The Rising of the Shield Hero (Tate no Yuusha no Nariagari) é um dos piores animês que já assisti por motivos profissionais. Acompanhei ele aqui para o JBox à época do lançamento e o achei tão ruim que abandonei no décimo segundo episódio, que é até onde me limitei falar na crítica que escrevi (leia aqui).

Achei ele duplamente péssimo. O primeiro motivo é por, na parte “técnica”, o roteiro ser fraquíssimo. Ele conta a história de um cara transportado para um mundo de espada e feitiçaria como parte de uma trupe de quatro heróis que salvará um reino, sendo ele o do escudo. Contudo, por lá, descobre que a fama nas lendas locais do herói do escudo é bem ruim, de modo que todos ao redor o tratam como um pária, mesmo necessitando dele para que aquele local não seja devastado.

O problema é que tudo é muito mal escrito. É um caminhão de obviedades para o protagonista ser vitimizado. Não existe nuance, margem para outras interpretações, quase nada de tridimensionalidade. É como se todos fossem adesivos chapados, ou bons ou maus, sem matizes. O roteiro tenta a todo custo nos fazer acreditar que o protagonista está certo, mesmo fazendo uma porção de coisas ruins. Praticamente não deixa que pensemos sozinhos e tiremos nossas próprias conclusões.

O segundo motivo é pela “intenção” da parte dele. Fica evidente, do início ao fim, que essa é uma história sobre um personagem misógino. E é possível interpretar que as mensagens passadas nele apoiam esse tipo de ato e pensamento. Pois mulheres na história são retratadas quase sempre das piores formas possíveis: como criaturas perversas forjando uma situação de estupro para tirar vantagem disso, como escravas subjugáveis, até sentindo prazer nisso, e o nível só abaixa.

Então, junte essa má intenção em retratar mulheres com uma completa falta de habilidade em elaborar um roteiro que exija um tiquinho de massa cinzenta para ser interpretado, que parece escrito por um adolescente sem a menor instrução para construir uma história bem feita, tratando os espectadores como burros e precisando forçar eles a aceitar que o protagonista tem razão na marra e, pronto, temos aqui uma das peças mais execráveis já soltas dentro do universo pop nipônico em todos os tempos.

Imagem: Pôster de 'The Rising of the Shield Hero'.

The Rising of the Shield Hero | Reprodução: Crunchyroll

Posto isso, The Rising of the Shield Hero deveria ter considerado criminoso? É óbvio que não. E são muitas as razões para isso.

Primeiro porque Shield Hero é uma obra de arte, uma obra de ficção. E a ficção é aquele lugar onde as coisas são não sendo. Então, é necessário existir liberdade para que lá, não sendo, ela possa ser tudo.

Devem poder existir histórias sobre heróis, histórias sobre pessoas boas, que inspirem coisas boas nas pessoas, personagens cujos arcos de aprendizado conversem com as vidas daqueles que as estão consumindo e as afete de alguma forma.

Assim como deve poder existir histórias sobre vilões, histórias sobre pessoas ruins, mal intencionadas, com desfechos moralmente péssimos, independente de provocarem um pensamento crítico que fará o espectador entender que aquilo é ruim e está errado ou, num outro extremo, influencia-lo para repetir isso.

Não interessa se concordamos ou discordamos do que é feito: é ficção, é arte. Sugerir que seja criminalizado é pedir por censura. E pedir por censura é sempre um tiro no pé. Não deve haver censura, não deve haver uma campanha para isso acontecer, mesmo em exemplares tenebrosos como The Rising of the Shield Hero. Pois precedentes que flertem com a censura não devem ocorrer, mesmo que seja “do lado certo”. Pois isso de “lado certo” pode ser apropriado por qualquer lado.

Imagem: Trecho de 'Te Prego Lá Fora'.

Especial de natal “Te Prego Lá Fora”. | Reprodução: Paramount+/Porta dos Fundos

Por exemplo, recentemente, uma associação católica pediu uma censura prévia ao especial de natal do Porta dos Fundos, Te Prego Lá Fora, alegando que haveria discurso de ódio no desenho animado. O juiz responsável pelo caso negou a censura, declarando:

“(…) em que pese o conteúdo do programa possa não agradar determinadas audiências, não compete ao Estado laico intervir em prol de determinados grupos. (…) Analisando-se a hipótese concreta, não se vislumbra (…) discurso de ódio, mas sim, uma sátira extremamente ácida, típica do grupo, a justificar a prévia censura pretendida, respeitado entendimento diverso.” – Leia aqui.

Usar parâmetros particulares de moralidade para enquadrar como “correto” ou não o que é retratado na ficção e, a partir disso, determinar o que deve ou não poder ser feito, a ponto de querer criminalizar o que é considerável “errado”, é um passo contra o progressismo.

Num mundo onde o ultraconservadorismo tem tomado cada vez mais espaço, não é difícil imaginar que, justamente, os ideais mais progressistas, tomados como transgressores dentro de uma moral reacionária, são os que serão prejudicados  é só tomar o caso do Porta dos Fundos acima como exemplo.

O conceito de algo não poder ser retratado na ficção não deve existir. Qualquer coisa deve poder ser retratada. Não é a vida real. São ideias e situações utilizadas para contar uma história. Cabe ao público interpretar aquilo. E aí: gostar, desgostar, problematizar, conversar, criticar, criar uma pressão social em cima do que achar errado para que, futuramente, ocorram mudanças.

Defender a liberdade artística é diferente de defender a liberdade de discurso de ódio na vida real. O discurso de ódio na vida real é crime e aqueles que o cometem devem responder judicialmente. No entanto, personagens que cometem discurso de ódio em obras de ficção são… personagens cometendo discurso de ódio dentro de histórias.

Essas histórias podem encaminhá-los para dois desfechos: puni-los e retratar o uso do discurso de ódio, que é ruim, mesmo com o roteiro de Shield Hero tentando nos convencer que ele é válido nesse caso, como algo que gera consequências negativas; ou não puni-lo (até premia-lo) e retratar que, tal como na vida real, por vezes, quando os discursos de ódio são feitos por determinadas pessoas de determinados locais sociais, essas consequências negativas jamais acontecem.

E quando esse segundo desfecho ocorre, mas não de uma forma crítica, intencional, sim por aquele que o escreve acreditar que não há problema nos discursos de ódio da vida real, então não haveria punição para os que os usam nos respectivos universos das obras, ainda assim essa liberdade na ficção deve ser garantida. Porque ainda assim ela diz muito – e nos vale como uma peça histórica.

Imagem: Ilustração de Monteiro Lobato.

Ilustração de Jean Galvão para “Caçadas de Pedrinho”, do Monteiro Lobato, na versão publicada pela editora Sesi-SP. O livro apresenta reflexos do racismo vigente na sociedade à época e no autor, que fazia parte dessa. Hoje, debates são feitos a respeito do seu uso em salas de aula. | Reprodução: Sesi-SP.

Obras de ficção, obras artísticas, além de carregarem todas as mensagens e toda semiótica presente no que elas contam, nos servem como, na falta de um termo técnico melhor, “cápsulas do tempo”. Elas são a representação de um corte na história, que engloba essas mensagens com seus subtextos e o contexto sociocultural que a gerou e permitiu que ela fosse ao mundo.

Shield Hero, assim como outras obras japonesas atuais com backgrounds tão problemáticos quanto, deve poder ser feita, pois inevitavelmente servirá no futuro como exemplo de um ponto no passado onde a sociedade japonesa gerou alguém que colocou numa história pensamentos péssimos, que uma enorme parcela do público que a consumiu se identificou com o tipo de personagem horroroso retratado como certo ali, assim como outra parcela criticou esses ideais grotescos e um debate foi gerado disso.

É como fazemos hoje com os livros cheios de passagens racistas do Monteiro Lobato, ou com as histórias do H. P. Lovecraft recheadas de xenofobia. Entendemos que tiveram muita importância artística em suas épocas, que os meios nos quais elas foram boladas sequer viam seus problemas como problemas, e que elas hoje devem ser lidas com esse pensamento crítico que considera seu contexto histórico, social e cultural na hora de serem apreciadas (ou ignoradas).

Não que o animê do herói do escudo tenha uma fração da qualidade artística das obras desses autores. Não tem. Passa longe disso. É muito mal feito. Mas mesmo obras problemáticas que sejam mal feitas assim devem poder existir. Para que obras com uma consciência maior e bem feitas também possam existir sem sofrer censura.

The Rising of the Shield Hero é uma obra péssima. Os valores passados nela são execráveis. E ver um público grande comprando esses ideais como corretos é ameaçador. Mas não deveria ser um crime. A censura nunca é um bom caminho. A censura também é execrável, e ver gente defendendo ela também é ameaçador.


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