2020 foi um ano difícil. Com a pandemia mundial da COVID-19, cada dia era como uma morte do Subaru, voltando do mesmo ponto repetidas vezes e com poucas chances de variação. Mas em tempos de guerra, a arte surge como uma válvula de escape à cabeça, nos levando para mundos diferentes, mais leves, emocionantes, intrigantes e divertidos.

E o mundo dos animês, em suas várias desambiguações, brilhou. Mugen Train, primeiro longa-metragem do hypado Demon Slayer, se tornou um dos maiores sucessos em bilheteria da história do Japão, carregando consigo o mangá da série; a saga original de Digimon Adventure (ignorem o reboot quadradão que estreou recentemente) teve um fim digno nas telonas, em grande escala, no genial Last Evolution Kizuna, maior joia da franquia até então.

Por aqui, grandes players do mercado internacional de streaming, como Netflix, Crunchyroll e Funimation, trouxeram ao Brasil (e levaram ao resto do globo) séries em transmissão simultânea, além de dublagens e tempo recorde; as produções japonesas ficaram mais acessíveis, com a Cartoon Network revivendo o bloco Toonami, a chegada da Pluto TV e a estreia da Loading, emissora de sinal aberto com um belo espaço para produções orientais. É a melhor época para ser otaku.

Fechar uma lista com os dez favoritos foi difícil, levando em conta a avalanche de qualidade das últimas temporadas. Para ela, então, foram considerados apenas animês seriados e que tenham estreado no ano de 2020. Continuações, como as de My Hero AcademiaRadiantKonoSuba, Food Wars!Haikyu!! não foram levadas em conta.

Não houve um esforço real para que apenas títulos lançados oficialmente por aqui fossem incluídos, mas calhou de, ainda assim, os melhores terem todos saído licenciados através de plataformas de streaming. Posto isso: que rufem os tambores…


10. Oda Cinnamon Nobunaga

(Hidetoshi Takahashi, Studio Signpost)

O Oda Nobunaga como cachorrinho shiba.

Muitas vezes, o puro entretenimento começa com uma simples ideia. Nessa pérola bem humorada adaptando o mangá seinen de Una Megurogawa, tudo começa com o pensamento absurdo, alucinado e hilário de imaginar como seriam grandes senhores da guerra do Japão renascidos como… cachorrinhos de estimação!

Nessa, temos como fio condutor o temido conquistador de terras Oda Nobunaga, preso no corpo de um fofinho shiba-inu, que precisa conviver com outros cãezinhos da vizinhança – também famosos generais da história nipônica. O resultado é um punhado de episódios divertidíssimos, onde todo o excesso de ego e poder de outrora em tais figurões é limitado ao universo canino.

Universo esse onde nem sempre as castas de importância seguidas originalmente fazem diferença. Isso gera situações tão estapafúrdias que é impossível não rir, ainda que de nervoso. Bem que poderiam fazer uma versão brasileira, tirando sarro de determinadas figuras políticas ditatoriais de décadas atrás utilizando todo tipo de variação vira-lata disponível em nossa fauna.

Disponível na Crunchyroll.


09. Dragon Quest: The Adventure of Dai

(Kazuya Karasawa, Toei Animation)

O próprio Fly/Dai!

A ideia de retomar Dragon Quest num novo animê, à essa altura do campeonato, poderia dar bem errado. Embora o mangá original tenha sido um grande sucesso em vendas, o texto é de décadas atrás e talvez não funcionasse hoje em dia, tão comum que sua fórmula narrativa se tornou ao ser repetida em outras obras.

Contudo, o diretor Kazuya Karasawa conseguiu entregar uma série bem ágil, divertida, que adapta a história do Riku Sanjo como se tivesse sido escrita há não tanto tempo assim. E muito bem animada, o que é uma surpresa avaliando produções de ação recentes da Toei. Mesmo os momentos de CGI são bem colocados e conversam corretamente com os traços 2D.

Pra quem nunca deu uma chance ao “Fly, o Pequeno Guerreiro” das épocas de SBT, está aqui uma boa oportunidade. Na trama, após um grande herói derrotar o rei demônio Hadlar, humanos não precisavam mais se preocupar com monstros, pois eles habitavam pacificamente uma ilha ao sul. Porém, anos depois, o vilão está de volta, liderando um exército demoníaco para tomar o controle do mundo. Então, cabe a Dai, um garotinho que cresceu criado por monstros nessa ilha, salvar o mundo com seus amigos, se tornando o novo herói dessa geração.

Disponível na Crunchyroll.


08. BNA: Brand New Animal

(Yoh Yoshinari, Studio Trigger)

Personagens de Brand New Animal.

Uma das coisas que mais adoro nas obras do Trigger é a maneira como eles conseguem tocar em temas bastante sensíveis utilizando alegorias tão carnavalescas. No raso, Brand New Animal trata sobre uma jovem que se transforma numa tanuki “feral” (criatura meio humana, meio fera) e que se muda para Animalia, uma cidade onde ferais podem viver livremente longe da violência de humanos que não os aceitam.

Mas mergulhando, o roteiro traça paralelos com nossa realidade em questões como preconceito racial e xenofobia através da ideia supremacista de a raça humana como superior; ideologias, religiões e politicagem como modos de alienar a população por meio de atividades escusas cometidas por poderosos em diferentes meios; terrorismo; identidade nacional, etc.

Animalia pode ser lida como a Jerusalém, a terra prometida dos ferais. Já todo o jogo político-social em volta dela pode ser lido como uma referência aos conflitos religiosos de tal região no oriente médio, dando um tom quase bíblico ao roteiro.

Tudo isso contado de maneira bem leve, acessível, quase infantil, num paleta de cores radiantes em traços até cartunescos no estilo que o estúdio traz a cada novo lançamento. Entra ano, sai ano e o Trigger não cansa de surpreender.

Disponível na Netflix com dublagem em português.


07. Somali and the Forest Spirit

(Kenji Yasuda, Studio Satelight)

A jovem Somali.

Somali and the Forest Spirit é um animê sobre captar o que de melhor há no pior. Nele, uma menininha humana chamada Somali viaja pelo mundo com seu pai adotivo, um golem da floresta. Ocorre que, nesse mundo, seres humanos são minoria, precisando lidar com o ódio de outras criaturas (onis, lobisomens, goblins, dragões, bruxas, há inspirações em misticismos de diferentes culturas) ocasionado por atos preconceituosos de seus antepassados que deixaram resquícios até então.

Só que, mesmo num cenário tão desfavorável, Somali se prende ao que de mais bonito há em sua rotina, vivendo seu próprio conto de fadas e, consequentemente, mudando a vida e a percepção daqueles com que entra em contato.

Para ampliar essa ideia, a direção faz questão de pintar tal mundo em fotografias jubilantes, cores vívidas, com uma trilha sonora angelical que nos dá a impressão de acompanhá-lo como se o estivéssemos enxergando pelos olhos de uma criança. Sem sombra de dúvidas, uma das produções mais bonitas do ano.

Disponível na Crunchyroll.


06. Shadowverse

(Keiichiro Kawaguchi, estúdio Zexcs)

O "Yugi" (o design é muito parecido) de Shadowverse.

Isso aqui é o puro suco do nicho de animês infantis onde “um personagem apaixonado por um jogo competitivo vive grandes emoções em embates épicos”. É Yu-Gi-Oh!BeybladeBakuganGundam Builders e B-Daman novamente, mas com um esforço bem grande em fazer acontecer.

Temos character designs criativos, estereótipos adoravelmente bem trabalhados (o protagonista avoado, o melhor amigo badass, os antagonistas misteriosos, por aí vai), poses cool de “transformação” no começo da cada duelo, cenários competitivos bacanudos, além da coisa toda parecer não se levar tão a sério, o que deixa o gosto final ainda melhor.

Mesmo que o jogo pareça ser bem qualquer coisa em comparação a outros TCGs mais inventivos em questão de temática, personagens, estilo, mecânica, etc., todo ele é muito bem apresentado, com animações em cgi que imitam o 2D gostosinhas de assistir. No fim, Shadowverse vence como aquele entretenimento semanal descompromissado, que não chega a trazer nada de novo, mas arranca sorrisos do início ao fim de cada episódio. É esse o propósito, não?

Disponível na Crunchyroll.


05. Jujutsu Kaisen

(Sunghoo Park, estúdio Mappa)

Personagens de Jujutsu Kaisen.

Cá entre nós? A real é que não há nada de diferente, único, inédito em Jujutsu Kaisen. Essa mesma história, com os mesmos esquemas de roteiro, arquétipos e truques narrativos já foi contada em uma porção de animês por aí.

É como se o Gege Akutami, autor do material original, pegasse o que ele mais gostou em NarutoBleach, One Piece e demais obras do tipo, jogasse num liquidificador e editasse alguns pontos para que fizessem sentido dentro de seu próprio universo.

Isso desmitificado: mesmo sendo um pastiche de outros produtos, Jujutsu Kaisen entrega tão bem tudo o que animês shonen de ação devem servir aos espectadores que não tem como não se deixar levar. Há um rapaz cool que acaba comendo um dedo amaldiçoado, aí ganha poderes paranormais enquanto divide o corpo com uma criatura sombria que lhe fornece ajuda com condições perigosas.

Então, ele vai parar num colégio com outros adolescentes tão poderosos quanto, um professor engraçadinho e legendário em seu meio, precisando enfrentar inimigos numa trama que envolverá muito mais que o esperado. Mas poderia ser com ninjas, com shinigamis, piratas ou variações disso que também divertiria bastante. Jujutsu Kaisen foi a grande junk food em forma de animê de 2020. E quem aí não gosta de junk food?

Disponível na Crunchyroll com dublagem em português.


04. Great Pretender

(Hiro Kaburagi, estúdio WIT)

Makoto Edamura (ou Edamame), de Great Pretender.

Esse também é tão bom. Tudo começa quando o jovem japonês Makoto Edamura tenta passar a perna no turista francês Laurent Thierry. No entanto, o gringo se mostra alguém bem mais vivido nesse quesito que o moleque, atraindo ele pruma trama de golpes internacionais da qual ele jamais imaginou participar antes. E pronto: temos um dos melhores animês do ano!

Eu adoro a ideia de serem diferentes arcos narrativos que se encerram em poucos episódios, como se fossem vários heist movies com os mesmos personagens, compilados um atrás do outro, só que feitos sem as limitações físicas que longas-metragens em live-action trariam, permitindo que uma porção de cenários deslumbrantes sejam explorados em todo seu potencial (aquelas corridas aéreas em Singapura ainda não saíram da minha cabeça).

Adoro também que o roteiro tem bastante paciência, optando por dar luz à cada personagem nos momentos mais convenientes para que a trama seja tocada pra frente. Great Pretender é uma pepita para ver, rever e se surpreender a cada nova descoberta em tela. E tem o Freddie Mercury cantando o encerramento, não tem como ficar melhor.

Disponível na Netflix com dublagem em português.


03. My Next Life as a Villainess: All Routes Lead to Doom!

(Keisuke Inoue, estúdio Silver Link)

Personagens de Bakarina.

A idiotice mais divertida do ano. E já é o meu isekai de humor não-parodial predileto dos últimos tempos. O argumento é hilário: após bater com a cabeça, uma nobre chamada Katarina Claes descobre estar vivendo no mundo de um jogo de simulação romântica chamado Fortune Lover, pelo qual ela, em sua vida passada de otaku, tinha obsessão.

O grande problema (para ela) foi ter renascido justo no corpo da vilã do game, cujos finais mais prováveis levam ou para um exílio forçado, ou para a morte. Com essas informações em mente, ela começa a viver sua nova vida tentando se esforçar para não cair em nenhum dos caminhos que ativarão essas flags de destruição.

Destaque para o “tentando”, já que ela é bastante atrapalhada e simples, não se encaixando direito naquele ambiente aristocrata. O que acaba sendo interessante, já que, a partir disso, aqueles com quem ela convive acabam afetados por sua ingenuidade.

My Next Life as a Villainess é como uma boa novela de época dirigida pelo Jorge Fernando, daquelas onde os personagens acabam se envolvendo em situações malucas que parecem fugir do roteiro, bolos são jogados em pessoas e, inevitavelmente, alguém terminará o capítulo caindo no chiqueiro. Comédias não ficaram melhores que isso em 2020.

Disponível na Crunchyroll.


02. Keep Your Hands Off Eizouken!

(Masaaki Yuasa, estúdio Science SARU)

As 3 garotas de Eizouken.

Que qualquer coisa que tenha o nome do Masaaki Yuasa vale a pena dar uma conferida, todos já sabíamos desde o estrondoso Devilman: Crybaby (2018), mas o que ele fez em Keep Your Hands Off Eizouken! é apenas outro nível. Tomando como engate a história de três meninas que tocam um clube escolar de audiovisual para produzirem animês por conta própria, o diretor entrega uma carta de amor ao mundo das animações.

Ele dá conta de criar um significado engajante para cada pequeno item de produção nesse universo, indo desde as ideias primordiais que surgem nas cacholas dos criadores, até os jeitinhos que as pessoas que cuidam das redes sociais de estúdios precisam dar para despertar a atenção do público. Todos os passos encantam, todos os passos dão vontade de acompanhar, todos os passos tiram o fôlego como num filme de ação.

Culpa de um roteiro que roda como uma engrenagem perfeita, onde os desafios e conflitos vividos pelas protagonistas vão aumentando em escala a cada novo ato. E de um imenso cuidado com todos os elementos audiovisuais de modo a encantar e encher os olhos dos que assistem.

Aquela cidade arquitetada do jeito mais insano possível, as inserções mais viajadas com storyboards quando elas usam a imaginação, aquilo de segurarem os resultados só mostrando nos momentos decisivos… Keep Your Hands Off Eizouken! é emocionante, dinâmico, inventivo. E acima de tudo: divertido, muito divertido!

Disponível na Crunchyroll.


01. Dorohedoro

(Yuichiro Hayashi, estúdio Mappa)

O lagartão de Dorohedoro.

Dorohedoro é não menos que uma obra-prima. Lindamente esquisita, grotesca, surtada, agressiva. Quase anárquica. E possivelmente ofensiva. Do tipo que, para o bem e para o mal, não consegue passar incólume ao espectador que lhe dá play.

O roteiro pega todas aquelas regras narrativas mais óbvias e joga pro alto, invertendo situações, não delimitando claramente quem é bom ou ruim e criando uma trama “Pulp Fiction” onde ninguém presta de verdade, mas todos são capazes de despertar nossa afeição.

Ele conta a história de um grandalhão com cabeça de lagarto que perde sua memória e tem a ajuda de uma cozinheira para investigar seu passado. A dupla mora no Buraco, um local sujo e perigoso onde feiticeiros vindos de outra dimensão praticam suas magias nos moradores, que, na melhor das hipóteses, acabam desfigurados nesse processo.

Para reunir pistas, os dois caçam os bruxos que invadem o bairro, com o lagartão abocanhando (literalmente) suas cabeças para que, de dentro de sua garganta, um homem misterioso diga se eles são ou não os culpados pela transformação em réptil.

Isso é contado através de uma estética suja, ultra detalhada e ligeiramente perturbadora, exprimindo bem a sensação antagônica de “sujeira” e “limpeza” que determinados ambientes devem passar. É como assistir uma zine punk dos anos 1970 animada.

Ainda tem um gore de virar o estômago lindo demais, uns personagens totalmente fora da casinha e mais uma porção de ideias inseridas que são desenvolvidas de maneira excelente. Enfim, Dorohedoro é espetacular.

É um animê imaginativo, que impressiona do início ao fim, que não se prende a tantas convenções narrativas, não apresenta soluções fáceis e dosa legal os discursos politicamente mais questionadores com entretenimento puro e garantido. De séries animadas vindas do Japão, nenhuma conseguiu superar.

Disponível na Netflix com dublagem em português.


E os piores?

Não que importe de verdade, mas adoraria apagar o blá blá blá interminável de In/Spectre da minha mente; achei o “púdico” Dragon’s Dogma panfletário demais e divertido de menos; The God of High School tem lutas boas, mas pecou pela inexistência de um roteiro; Tower of God foi constrangedoramente mal escrito; e Digimon Adventure: sequer tentou traçar uma história para os personagens.


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