdicos e humanos levará todos ao fim do mundo. Inclusive, o fato de a plateia do torneio, aparentemente, ser formada por todos os deuses e todos os seres humanos, que reagem de acordo com a luta que ocorre, é bacana demais no papel.

Só que a execução é péssima e torna a maratona de 12 episódios um verdadeiro martírio. A começar pelo fato desse ser um animê, supostamente, de luta (já que o fio condutor da história é o torneio) que não dedica quase nada de sua duração ao prato principal: os combates. Nesses primeiros episódios, ocorrem só três rodadas de batalhas, mas a maior parte do tempo nos episódios serve para diálogos intermináveis.

Esses diálogos ou servem como exposição professoral para contar a história por trás dos personagens, de suas lendas e do jeito como elas são interpretadas, como se tudo fosse um episódio do Telecurso 2000 sobre História ou Literatura Clássica, ou são extremamente redundantes com a narrativa.

Imagem: A valquíria Brunilda com cara de desgosto.

Reprodução: Netflix Brasil

Por exemplo, no episódio 7, da luta entre Zeus e Adão, há um momento de destaque para o Adão, colocado ali como o pai de toda a humanidade, que desperta uma reação bem emotiva do lado humano da plateia. Todos ali ficam em silêncio e prestam uma oração para o lutador, que recebe isso como um pai recebendo a confiança de seus filhos.

Está em tela, nós podemos perceber, mas entra uma narração explicando isso que quase transforma a cena num pleonasmo. Esse tipo de explicação do óbvio se repete em vários momentos e usa vários personagens. No episódio seguinte, rola um segmento onde o Adão usa uma técnica em que ele copia os movimentos do Zeus, como se fosse um espelho. Aí, na plateia, uma das valquírias, a Göll, conta o que já estamos vendo: “o Adão está copiando os socos do Zeus”.

E piora conforme os episódios passam, pois mais e mais defeitos vão se sobressaindo. O roteiro entrega um twist logo de cara. Boa parte da graça, imagino eu, seria a surpresa de saber quais os deuses e quais os campeões humanos seriam convocados nas batalhas.

As opções são várias, dariam combinações fora do óbvio que valeriam o engajamento. Porém, logo no começo da temporada, todos os 26 personagens que participarão do torneio já são revelados, matando aquilo que talvez fosse o maior segredo da série.

O pior de tudo é animação. Ou melhor, a falta dela. Além desse já ser um animê de luta com mais foco no diálogo que nas batalhas, quando essas brigas, bem escassas, acontecem, são praticamente paradas, quase sem movimentos. Quase sem animação mesmo. Os espaços vazios são preenchidos por takes congelados, zooms, a câmera indo da direita até a esquerda de um mesmo frame, cortando para reações que duram longos segundos. É angustiante.

Imagem: Outra valquíria em ação.

Reprodução: Netflix Brasil

Mas ainda mais angustiante é perceber que esses são os momentos de maior esforço da produção. Quando ocorrem diálogos, por exemplo, são mais longos segundos de takes estáticos, com ângulos fechados para não trabalhar em cenários, só com as bocas dos personagens se mexendo. Tem horas que é só a boca mesmo. Em dado momento, o Hermes, que é um dos deuses gregos e tem uma pinta próxima da boca, sequer movimenta ela quando os lábios se mexem.

Ainda assim, nada supera a decisão de ocuparem a primeira metade inteira do segundo episódio com o que parece ser uma apresentação de Power Point em vez de um desenho animado. São literalmente fotos passando em sequência enquanto explicam a lenda do Thor, deus nórdico que enfrentaria o guerreiro chinês Lü Bu na primeira batalha. Se foi uma piada camp, eu não peguei.

Record of Ragnarok é péssimo. É daqueles casos onde uma ideia bacana é morta por uma execução abaixo do aceitável para uma indústria animada nos dias de hoje. Nada nele funciona. Os episódios parecem ter o triplo da duração. Candidato fortíssimo ao título de pior animê de 2021.


Record of Ragnarok está disponível com dublagem em português e demais idiomas na NetflixA dublagem foi produzida pelo estúdio Unidub, com direção de Úrsula Bezerra, tradução por Suelle Sato Ide, e mixagem por Marcel Gafo.


O texto presente nessa resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.