Desde 1992, com a estreia de Sailor Moon (Bishoujo Senshi Sailor Moon) nas telinhas japonesas, a Toei Animation parece bastante interessada em manter no ar um desenho de garotas mágicas voltado para o público infantil. O sucesso estrondoso das sailors ultrapassou fronteiras e, sem dúvida nenhuma, serviu de inspiração para a franquia do gênero com um alcance imensurável no Japão: Precure. Hoje, vamos explorar um pouco a caminhada da Toei pelo mundo das heroínas mágicas escolares.

Importante: Existem séries de “garotas mágicas” produzidas pela Toei desde os anos 1960. Esse texto vai abordar somente a manutenção desse estilo de série pela produtora a partir do fenômeno de Sailor Moon.


Guerreira da Lua e o Super Sentai

Sailor Moon é, como todos bem sabem, uma adaptação do mangá de Naoko Takeuchi, publicado de 1991 a 1997 na Nakayoshi (Kodansha) – ou seja, a animação começou a ser produzida bem antes do término do mangá, sendo, obviamente, cheia de fillers. A série já fez um enorme sucesso na época, chegando a vender mais de um milhão de cópias quando ainda era seriada. Em 2012, mais de 35 milhões de cópias já tinham sido vendidas internacionalmente, além dos bilhões gerados em vendas de produtos.

Sailor Moon (1992) | Reprodução/Toei Animation.

Vendo bastante potencial em Sailor Moon, a Toei investiu em uma animação quando a série ainda não tinha lançado sequer o primeiro volume compilado, colocando-a no sábado à noite, às 19h, um horário propício para alta audiência, fazendo grande sucesso.

Quando uma obra faz sucesso, é um pouco difícil dizer exatamente o que levou a isso. Desenvolvimento de personagens? Enredo? Conceito? Tudo isso junto? Difícil medir.

Parece comum, no entanto, apontar o protagonismo feminino, sendo uma das mais memoráveis obras a colocar um grupo de mulheres em ação, lutando contra o mal – a ação é um elemento frequentemente indicado pelo público masculino como um dos pontos interessantes da série (porque Sailor Moon era das poucas “obras de garotas” que os meninos tinham alguma “coragem” de falar que gostavam).

Não é novidade para ninguém que garotas também gostam de séries de ação e os shounens de lutinha também conquistam uma parte do público feminino. Talvez então, realmente, uma premissa mais heroica tenha sido um dos propulsores do sucesso de Sailor Moon. É de conhecimento público que a Takeuchi se inspirou em Super Sentai ao criar a série (e, mesmo que não fosse, é impossível negar as semelhanças com tokusatsu, principalmente com Patrine), com trabalho em equipe, monstro da semana e item com power-up.

A produção dos Sentais é feita com atores reais pela Toei Company (não pela Toei Animation), mas antes mesmo do lançamento de Gorenger, o primeiro Sentai, em 1975, outro estúdio, o Tatsunoko, já tinha lançado Gatchaman, um “sentai animado” exibido de 1972 a 1974. Apesar de nunca ter feito, pelo menos até então, um “animê sentai”, a Toei Animation já saberia que a coisa rende em 3D e 2D (e em 4D, 5D, 6D provavelmente).

Gatchaman (1972), o “sentai” antes dos Sentai | Divulgação/Tatsunoko.

Além disso, elementos sentais aparecem em outras adaptações em animê da empresa, como Cavaleiros do Zodíaco: o trabalho em equipe é bem enfatizado nos fillers, especialmente aqueles entre o arco do Cavaleiros Negros e das 12 Casas. A coisa era tão bem feita nesse sentido que havia quem argumentasse por aqui, em conversas entre amigos, que o Seiya não era o protagonista solo (afinal, o nome é OS CAVALEIROS do Zodíaco, não uma série do Seiya… ops).

Considerando o tempo que Sentais estão na TV japonesa, podemos ter certa tranquilidade ao dizer que é mesmo disso que a garotada gosta. Não só por lá, né: séries como Changeman tiveram sucesso no Brasil, Power Rangers também e segue até hoje como um dos favoritos da criançada.

O “modelo sentai” parece realmente uma aposta segura para conquistar o público infantil e não foi diferente com Sailor Moon: colocar um time de garotas dando porrada em diversos grupos de inimigos enquanto tentam passar de ano na escola deu certo.

A Era DoReMi

Mas tudo que é bom dura pouco: em algum momento, a trama acabaria. Em 1997, se encerram tanto o mangá quanto a animação de Sailor Moon. Lucrando horrores, inclusive com licenciamento do animê para o exterior, deve ter sido neste momento que a ficha da Toei caiu: isso dá dinheiro, podemos ter mais?

A Naoko aparentemente já estava cansada da série, dada por encerrada. Mas quem liga? A Toei, pelo jeito, teve outra ideia: eu vou fazer o meu. É assim que eu imagino o nascimento dos conceitos de Cutie Honey Flash e Ojamajo Doremi (ou Magical DoReMI), os “Toei Originals” que entram no ar, respectivamente, em 1998 e 1999.

‘Magical DoReMi’, primeiras “sucessoras” de ‘Sailor Moon’ a ter sucesso | Divulgação/Toei Animation.

Cutie Honey substituiu Sailor Moon na TV Asahi, tendo uma estética um tanto parecida, contando sobre uma jovem de 16 anos se transformando para salvar seu pai. A direção e o roteiro contavam com membros da equipe de Sailor Stars, rendendo apenas uma temporada – mas a Toei não desistiu de criar seu próprio mahou shoujo (obrigada, @ondororu).

Doremi trazia Doremi Harukaze e suas amigas, todas estudantes do “Ensino Fundalmental I”, acidentalmente virando aprendizes de bruxa. Além da temática garotas mágicas (bruxinhas, no caso) e os elementos tokusatu, a animação certamente foi mais fundo nos acertos de sua “antecessora espiritual”, com Junichi Sato e Takuya Igarashi, ambos diretores de temporadas de Sailor Moon, dirigindo essa série.

A franquia fez sucesso o suficiente para correr por quatro anos seguidos, rendendo 5 bilhões de ienes à Bandai em produtos. Mas, então, no começo de 2003 a série se despede, um ano antes da primeira temporada de Precure ir ao ar.

A minha impressão é que, assim como ocorreu com Naoko e Sailor Moon, a produção percebeu que, em algum momento, a história se esgota. Doremi manteve, de 1999 a 2003, o mesmo “elenco”. Deve ficar cada vez mais difícil reapresentar tudo em todo começo de temporada, e ainda manter a consistência das personagens e a coerência do roteiro com os eventos anteriores. Talvez seja por isso que a maioria das animações longevas, como Sazae-san, Shin-chan, Simpsons e South Park, são episódicas, se preocupando menos com a consistência narrativa de um episódio em relação ao outro.

Aqui, talvez vocês me questionem: Ué, mas e Pokémon? Há décadas com o mesmo protagonista? Na verdade, em toda mudança de geração, Pokémon basicamente faz um “reboot” da série: Ash troca seu time de Pokémons level 99 por um inicial level 1 de um novo continente, além de ganhar novos colegas. Tudo, com exceção do protagonista e seu Pikachu, vira novidade e todo o universo é reapresentado. É quase como se o personagem fosse forçado a dar um “reset game” toda vez, indo parar em um mundo novo ao recomeçar.

Talvez, a produção da série tivesse se desgastado e, por isso, decidiram não dar mais continuidade. Mas logo no ano seguinte, a empresa estaria de volta com um novo título de garotas mágicas: Pretty Cure.

Nós somos as PreCure

Existe uma questão que, na minha opinião, se relaciona com o desenvolvimento de Precure: boatos de bastidores indicam que, por volta de 2002, a Naoko teria mandado congelar negociações referentes à Sailor Moon. Como a Toei lançou no ano seguinte um live-action da franquia e a animação continuou a ser exibida por aqui pelo Cartoon Network na mesma época, podemos imaginar que foi algo mais ligado com licenciamento de produtos. Só isso já seria ruim o suficiente, considerando que essas séries são vitrines para vender bugigangas.

Aqui, entramos em um campo especulativo, mas imagino o seguinte: Doremi foi criada para aproveitar o hype em cima de garotas mágicas e ganhar uma boa grana com licenciamento de produtos, mas Sailor Moon ainda era o carro-chefe do gênero. Quando a Naoko congela a franquia, a Toei decide apostar em uma nova franquia de peso, para não precisar depender do humor da Takeuchi.

É isso aí: acredito que Precure foi a “rasteira” que a Toei deu para não pagar mais royalties ou acatar decisões da Naoko na hora de deixar a Bandai (e quem mais quisesse) produzir merchandising. Mas por que não repaginar o sucesso Doremi? Talvez por ser para um público um pouco mais novo, um rebranding não parecesse muito viável (se tivesse também “desgastada”, faria sentido optar por deixar para lá…). Ou sei lá, por qualquer outro motivo.

A 1ª série PreCure (2004) | Divulgação/Toei Animation.

Seja como for, o fato é que a primeira temporada de Precure, Futari wa Pretty Cure, chegou em 2004. A série contou (não somente) com roteiristas presentes em todas as temporadas de Ojamajo Doremi (para mim, um indício de “continuidade” de projetos) e direção de Daisuke Nishio, que já tinha dirigido os grandes hits Dragon Ball e Dragon Ball Z.

Assim como suas “antecessoras”, a obra manteve os elementos tokusatsu, fazendo sucesso o suficiente para ganhar uma segunda temporada. Aqui, a Toei manteve a equipe de produção, criando uma sequência direta, Max Heart. Mas na terceira temporada, Splash Star, a série vai “full-tokusatsu” e muda o elenco (uma parte da equipe de produção também muda). A estratégia rende e a troca de elenco vira padrão na franquia – há exceções, como Yes! PreCure 5 GoGo.

Com personagens e temática novas a cada temporada, Precure pode se reinventar sem se preocupar com consistências de continuidade entre uma obra e outra. Ao contrário das duas franquias anteriores, caracterizadas pela permanência do elenco principal, o que torna todas as séries de Precure parte do mesmo universo são os elementos “clichês”: a existência de guerreiras chamadas Cure, bichinhos mágicos servindo como guias, e uma ameaça maligna à Terra.

Para dar aquele “gostinho” para os fãs, todos os anos sai um filme contendo a geração atual de Cures e a geração do ano anterior, uma espécie de ritual para “passar o bastão” (e vender bastão também). A empresa ainda vai além e, vez ou outra, coloca as Cure fazendo aparições especiais com personagens de Super Sentai. Precure é sem dúvida uma das empreitadas nas quais a Toei mais se permite arriscar.

Com isso, a franquia já rendeu 17 temporadas e é considerada a maior série de garotas mágicas do Japão, movimentando já mais de 8 bilhões de dólares em merchandising no país. Este ano marca a chegada dela por aqui, ao menos com o nome original.

Em 2015, a Saban adaptou Smile Precure! (2012-2013) no horrendo Glitter Force, realizando uma série de edições no material original. Ainda adaptou DokiDoki! PreCure (2013-2014) em Glitter Force: Doki Doki. As duas temporadas foram para a Netflix, mas desagradaram tanto que a Saban devolveu os direitos da franquia à Toei em 2017.

Healin’ Good Precure (2020) | Divulgação/Toei Animation

Agora, em 2020, a Crunchyroll adquiriu a temporada atual (Healin’ Good) e Kira Kira Pretty Cure A La Mode (2017-2018), e a franquia deve se expandir mais para o exteriorA título de curiosidade: até houve um esforço em tentar trazer Doremi e Futari wa Precure para o Brasil nos anos 2000, mas nenhuma emissora se interessou.

Enfim, há certamente muito sobre os bastidores dessas franquias todas que não sabemos e, provavelmente, jamais saberemos. Mas parece fato que, desde Sailor Moon, a Toei se empenhou em aproveitar o “boom” das garotas mágicas ao estilo Super Sentai, tendo em suas mãos os direitos de séries de peso do gênero.

Caso não fosse a pandemia, causando adiamentos, 2020 inclusive marcaria o ano em que as três franquias de maior peso contariam com novidades no cinema: Precure com o tradicional filme anual, Doremi com um filme comemorativo de 20 anos e Sailor Moon Eternal – este último, infelizmente, acabou adiado para janeiro. Seria interessante ver, algum dia, um crossover das três séries… mas isso depende da Toei e, também, da Naoko Takeuchi.


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